(Disponível no Franciellen Taynara do YouTube em 12/2024.)
Bette Davis teve a nona de suas 11 indicações ao Oscar pela atuação como Margot Channing em A Malvada/All About Eve, de 1950. Não levou a estatueta na cerimônia de março de 1951, mas tinha já duas delas em casa, e era uma das maiores estrelas do cinema mundial quando aceitou fazer, naquele mesmo ano de 1951, um papel pequeno, uma participação especial, em Telefonema de um Estranho/Phone Call from a Stranger.
Nos créditos iniciais e nos cartazes do filme, seu nome aparece como “also starring Bette Davis” – também estrelando. E seu personagem só age na tela quando estamos com 77 minutos do filme que dura 96.
A participação especial de Bette Davis, no auge da fama, é apenas um dos elementos interessantes de Telefonema de um Estranho, este bom filme que está disponível no YouTube em uma cópia de qualidade fantástica.
É um drama sério, feito para audiências adultas, maduras, sobre relacionamentos afetivos, o casamento, a infidelidade conjugal. Só por isso, por tratar de infidelidade conjugal em 1952, em plena vigência do Código Hays, o conjunto de normas de autocensura aceito pelos estúdios de Hollywood, o filme já merece respeito.
Lançado em um dos períodos mais conservadores, caretas da História, o filme tem a coragem de dizer com todas as letras que a sociedade é machista – hoje se diria estruturalmente machista. Porque, enquanto as mulheres em sua grande maioria enfrentam a infidelidade dos maridos, são poucos os homens – e só os homens muito fortes – que conseguem ir em frente no casamento depois de um caso de infidelidade da mulher.
E, de quebra, o filme nos mostra, nas histórias de três dos personagens centrais, aquela verdade inconteste que é até estribilho de canção country: there must be two sides to every story. Sempre há dois lados para cada história.
As sinopses trazem um grande spoiler. Aqui não vai ter
Todo comentário sobre filme precisa necessariamente de um resumo da trama, uma sinopse, como sempre me diz, mesmo não usando exatamente esta frase, meu amigo Valdir Sanches. A questão aqui é que uma sinopse da história – criada por I.A.R. Wylie e roteirizada pelo grande Nunnally Johnson, que também produziu o filme na 20th Century Fox – terá que contar o que, afinal, é o cerne da trama. Só que o cerne da história acontece a partir do momento em que chegamos a 40 minutos do filme que dura, como já foi dito, 96… E o que acontece aos 40 minutos é algo totalmente inesperado, uma grande reviravolta. Relatar o que vem depois é um gigantesco, absurdo spoiler.
A sinopse no IMDb faz isso – revela o inesperado que os realizadores só apresentam na metade do filme. A avaliação de Leonard Maltin – que é positiva, define a narrativa como “engrossing”, cativante, absorvente, e vem com a nota 3 em 4 – também faz o spoiler.
O Guide des Films do mestre Jean Tulard faz uma sinopse bastante detalhada de toda a trama – dá o spoiler e revela tudo, até o fim. A avaliação geral que faz de Appel d’un Inconnue é também muito positiva, e já transcrevo de imediato: “Excelente roteiro, muito bem realizado, um grande momento do cinema humanista”.
Perfeito, perfeito. É exatamente isso, na minha opinião. Um grande momento do cinema humanista.
Bem Como eu fujo de spoiler feito o diabo da cruz, o fanático do raciocínio, vou relatar o que é mostrado no início da narrativa.
Um homem sai de casa, foge da família
A primeira pessoa que vemos, bem na abertura, logo após os rápidos créditos iniciais, é o protagonista da história. Está saindo de casa à noite, sob uma chuva fortíssima, entra no táxi parado junto à calçada e dá a direção: o aeroporto.
Logo veremos que se chama David Trask – o papel de Gary Merrill.
Dá para perceber perfeitamente que ele está saindo de fininho, à francesa. Dá uma olhada para a casa, como para se certificar de que não está sendo visto.
No aeroporto, bastante cheio de gente, com vôos atrasados por causa da chuva forte, compra uma passagem para Los Angeles – e o espectador vê que ele dá um nome falso, Joseph H. Collins, completamente diferente do D. Trask gravado em sua mala. Vai até a cabine do telefone público e faz uma ligação. O telefone que toca acorda sua mulher, que olha para a cama vazia ao lado da sua e se espanta.
