Não há propriamente paixões em fúria em Key Largo, que John Huston lançou em 1948, mas os distribuidores brasileiros acharam que era um título bonito, atraente.
Foi o terceiro dos cinco filmes em que Huston dirigiu Humphrey Bogart. O primeiro foi exatamente o filme de estréia de Huston na direção, Relíquia Macabra/The Maltese Falcon, de 1941, em que Bogey interpreta Sam Spade, o detetive durão criado por Dashiell Hammett. Em 1942, o diretor reuniu de novo o trio Humphrey Bogart-Mary Astor-Sydney Greenstreet do filme anterior em Garras Amarelas/Across the Pacific, ambientado na Segunda Guerra Mundial.
Depois de Key Largo, os dois fariam juntos O Tesouro de Sierra Madre (1948) e Uma Aventura na África/The African Queen (1951).
Aqui, Bogart faz o papel de Frank McCloud, um sujeito solitário, que durante a Segunda Guerra Mundial havia combatido na Itália como major, comandante de um pelotão do exército americano. Agora já fora do exército, sem raízes, sem planos para o futuro, Frank resolve visitar o pai e a mulher de George Temple, um homem que fizera parte de seu pelotão e havia sido morto em combate. Havia se afeiçoado a George, tinham ficado muito amigos Ele empreende, então, uma viagem a Key Largo, uma das ilhas Keys no extremo Sul da Flórida.
O início do filme traz um letreiro com a informação geográfica: “No ponto mais ao Sul dos Estados Unidos ficam as Keys da Flórida, uma sequência de pequenas ilhas ligadas por pontes. A maior dessas remotas ilhas de coral é Key Largo”.
A paisagem exuberante do lugar paradisíaco, no entanto, só será mostrada bem rapidamente, nos minutos iniciais do filme. O que virá em seguida é uma história claustrofóbica, passada toda dentro de um hotel tomado de assalto por um gângster e seus capangas, e que enfrenta os riscos de uma violentíssima tempestade tropical.
O bando de um gângster toma conta do hotel e inferniza a vida de três pessoas
O pai de George, James Temple (o papel de Lionel Barrymore, já bem gordo e com as marcas da idade, aos 70 anos), é dono de um hotel em Key Largo, e o dirige com a viúva de seu filho, Nora (o papel de Lauren Bacall, a senhora Humphrey Bogart). O hotel estava fechado naqueles dias, mas havia aparecido um grupo de seis pessoas e oferecido uma grana preta para ocupar alguns quartos. O chefe do grupo é um gângaster famoso, Johnny Rocco (o papel do grande Edward G. Robinson). Junto com ele estão quarto capangas e mais sua amante, Gaye (Claire Trevor), uma ex-aspirante a cantora que agora estava afundada na bebida.
Aparentemente, até a chegada de Frank as coisas não estavam tão feias – o grupo não dava grandes dores de cabeça ao velho senhor Temple e a Nora. Mas, a partir da chegada do estranho, o clima de tensão vai se intensificar cada vez mais. Johnny Rocco vai demonstrar mais e mais sua violência, enquanto a vida de todos eles – os bandidos e os três inocentes – está ameaçada pela violência das forças da natureza.
Nora vai ficando mais e mais encantada com o comandante que seu marido tanto elogiava nas cartas – e vai cada vez mais esperar que ele, herói no campo de batalha, enfrente os bandidos que dominaram o hotel.
O roteiro – uma espécie assim de Bolero de Ravel em que a tensão não pára de crescer – é assinado por dois mestres, o próprio John Huston e Richard Brooks. A base é a peça de teatro de Maxwell Anderson.
Acho fascinante o fato de que, em 1936, portanto 12 antes deste filme aqui, Humphrey Bogart tenha feito o papel não da vítima, mas do bandido, do algoz de um grupo de pessoas inocentes em um espaço fechado – no caso, um restaurante à beira da estrada. Em A Floresta Petrificada, ele interpreta um bandido que conseguiu fugir da cadeia e invade o restaurante onde estão, entre outros, um escritor (interpretado por Leslie Howard) e uma jovem sonhadora (Bette Davis).
