Não foi muito feliz o grande Costa-Gavras, cineasta do mundo, sinônimo de cinema político, no filme mais americano de sua carreira. Atraiçoados/Betrayed, de 1988, é ousado ao mostrar a face horrorosa da adesão firme de milhares de americanos às teorias supremacistas em plena década de 80. Mas não chega a ser um bom filme.
A culpa, acho eu, é de outro europeu, este radicado nos Estados Unidos (Costa-Gavras, grego de nascimento, radicou-se na França) – o roteirista Joe Eszterhas, húngaro de nascimento, americano por adoção.
Esse Joe Eszterhas, antes József Eszterházy, criou um roteiro que mistura política com uma história de amor complicada. Costa-Gavras certamente se interessou pelo projeto por causa do lado político – a denúncia sobre como era ampla, em plena época do politicamente correto, a adesão às teses supremacistas, como se mantinha vivo o racismo, como a direita raivosa e extrema era poderosa em plenos anos 80.
Mas o roteiro de Eszterhas, na verdade, concentra-se mais é na outra parte, a atração fatal entre duas pessoas que não têm nada a ver com a outra – os dois personagens principais, interpretados por Tom Berenger e Debra Winger. Esse tema era a fixação de Eszterhas, junto com uma exploração até onde fosse possível de cenas de sexo. E, no cinemão americano dos anos 80, até mesmo pela forçação de barra do próprio Eszterhas, ia-se longe nas cenas de sexo.
Ele fez variações em torno do mesmo tema. É o roteirista de Instinto Selvagem/Basic Instinct, em que policial (Michael Douglas) se envolve com suspeita de assassinato (Sharon Stone, no filme em que cruzou as pernas sem calcinha), e evidentemente acabam trepando. De O Fio da Suspeita/Jagged Edge, em que milionário acusado de matar a mulher (Jeff Bridges) contrata para defendê-lo uma ex-promotora (Glenn Close), e evidentemente acabam trepando. De Invasão de Privacidade/Sliver, em que executiva da área de editora de livros (Sharon Stone, de novo) vai morar em prédio dominado por um voyeur psicopata (William Baldwin), e evidentemente acabam trepando.
Eu, pessoalmente, acho Joe Eszterhas uma baixaria só. O típico sujeito que quer fazer filmes quasepornôs fingindo que não são quasepornôs. Prefiro mil vezes um Just Jaeckin, o diretor do primeiro Emmanuelle, que é direto, vai lá e faz pornô, ainda que soft, como se permitia em 1974, mas sem fingir que está querendo fazer outra coisa. Faz um pornô honesto, e não um quasepornô fingido, metido a besta, mas que na verdade é apenas quase-pornô mesmo.
Bem, mas fazer o quê? Costa-Gavras topou fazer um filme com base num roteiro de Joe Eszterhas.
Deu no que deu.
Uma bela abertura política, sobre um radialista provocador
Não dá para saber, é claro, como foi o relacionamento do diretor grego de filmes políticos sérios com o roteirista húngaro de filmes quase-pornôs nada sério. Não dá para saber se Costa-Gavras insistiu naquela abertura, ou se Joe Eszterhas a escreveu para atrair o diretor, mas o fato é que o filme começa sério, político e um tanto chocante: um sujeito tem um programa de rádio em que faz todo tipo de provocação politicamente incorreta possível – levanta todos os temas mais polêmicos que possa haver, instiga os ouvintes a ligarem para a rádio, para darem sua opinião ao vivo, e os maltrata no ar, dá cacetadas incríveis, absurdas. A uma mulher que liga, por exemplo, diz que ela deve ser gorda, horrorosa – que ligue de novo depois que tiver perdido uns 20 quilos. Pede para que os ouvintes falem o que pensam sobre lésbicas religiosas, homossexuais, masturbação, previdência social, judeus, anti-semitismo, racismo.
