Perdão pela obviedade, mas este Os Sabores do Palácio é um filme saboroso. Literalmente. Extremamente bem realizado em todos os quesitos, bem humorado, agradável de se ver. Doce, mas suavemente doce, sem exagero. E sem gordura, enxutinho.
Os americanos fazem às pencas filmes que se passam na Casa Branca. Os ingleses vez ou outra se saem com filmes sobre os eventuais habitantes do número 10 da Downing Street. Já os franceses não são useiros e vezeiros em mostrar o Palais de l’Élysée, o prédio construído entre 1718 e 1722 situado no número 55 da Rue du Faubourg-Saint-Honoré, no 8º Arrondissement.
Os Sabores do Palácio leva o espectador para dentro do augusto prédio. E a história que o filme conta é inspirada em personagens e situações reais.
O endereço nobre, Rue du Faubourg-Saint-Honoré, 55, para os franceses tão conhecido quanto para os súditos de Sua Majestade o 10 da Downing Street, é citado no início da narrativa. A protagonista, Hortense Laborie (a ótima Catherine Frot, a alma do filme), chega de trem a Paris, vinda de Périgord, onde fica a fazenda em que mora. É recebida por David Azoulay (o papel de Hippolyte Girardot, na foto abaixo).
Hortense não sabe muito bem por que havia sido convidada a ir a Paris. Chef de cozinha respeitada no meio dos chefs, experiente, mas não muito famosa fora de seu círculo, imagina que o convite tenha algo a ver com o Ministério da Cultura. Tinha recebido um telefonema, na sua fazenda em Périgord, e funcionários da prefeitura haviam ido pegá-la de carro e a levado até a estação de trem, dizendo que haveria gente esperando por ela na sua chegada a Paris.
Na estação, ela pergunta a David Azoulay onde vão. David recita então o endereço: o número 55 da Rue du Faubourg-Saint-Honoré. Hortense não tem reação alguma, e o sujeito percebe então que ela não tem mesmo noção de para onde estão indo.
É no Palais de l’Élysée que ela é finalmente informada: aceitaria ela o convite de ser a chef da cozinha que prepara as refeições de Monsieur le Président de la République?
Hortense é uma mulher simples, do interior, da Provence, criada em fazenda. Não é boba, de forma alguma, mas é simples, direta. Fica mais surpresa que envaidecida pelo convite imponente. Quer saber quem a indicou: por que exatamente ela? Seu interlocutor diz que ela foi indicada pelo ministro da Cultura. Ela continua surpresa: só havia se encontrado com o ministro da Cultura uma única vez; haviam trocado cartões, e só isso.
Ela pergunta então se pode conversar com o presidente, saber suas preferências culinárias – e o assessor que a entrevista diz que não é bem assim. Quando o presidente quiser falar com ela, se é que algum dia vai querer falar com ela, ele a chamará.
E então David Azoulay a leva para um tour pelo gigantesco l’Élysée.
A cozinha central do palácio, que alimenta todas as centenas de funcionários que trabalham ali, é absolutamente gigantesca, e nela só trabalham homens – uma imensa quantidade de homens. A proposta é que Hortense cuide apenas das refeições do presidente e seus convidados íntimos, em uma cozinha separada. Ela é recebida pelo chef da cozinha central e seus auxiliares com extrema má vontade.
Enquanto o chefe da cozinha central tem um pelotão de dezenas de auxiliares, Hortense terá apenas um único ajudante, Nicolas (Arthur Dupont).
A narrativa começa a 12 mil quilômetros de Paris, na base francesa da Antártida
A primeira visita de Hortense a l’Élysée é mostrada ainda no início da narrativa – mas a ação do filme começa bem longe de Paris. A cerca de 12 mil quilômetros da capital da França, no arquipélago de Crozet, na região da Antártida, onde fica a base científica Alfred Faure.