O bandido feito por Bogart é tão cruel e violento quanto o gângster interpretado aqui por Edward G. Robinson.
Por coincidência – ou não –, A Floresta Petrificada também foi baseado em uma peça de teatro. Tanto Leslie Howard quanto Humphrey Bogart trabalharam na peça na Broadway, e refizeram seus papéis no filme.
Huston e Brooks escreveram o roteiro na Flórida, em meio a bebida e jogatina
Key Largo foi o ultimo filme de John Huston para a Warner Bros, o estúdio com o qual tinha contrato desde os tempos pré-Relíquia Macabra, em que era apenas roteirista. Ele conta, em sua maravilhosa autobiografia Um Livro Aberto, que as coisas não estavam nada bem entre ele e o estúdio, na época em que foi feito o filme. Jack Warner havia impedido que ele dirigisse Uma Lua para um Bastardo, e isso o deixara irritado. Além disso, o estúdio estava fazendo uma grande sacanagem com Henry Blank, que Huston admirava e tinha como mentor, além de grande amigo. Blanke era um dos produtores mais bem pagos de Hollywood na época; “ao chegar a hora de renovar o contrato, a Warner fez pressão para lhe reduzir o salário. Blanke não aceitou e eles passaram a humilhá-lo de tudo quanto foi jeito”, escreveu Huston.
“Jerry Wald era o produtor. Escalou Richard Brooks para me ajudar no roteiro e nós dois fomos lá para os baixios da Flórida – minha primeira visita para aquelas bandas –, onde escrevemos tudo nos próprios locais da história.” No hotel em que ficaram com as respectivas mulheres, Huston e Brooks danaram a jogar – dados, roleta, baralho. E danaram a perder dinheiro. Entre um jogo e outro, escreveram um belo roteiro. O próprio Huston admite isso – ele, que muitas vezes é um ácido crítico de seus trabalhos.
“Do modo como Brooks e eu escrevemos o roteiro, Paixões em Fúria tinha uma linha dramática mais forte do que a peça original de Maxwell Anderson, da década de 30, que resolvemos atualizar. As grandes esperanças e o idealismo dos anos do governo Roosevelt estavam sumindo, e o submundo do crime – representado por Edward G. Robinson e seus capangas – começava a ganhar terreno de novo, aproveitando-se do marasmo social. Fizemos disso o tema do filme.
“Robinson aceitou fazer o papel do gângster Johnny Rocco com certa relutância. Nunca tinha gostado de ser identificado com bandidos. Dava até impressão de que já havia sido gângster de verdade e agora estivesse louco para se regenerar – talvez esse estado de espírito fosse um dos motivos que o levava a colecionar obras de arte. Acho que Paixões em Fúria se tornou memorável para a maioria das pessoas por causa da cena inicial, com Eddie dentro da banheira, de charuto na boca. Parecia um crustáceo que houvesse perdido a casca.
“Como a maior parte da ação de Paixões em Fúria se passava em um hotel de veraneio, conseguimos fazer quase todas as filmagens no estúdio da Warner Brothers. Algumas tomadas para estabelecer o clima foram rodadas na Flórida. Candidato ao Oscar de melhor filme daquele ano, conquistou para Claire Trevor o prêmio de melhor atriz coadjuvante. Bogie, Lauren Bacall e Lionel Barrymore tiveram ótimos desempenhos. Gostei sobretudo de trabalhar com Lionel.”
Depois que terminou Key Largo, Huston, juntamente com o produtor Sam Spiegel, criou uma nova produtora cinematográfica, a Horizon Pictures.
Deve ter havido um engano aí na tradução da autobiografia de Huston: Key Largo não foi candidato ao Oscar de melhor filme. Sua única indicação foi mesmo a de Claire Trevor como coadjuvante – e ela venceu.