O radialista não é um direitista raivoso, um anti-bandido pró pena de morte tipo tantos “comunicadores” do rádio brasileiro. É um agente provocador, um louco, um anarquista – ou talvez um progressista se fingindo de reacionário furioso para ver no que dá. “Me perguntam como deixo transmitir tanto ódio no rádio. Quero que as pessoas desabafem e digam o que pensam. É a liberdade de expressão.”
Parece à primeira vista um Datena, mas na verdade está mais para um Chacrinha politizado, um polemista, uma espécie de cruzamento de Lenny Bruce com David Letterman.
Estamos na seqüência inicial, os créditos iniciais rolando – e o radialista é assassinado a tiros.
Uma agente do FBI disfarçada e um fazendeiro
Corta, e estamos numa quase idílica América rural. A personagem interpretada por Debra Winger – a grande, imensa, fabulosa Debra Winger! – está manejando uma colheitadeira gigantesca num campo de trigo (ou será de milho?). Katie (este é o nome da personagem) rapidamente conhece Gary, fazendeiro bonitão (o papel de Tom Berenger), viúvo, pai de dois filhos gracinhas, filho de uma senhora super gracinha.
Demora muito pouco para que Katie e Gary comecem a transar.
Passam-se uns 20 minutos até o espectador ficar sabendo que Katie é na verdade Catherine, agente do FBI disfarçada de motorista de colheitadeira, colocada ali para se aproximar de Gary, suspeito de ser o assassino do radialista provocador de polêmicas.
Catherine/Katie, caindo de amores pelo fazendeiro bonitão, tem a firme convicção de que ele é gente boa, gente finíssima, e que o FBI está louco na sua suspeita de que ele possa ser um supremacista fanático e assassino. Por sua vez, Gary, o fazendeiro bonitão pai de dois filhos lindos e filho de uma boa senhora, apaixona-se perdidamente pela motorista de colheitadeira.
“A agente do FBI mais estúpida da história do cinema”
Leonard Maltin viu o filme sem qualquer respeito pelo grande Costa-Gavras; tascou 1.5 estrelas (num total de 4). Segundo ele, é um filme sobre a agente disfarçada do FBI mais estúpida na história do cinema, que é enviada para observar os supremacistas brancos no interiorzão profundo dos Estados Unidos mas se apaixona pelo seu alvo. “Um tema importante e genuinamente perturbador é tratado com termos pedantes.”
E sentencia: “A atuação de Winger é virtualmente a única qualidade do filme”.
Isso não acontece muitas vezes, mas, em relação a Atraiçoados, aconteceu: assino embaixo de tudo o que Leonard Maltin disse.
Sim: a personagem de Catherine/Katie é a agente do FBI mais estúpida da história do cinema. E o personagem de Gary, o fazendeiro suspeito, é o bandido mais estúpido da história do cinema. É absolutamente impressionante como são estúpidos os dois personagens centrais, a agente do FBI disfarçada e o suspeito. Até o mais jovem grão de milho (ou será de trigo?) sabe que aquela moça é agente disfarçada do FBI, e não uma bóia quente motorista de colheitadeira. E até a mais barata das balas de espingarda está cansada de saber que aquele fazendeiro bonitão pai amoroso e filho amoroso é um filho da mãe de um racista assassino.
Uma Debra Winger que brilha, apesar de tudo
Deu-se mal, o grande Costa-Gavras, o cineasta provocador, que fez belos filmes políticos contra as ditaduras de direita (Z, sobre a ditadura grega, Estado de Sítio, sobre a ditadura uruguaia) e de esquerda (o magnífico A Confissão, sobre a ditadura comunista na então Checoslováquia). Em 1982, seis anos antes, portanto, deste Atraiçoados, havia feito, com dinheiro americano, um maravilhoso filme sobre o golpe de estado do general Pinochet, que derrubou o primeiro governo marxista eleito livremente na América Latina. Voltaria em 1989 a fazer um filme polêmico (e excelente) com dinheiro americano – Muito Mais que um Crime/Music Box, sobre as suspeitas de que um imigrante europeu havia sido de fato um criminoso nazista.