Uma dupla de uma emissora de TV australiana está chegando à base Alfred Faure para fazer uma matéria. Na primeira sequência do filme, a repórter Mary (Arly Jover) e o cameraman John (Joe Sheridan) estão tentando entrevistar o novo chef que chega para assumir a cozinha da base.
Ao chegar à ilha em que fica a base, Mary vê uma mulher, e se espanta: pelo que ela sabia, só havia homens na base. Um funcionário francês explica para a repórter: aquela é La Présidente, a chef da cozinha, que está voltando para a França daí a dias. Ela é chamada assim, de La Présidente, porque, antes de vir passar um ano naquela ilha perdida junto do Pólo Sul, havia sido a chef do presidente da República.
Vem então o flashback. Um letreiro informa que estamos agora 4 anos antes, em Périgord – e começam os créditos iniciais.
Belíssimos créditos iniciais. De um helicóptero, a câmara acompanha um carro em disparada por estrada pequena, local, da província, enquanto ouvimos a trilha composta por Gabriel Yared – uma melodia alegre, quase brincalhona. Toda a trilha é assim: alegre, quase brincalhona.
Para quem gosta de filmes, aquelas tomadas feitas do alto, do céu, trazem ecos da abertura do extraordinário A Mulher do Lado, de François Truffaut, e do também extraordinário O Iluminado/Shining, de Stanley Kubrick.
O carro que percorre em alta velocidade a estradinha secundária, provinciana, é o da prefeitura de Périgord, que está rumando para a fazenda da chef Hortense Laborie.
E então, depois dos créditos iniciais, vemos a chegada de Hortense a Paris, sua primeira e inesperada visita ao palácio em que vive o trabalha o presidente da República.
O roteiro – assinado por Etienne Comar e pelo diretor Christian Vincent – ficará indo e voltando no tempo, que nem bola de pingue-pongue, dos dois anos e pouco em que Hortense foi a chef do presidente até aqueles seus últimos dias perto do Pólo Sul.
Nos créditos iniciais, o respeitável público é informado de que o filme é uma adaptação livre da história real de Danièle Mazet-Delpeuch.
A personagem real trabalhou no Elysée durante a presidência de François Mitterrand
Claro, eu sabia que Os Sabores do Palácio se baseava – ainda que com muitas licenças poéticas – em uma história real. Tinha lido algum título de jornal dizendo isso. (Não gosto de ler nada sobre filmes que ainda não vi, mas é claro que os títulos, as linhas finas abaixo deles, a gente não consegue deixar de ver.)
No filme, Monsieur Le Président (interpretado por Jean d’Ormesson, na foto abaixo) não tem nome – é como se fosse um presidente fictício, como, só para dar dois exemplos, o presidente americano interpretado por Michael Douglas em Meu Querido Presidente/The American President, de Rob Reiner (1995), ou o primeiro-ministro inglês feito por Hugh Grant em Simplesmente Amor/Love Actually, de Richard Curtis (2003). (Embora, a rigor, o presidente seja parecido com Bill Clinton e o prime-minister lembre muito Tony Blair.)
Monsieur Le Président é apresentado como um homem extremamente simpático. Idoso, já, bem idoso – e extremamente simpático, boa praça. Amante de uma comida simples, uma comida que o fizesse lembrar daquela que a avó fazia. (Há no mundo alguma comida melhor que a preparada por nossa avó?) Um homem que tratou sua chef com todo o respeito. Um homem absolutamente não dotado de rei na barriga, ao contrário de tantos que chegam a ter algum poder nas mãos.
Depois que o filme terminou, pensei durante alguns minutos sobre quem teria sido o presidente da vida real que teve uma chef mulher, aparentemente a primeira na história do Palais de l’Élysée. Poderia ter sido François Mitterrand, o primeiro presidente socialista da França em muitos e muitos anos. Ou poderia talvez ter sido George Pompidou – mas Pompidou era “de direita”, e os realizadores europeus, em especial os franceses e os italianos, são sempre, todos, invariavelmente, “de esquerda”.