Os filmes de John Huston deram Oscar a diversos, diversos atores. Ele é até hoje (e provavelmente será sempre) o único realizador que dirigiu o pai e a filha em interpretações vencedoras do Oscar. Walter Huston ganhou a estatueta por O Tesouro de Sierra Madre (1948), e Anjelica Huston, por A Honra do Poderoso Prizzi (1985).
“Uma obra-prima única”, “um clássico cheio de suspense”
Depois que escrevi até aqui esta anotação, fui dar uma olhada no que disse sobre o filme o Cinebooks’, uma das obras contidas no CD-ROM Cinemania. O longo texto começa assim: “Embora tenha alguma semelhança com The Petrified Forest (1936), Key Largo é uma obra-prima única, apresentando o velho mundo criminoso da América em oposição ao otimismo pós Segunda Guerra Mundial. É de fato uma confrontação de ideologias e psicologias, inteligentemente colocada num nível de entendimento comum. Com um elenco especial, um roteiro maravilhoso e direção tensa, esse filme de John Huston é um clássico cheio de suspense.”
O Cinebooks’ dá ao filme a cotação máxima de 5 estrelas. Leonard Maltin dá 3.5 em 4.
Pauline Kael diz que o filme é dirigido com muita confiança e gosto: “O major desiludiu-se do valor da luta, mas quando os gângsteres (símbolos da reação, corrupção, hitlerismo) tomam o hotel e começam a matar as pessoas, ele é forçado a entrar em ação. Bogart conquista Bacall, que está belíssima, mas emu ma atuação rígida e amadorística. (…) Para divertir-se, esse Hitler de fabricação caseira (o personagem de Edward G. Robinson) humilha a amante madura e bêbada, feita por Claire Trevor, que pôs tanto pathos em seu papel que ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvante.”
A atuação de Claire Trevor é de fato absolutamente extraordinária.
Bogart conquista Bacall mais uma vez. Ela já havia conquistado a maravilhosa jovem quatro anos antes, em 1944, na tela e na vida real: os dois se conheceram durante as filmagens de Uma Aventura na Martinica/To Have and Have Not, de Howard Hawks. Naquele ano em que o filme foi lançado, Bogie tinha 45 anos, e Lauren Bacall, 20. Viveriam juntos até a morte dele, em 1957.
Como Spencer Tracy e Katharine Hepburn, fizeram vários filmes juntos. Depois de Uma Aventura na Martinica vieram À Beira do Abismo/The Big Sleep (1946), Um Trono por Amor/Two Guys from Milwaukee (1946), Prisioneiro do Passado/Dark Passage (1947), este Key Largo.
Tiveram uma paixão monumental – mas não paixões em fúria.
Anotação em fevereiro de 2015
Paixões em Fúria/Key Largo
De John Huston, EUA, 1948
Com Humphrey Bogart (Frank McCloud), Edward G. Robinson (Johnny Rocco), Lauren Bacall (Nora Temple), Lionel Barrymore (James Temple), Claire Trevor (Gaye Dawn), Thomas Gomez (Curley), Harry Lewis (Toots), John Rodney (Clyde Sawyer),
Roteiro John Huston e Richard Brooks
Baseado em peça de Maxwell Anderson
Fotografia Karl Freund
Música Max Steiner
Montagem Rudi Fehr
Produção Warner Bros.
P&B, 101 min
R, ***
Passo um tempo sem vir aqui, e aí você resolve resenhar meu filme favorito com Bogart.
Duas coisas: neste filme, se vê aquilo que um crítico apontou como o romantismo discreto (e por essa razão, atemporal, nunca ridículo) dos personagens / filmes de Humphrey Bogart (a rápida cena da carícia nos cabelos de Bacall); e seu personagem encarna à perfeição aquela coragem moral sem soar moralista – sem discursos, nem pose: ser bom é manter-se firme, e, às vezes, contrariar a prudência…