Neste Atraiçoados, Costa-Gavras desperdiçou dinheiro americano e uma atriz extraordinária, uma das melhores que já existiram.
Debra Winger se esforça, faz o que pode. As poucas qualidades que este filme tem vêm dela. Debra Winger é tão excepcional que é capaz de emprestar brilho até mesmo à agente do FBI mais imbecil já retratada pelo cinema. Como dizia Dame Pauline Kael: Debra Winger era uma das pouquíssimas razões, na década de 80, para que alguém saísse de casa e fosse ao cinema.
O problema é (diabo, vou me permitir um trocadalho do carilho, eu, que detesto trocadalho) que Costa-Gavras e Debra Winger foram atraiçoados por um roteirista da pior espécie, um sacripanta, um engodo, um safado de um sujeito que queria mesmo era fazer filmes quase-pornôs.
Costa-Gavras é grande. Debra Winger é imensa. Joe Eszterhas é assim uma espécie de Datena. E Atraiçoados é mais Joe Eszterhas que Costa-Gavras e Debra Winger.
Um adendo quatro anos depois
A anotação acima é de novembro de 2010. Aqui vai um adendo escrito em agosto de 2014:
Os filmes, é claro, permanecem como são, mas as pessoas mudam. Podemos responder a um filme de forma diferente daquela com que respondemos antes. Até mesmo o momento em que vemos um filme pode influenciar no julgamento que fazemos dele.
Digo isso porque, agora, agosto de 2014, revimos Atraiçoados, e gostei bem mais do que da vez anterior, quando fiz a anotação acima. Estávamos zapeando, pegamos o filme desde o iniciozinho, no Telecine Cult. Mary disse que não se lembrava bem dele (eu lembrava bastante de toda a trama), e então fomos vendo o início – e simplesmente não conseguimos parar de ver.
Não que seja um filme de fato bom. Não é. Tem os defeitos que enfatizei no comentário acima – a relação entre a agente do FBI e o supremacista assassino é por demais inverossímil, absurda. E o que já era inverossímil vai ficando cada vez mais, e o filme fica patético nas sequências finais – em especial a última, do reencontro de Katie com a garotinha Rachel, algo absolutamente fora de qualquer sentido.
Acho, no entanto, que minha antipatia pelo estilo quasepornô do roteirista Joe Eszterhas me fez exagerar um pouco na diatribe contra Atraiçoados. E é necessário dizer que aqui não há, nem de longe, cenas apelativas, forçadas, gratuitas de sexo. Há pouquíssimas seqüências de sexo, e absolutamente discretas.
E, apesar de todos os defeitos do roteiro, o filme tem clima, fisga, envolve o espectador. Nem poderia ser diferente, com a direção segura de Costa-Gavras e o talento imenso de Debra Winger.
E, sobretudo, o filme é importante por mostrar a força dos radicais racistas dentro da sociedade americana, o tamanho da ameaça que eles representam à democracia, a toda a humanidade.
Anotação original em 11/2010, com adendo em 8/2014.
Atraiçoados/Betrayed
De Costa-Gavras, EUA, 1988
Com Debra Winger (Katie Phillips/Cathy Weaver), Tom Berenger (Gary Simmons), John Heard (Michael Carnes), Betsy Blair (Gladys Simmons), John Mahoney (Shorty), Ted Levine (Wes), Jeffrey DeMunn (Flynn), Maria Valdez (Rachel Simmons), Brian Bosak (Joey Simmons)
Argumento e roteiro Joe Eszterhas
Fotografia Astral Bellevue e Patrick Blossier
Música Bill Conti
Produção Irwin Winkler, MGM. DVD PlayArte
Cor, 127 min
R, **
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