Mas pensei nisso só por alguns minutos, depois esqueci o assunto.
Só voltei a pensar nisso quando me sentei aqui para escrever esta anotação. E, claro, óbvio: a personagem da vida real, Danièle Mazet-Delpeuch, que inspirou os roteiristas a criarem essa simpática, fascinante Hortense Laborie, foi François Mitterrand.
Ah, o maniqueísmo… “De esquerda” é bom, “de direita” é ruim…
Algumas das sequências foram filmadas no próprio Elysée
Mas o fato é que o filme, saboroso, gostoso, mostra, com classe, elegância, fineza, o que a gente a rigor já sabe: como é absurda a burocracia que cerca o poder. Como é nojenta a disputa de poderzinho entre os assessores de quem tem poder.
O filme demonstra isso de forma magnífica.
Os Sabores do Palácio teve quase 1 milhão de espectadores na França. Não é um recorde, de forma alguma, mas é um número muito bom.
Diz o AlloCiné, o site que tem uma quantidade imensa de informações sobre os filmes franceses:
“Se o filme relata o percurso de Danièle Delpeuch, primeira mulher encarregada de cozinhar os pratos de François Mitterrand no Élysée, Les Saveurs du Palais não é, no entanto, um biopic (o termo inglês para cinebiografia . ‘Usamos algumas lembranças que ela evoca. Alguns momentos com o presidente. O roteiro é uma mistura engraçada de coisas que existiram e elementos totalmente inventados’, explica o produtor e roteirista do filme, Etienne Comar.”
Outras informações sobre a produção do filme, a maioria tirada do AlloCiné:
* Para recriar o Palais de l’Élysée, as filmagens foram realizadas em diferentes locais, como o castelo de Chantilly, um outro em Vigny, o estúdio em Bry-sur-Marne. Mas a produção teve a sorte de poder usar o próprio palácio que é a residência oficial e o gabinete de trabalho do presidente da República em uma ocasião, como explica o diretor Christian Vincent: “Tivemos a oportunidade de rodar durante alguns dias no Élysée durante a reunião do G-20 em Cannes. Sarkozy estando ausente de Paris, conseguimos uma autorização bastante excepcional. Quando Hortense chega pela primeira vez ao Palais de l’Élysée, estamos dentro do palácio de verdade.”
* Todas as sequências passadas no arquipélago de Crozet, na região da Antártida – a 12 mil quilômetros de Paris, como diz a protagonista Hortense no filme, foram filmadas na Islândia. Depois de muita pesquisa, a produção concluiu que a ilha gelada – bem mais perto da França que a Antártida – tinha uma paisagem semelhante à do arquipélago francês là-bas. “É um cenário incrível”, diz o diretor Vincent. “É uma terra virgem: nenhum avião no céu, nenhum fio elétrico, nenhuma alma viva.” Mas também há desvantagens: “As condições são rudes, as ligações difíceis, o tempo muda constantemente; enfrentamos diversas tempestades e, durante alguns dias, praticamene não conseguíamos filmar.”
* Não há registro sobre uma eventual visita da cantora Bjork ou do escritor de novelas policiais Arnaldur Indridason – os dois únicos islandeses de que já ouvi falar – à equipe de franceses que esteve na Islândia fingindo que ali era o arquipélago de Crozet.
* A própria personagem real retratada no filme, Danièle Mazet-Delpeuch (na foto), ensinou bastante a atriz Catherine Frot sobre as artes e os mistérios da cozinha. “Passei uma semana ao lado de Danièle Delpeuch”, conta a atriz. “Ela me ensinou o prazer dos gestos, das cores e das formas dos ingredientes. E eu consegui aprender de fato a fazer um chou farci au saumon. (Não me perguntem o que é isso. Algo com salmão, é claro.) Era uma das cenas mais importantes do filme: era preciso que eu fosse vista preparando o prato.”
