Pão Preto / Pa Negre

3.0 out of 5.0 stars

Pão Preto é um filme tão espetacularmente bem realizado quanto barra pesada, duro, sombrio. Seus personagens – basicamente gente humilde, camponeses da Catalunha, logo após o fim da guerra civil espanhola, todas as feridas da luta fratricida ainda abertas – são pessoas sem saída, para quem não existe esperança de luz no fim do túnel.

A abertura já é uma porrada. Um homem ajuda seu cavalo a puxar uma carroça por um caminho esburacado. A roda cai num buraco, a carroça pára. O homem (veremos depois que ele se chama Dionís, e é interpretado por Andrés Herrera) percebe que há alguém ali perto – e há mesmo. Um outro homem, com o rosto coberto por um capuz, ataca Dionís, e, depois de uma breve luta, o mata brutalmente. Uma criança de uns 10, 11 anos que dormia dentro da carroça, claramente o filho de Dionís, acorda, e vê o pai sendo assassinado. O assassino não vê o garoto. Joga o corpo do morto dentro da carroça, puxa-a em direção a um enorme desfiladeiro, e a joga desfiladeiro abaixo.

Despencam o cavalo, a carroça, o corpo de um homem assassinado e um garoto.

Apavorante, chocante, violenta, brutal, essa seqüência de abertura é estupidamente bem feita. Indica nitidamente um diretor de talento, competência, domínio do ofício.

Lá embaixo do despenhadeiro, logo após a queda, um menino se aproxima dos destroços. Vê que o garoto ainda está vivo; os dois se conhecem, são amigos; o garoto agonizando diz uma palavra: Pitorliua. O menino sai correndo, vai até o vilarejo, avisa as pessoas sobre a tragédia.

Esse menino, que tem aí entre uns 11 e 13 anos e foi o primeiro a chegar ao local onde despencou a carroça com seus ocupantes, chama-se Andreu (Francesc Colomer), e será o protagonista da história.

As autoridades querem condenar um socialista pelo crime. Não importa que ele não fosse culpado

Andreu é o filho único de Florència e Farriol (interpretados por Nora Navas e Roger Casamajor). Florència trabalha feito escrava em uma indústria têxtil, além de cuidar da casa, do marido, do filho. Farriol tem uma coleção de pássaros, e um passado que o liga aos socialistas – um dos muitos grupos, ao lado dos comunistas, dos anarquistas, dos republicanos, que haviam sido derrotados na guerra civil que dividiu a Espanha ao meio, e da qual saiu vitorioso o fascismo do generalíssimo Francisco Franco.

O garoto Andreu tem que prestar testemunho sobre o que viu – afinal, foi a primeira pessoa a chegar ao local onde estavam mortos Dionís e seu filho. Farriol, o pai, acompanha Andreu à repartição. Logo nos primeiros minutos do filme o espectador vê que o prefeito daquela pequena cidade (ele é interpretado por Sergi López), evidentemente um fascista, franquista, tem, além dos motivos ideológicos para odiar Farriol, outros, mais figadais: ele foi apaixonado por Florència – que optou pelo rival.

A polícia, o prefeito, as autoridades – é tudo a mesmo coisa, mostra o filme – parecem interessados em apontar Farriol pelo assassinato de Dionís e seu filho. E, ao que tudo indica, seria uma condenação política: culpe um socialista por um crime, mesmo que ele não seja o criminoso, e será possível se livrar da pessoa indesejável. Esse, mostra o filme, era o mote das autoridades fascistas.

A última guerra romântica, do Bem contra o Mal

Ali por volta dos 15, 20 minutos de filme, tive a sensação de que ele poderia ficar nisso: mais um de tantos outros filmes espanhóis que procuram, ainda hoje, mais de seis décadas depois, questionar o absurdo da guerra civil, e o absurdo fato de que o lado do Mal venceu.

Sim, porque já foi dito, e muito dito, que, de alguma maneira, a guerra civil espanhola foi a última guerra romântica, a última guerra do Bem contra o Mal – o Bem, naturalmente, representado pela generosidade, pelo ideal socialista de igualdade e justiça, e defendido, como o foi, por gente de boa vontade vinda de todas as partes do mundo, o Mal sendo a Direita, a defesa dos privilégios, dos abastados, dos ricos, os aristocratas mancomunados com os milionários e com a Santa Madre Igreja, todos os filhos da puta juntos contra os sonhadores que buscavam o Novo Homem.

Em boa parte, na imensa maior parte, essa lenda corresponde à mais absoluta verdade dos fatos. Na guerra civil espanhola, travou-se de fato a batalha do Bem Contra o Mal – e o Mal venceu.

O filme vai descascando as camadas de segredos e mentiras em que vive aquela família

Então lá pelos 15, 20 minutos, Pão Preto parece que vai ficar por aí: ainda, e sempre, rememorando a última grande batalha do Bem Contra o Mal.

E, se ficasse, não teria problema. Quantos filmes forem feitos contra o fascismo, tantos serão bem-vindos. Nada contra, absolutamente nada contra os filmes que nos trazem de volta a verdade dos fatos, mesmo os mais repisados de todos, como foi gigantesco o Holocausto promovido pelo nazismo, ou também os menos repisados, como foi gigantesco o genocídio promovido pelo stalinismo na União Soviética.

Mas Pão Preto não fica nisso.

A trama que se constrói a partir de uns 15, 20 minutos de filme, insiste muito na mentira, na criação de lendas, na criação de factóides que não correspondem à verdade.

A família do garoto Andreu vive cercada por mentiras, segredos.

Como em Rashomon do gênio Akira Kurosawa, Pão Preto vai descascando as camadas de segredos e mentiras.

Descasca tantas camadas de segredos e mentiras, que ao fim, desfibrada por inteiro a fruta, não sobra suco algum.