* Depois dos dois anos e pouco preparando os pratos para o presidente Mitterrand, Danièle Delpeuch praticou sua arte em vários lugares do mundo. Esteve nos Estados Unidos, na China, no Japão, e na Antártida.
É um filme que não dá para ver com fome
Os Sabores do Palácio é de fato um filme muito gostoso de se ver. Como tantos outros sobre culinária – tipo A Festa de Babette, para dar só um exemplo –, não deveria ser visto por espectadores com fome, porque a imensa quantidade de sequências em que aparecem belos pratos em close-up é de dar água na boca.
Se pessoas de fino gosto como por exemplo Fernanda e Carlos vissem o filme, teriam urgência em ir a um lugar tipo o Ici Bistrôt. Eu, como sou um mineirim absolutamente sans finesse, fiquei a fim de um pratão de arroz, feijão, batata frita e linguiça.
Anotação em abril de 2014
Os Sabores do Palácio/Les Saveurs du Palais
De Christian Vincent, França, 2012
Com Catherine Frot (Hortense Laborie),
e Arthur Dupont (Nicolas Bauvois), Jean d’Ormesson (Monsieur Le Président), Hippolyte Girardot (David Azoulay), Jean-Marc Roulot (Jean-Marc Luchet), Philippe Uchan (Coche-Dury), Laurent Poitrenaux (Jean-Michel Salomé), Hervé Pierre (Perrières), Brice Fournier (Pascal Lepiq), Roch Leibovici (Olivier Moncoulon), Thomas Chabrol (o chefe de gabinete), Arly Jover (Mary, a jornalista australiana), Joe Sheridan (John, o cameraman australiano)
Roteiro Etienne Comar & Christian Vincent
Inspirado livremente na história real de Danièle Mazet-Delpeuch
Fotografia Laurent Dailland
Música Gabriel Yared
Montagem Monica Coleman
Produção Vendôme Production, France 2 Cinéma, Wild Bunch, TPS Star. DVD Europa Filmes.
Cor, 95 min
***
Filme muito fofo, mostra como a culinária é uma arte, assim encarada por Hortencia, encarregada das refeições do Presidente da França durante dois anos e meio, até que ele fica de dieta e começam a interferir indevidamente na sua forma de trabalhar. Reclamam até das despesas que tem com essas refeições, pois ela se esmera em conseguir os produtos de melhor origem.
Mas uma das cenas mais tocantes é a da conversa entre Hortencia e o Presidente, em que ele diz que quer comida simples, parecida com a que fazia a sua avó; ele lhe conta até que sua diversão durante a infância era ler livros de culinária, que naquela época eram muito bem escritos, com citações que beiravam a poesia.
Quando Hortensia se despede do pessoal da Islândia faz um jantar memorável, todos se emocionam com a sua partida, até os jornalistas que foram lá para fazer uma matéria sobre ela, à sua revelia.
É claro que a exposição de pratos é um caso à parte, mereceria um capítulo de um livro e é interessante como Hortensia vai falando enquanto vai fazendo cada prato, é como se estivesse dando uma aula.
Guenia Bunchaft
http://www.sospesquisaerorschach.com.br
Que bela narrativa, parabéns!
Eu vi esse filme duas vezes e só agora entendi o pq da ruptura naquelas cenas em que Hortense trabalhava numa espécie de cantina para aquele bando de estrangeiros. O cinema francês é complexo, na minha opinião. Aqui na França, esse filme foi bastante criticado, tanto pela atuação “insossa” de Jean d’Ormesson (o presidente), que na verdade era um escritor, quanto pelo exagero do serviço de preparação das refeições do palácio, o que sugere uma burguesia descabida, como na época dos monarcas. O que não combina com a natureza simples do personagem em questão, o qual acabou se revelando um grande apreciador da cozinha familiar. Creio que o enredo e o contexto político justiquem diferentes interpretações.