É um filme tremendamente amargo. Poucos filmes são tão amargos quanto este Pão Preto.

Não sobra ilusão alguma, esperança alguma, ao fim de seus 108 amargos minutos de cinema extraordinariamente bem feito.

Desempenhos belíssimos de atrizes maduras e de uma garotinha de 14 anos

Com a Espanha no olho do furacão, com 20% de desemprego, ainda na periferia de uma Europa em choque, sem futuro, não se poderia esperar mesmo uma obra otimista.

O que se tem, com este Pão Preto, é mais uma confirmação de que o espanhol é uma das cinematografias mais impressionantemente talentosas do mundo, hoje.

Ignorante, eu não conhecia o diretor Agustí Villaranga. Nascido na Majorca em 1953, é autor de 16 títulos.

A atriz Laia Marull, que interpreta Pauleta, a mulher do assassinado Dionís, já havia visto como a protagonista de uma beleza de filme sobre mulheres espancadas, Pelos Meus Olhos/Te Doy Mis Ojos. Dá um show de interpretação. Um show. As palavras que ela fala ficam na cabeça da gente como se a gente fosse culpado por aquelas histórias terríveis.

Nora Navas (na segunda foto deste post), que faz Florència, a mãe do protagonista, é uma atriz extraordinária.

Dessas duas atrizes maduras, e de um país de cinematografia tão fantástica, seria mesmo de esperar grandes atuações. Mas o que dizer de Marina Comas (nas fotos acima e abaixo), que faz Núria, a prima do protagonista Andreu?

Meu Deus do céu e também da terra, o que que é aquilo? Marina Comas, nascida em 1996, primeiro filme em 2010, aos 14 anos de idade – linda de uma beleza estranha, interpreta uma garotinha doida, doída, credo em cruz, com um desempenho excepcional, fora de série. É uma grande atriz, uma atriz nata!

O filme foi o mais premiado do ano na Catalunha e em toda a Espanha

Pão Preto, parece, foi o grande filme espanhol de 2010.

A Espanha é um país danado de complicado, com aquela quantidade absurda de regiões que se pretendem autônomas, e então a Catalunha tem o seu próprio Oscar, o Gaudi. Pão Preto, uma produção catalã, teve 15 indicações ao Gaudi, e ganhou 11. A Espanha, essa junção de catalões, bascos, galegos e até mesmo de espanhóis, tem o seu Oscar, o Goya – e Pão Preto teve 14 indicações ao Goya, que se transformaram em nove vitórias.

Eu, pessoalmente, não gosto de filmes (ou livros, ou músicas) que não dão qualquer tipo de esperança. Nem de filmes (ou livros, ou músicas) que não tenham sequer um personagem de caráter que seja admirável.

Não são todas as histórias que podem ter exemplos de dignidade. Não é toda história que tem um Atticus Finch. Não há muitos Atticus Finch andando aí pelo mundo – mas também não há só filhos da puta entre os cada vez mais bilhões de pessoas que dividem este planeta comigo e com você.

Este Pão Negro defende a tese oposta: a de que não há esperança alguma. Como filme, é um brilho. Como entendimento do mundo, me desagrada.

Anotação em novembro de 2011

Pão Preto/Pa Negre

De Agustí Villaronga, Espanha, 2010

Com Francesc Colomer (Andreu), Nora Navas (Florència), Marina Comas (Núria), Roger Casamajor (Farriol), Laia Marull (Pauleta), Mercè Arànega (Sra. Manubens), Marina Gatell (Enriqueta), Elisa Crehuet (Àvia), Lluïsa Castell (Ció), Andrés Herrera (Dionís), Lázaro Mur (o tísico), Sergi López (prefeito), Joan Carles Suau (Pitorliua)

Roteiro Agustí Villaronga

Baseado no romance de Emili Teixidor

Fotografia Antonio Riestra

Música José Manuel Pagán

Produção Massa d’Or Produccions.

Cor, 108 min

***

12 Comentários para “Pão Preto / Pa Negre”

  1. Por uma boa coincidência acabei me deparando com o 50 Anos de Filmes. Ótimo site! Parabéns ao Sérgio Vaz e longa vida ao 50 anos de filmes, que acaba sendo uma grande homenagem e compêndio da sétima arte! Já está nos favoritos!

  2. Apenas ontem tive oportunidade de assistir a esse filme. Sua descrição está perfeita. A história não deixa esperança alguma e o filme é muito bom e impressionante. Parabéns pelo site.

  3. Gostaria de saber como faço pra conseguir esse filme pra mim assiste,eu gostei muito dele .E tenho o enorme interesse de consegui esse filme pra mim assistir com minha família.

  4. Olá, Maycon.
    Não sei como ajudar você.
    O que posso dizer é que o filme passou na TV a cabo, no Max Prime, em 2011 – foi lá que eu assisti.
    Mas não sei se ele saiu em DVD. E não sei pegar filmes na internet.
    Você já fez busca no Google? Tente… Quem sabe?
    Boa sorte.
    Sérgio

  5. Seguinte, pessoal, pra assistir esse filme catalao na web, vcs devem seguir as dicas que eu darei aqui (baixar o filme ja sao outros 500):

    1) va no google e digite “assistir filme pao preto”

    2) deve surgir nos resultados o website ‘www.cinetvx.com’

    3) agora vc apenas deve entrar neste site indicado e tentar saber se o filme citado ja esta sendo exibido la na forma de streaming ( nao exatamente igual ao youtube, mas deve usar o software Adobe Flash Player)

    Enfim, espero ter ajudado vcs a verem este belo e agradavel filme catalao e que eu gostei muito tb, assim como este post, certo ?!?!?!

    Tchau e ate a proxima, galera …

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