– “Deixei um bilhete na mesa, para que você não pensasse que eu tinha feito alguma maluquice. Não é nada disso. É só que… Bem, eu não aguentava mais. Vou ter que encontrar um jeito de viver sem você, é isso.”
Na cama, sua mulher (veremos que se chama Jane, o papel de Helen Westcott) pergunta onde ele está.
– “Diga às meninas que surgiu um caso inesperado. Vou encontrar outra explicação quando tiver tempo para pensar. Mas não conte nada a elas ainda.”
Jane, que vemos em close-up, o rosto bonito tomado pelo espanto, pela surpresa, pelo choque: – “Para onde você está indo?”
– “Falo com você quando chegar lá. Diga a elas que pode demorar um bom tempo. Assim elas não farão perguntas até nós decidirmos que explicação vamos dar.”
Jane pede que ele não vá embora. Implora, o rosto tomado pela dor, a voz embargada.
– “Por que não?”, diz homem. “Você não vai ficar sozinha por muito tempo, não é?”
Jane: – “Dave, Dave… Você nunca cometeu um erro na vida?”
Frio, duro, David responde que não ligou para discutir o assunto mais uma vez. – “Apenas cuide das crianças. Você terá notícias minhas em breve. Boa noite.”
Talento é uma maravilha. Em menos de cinco minutos, incluídos aí os créditos iniciais, o roteiro de Nunnally Johnson já apresentou para o espectador os fatos básicos acerca do protagonista da história.
O mau tempo deixa os passageiros no aeroporto
Uma placa do aeroporto diz que é Midland a cidade de David Trask. Enquanto aguarda a chamada para o vôo, David fica conhecendo três pessoas que embarcarão com ele no avião que vai seguir rumo ao Oeste.
O vôo enfrenta turbulências bravas; o aeroporto de Salt Lake City, onde haveria uma escala, estava fechado por causa do mau tempo, e os pilotos fazem uma parada em Vega. Ali o avião ficará retido por um longo tempo, a noite toda.
Com isso, aquelas quatro pessoas que até o dia anterior não se conheciam acabam ficando muito próximas. Conversam bastante, trocam confidências, abrem os corações uns para os outros.
É uma situação comum, essa, tanto na vida real quanto na ficção – e tanto numa quanto na outra é algo sempre rico, interessante, atraente. Ali estão pessoas de diferentes lugares, diferentes vivências, diferentes profissões, que por mero acaso, por alguma circunstância fortuita qualquer, se vêem no mesmo lugar ao mesmo tempo – e daí a pouco parece que se conhecem desde sempre.
São, todos eles, pessoas entre os 30 e poucos e os 50 anos. E são todos casados. Faixa etária e estado civil provavelmente são as únicas coisas que têm em comum.
A única mulher do quarteto é Binky Gay – o papel de Shelley Winters, muito bela na flor dos 31 anos de idade quando o filme foi rodado, 1951, Oscar de melhor atriz por seu papel em Um Lugar ao Sol em 1952, ano em que o filme foi lançado. Binky Gay é o nome artístico que ela havia escolhido; saíra um ano antes de Los Angeles, deixando para trás o marido, para tentar a carreira como cantora em Nova York, mas tudo o que conseguira tinha sido um bico como stripper em alguns nightclubs.
O marido, Mike Carr (Craig Stevens), era filho de uma cantora que no passado remoto havia tido algum sucesso na Broadway, Sally Carr (Evelyn Varden). Mike também era cantor, e trabalhava com a mãe em um nightclub que ela havia criado. A sogra e ela – Binky conta para David – nunca haviam se dado bem. Muito antes ao contrário: a sogra fazia todo o possível e imaginável para infernizar a vida da moça.
Aquela era a primeira viagem de avião de Binky, e ela morria de medo. Sentou-se ao lado de David na saída de Midland, e pediu para que ele segurasse sua mão quando começaram as turbulências.
Sentado atrás dos dias, Eddie Hoke logo comentou com o dr. Fortness que o rapaz era rápido no gatilho. Bobagem dele. Nem a moça tinha qualquer interesse de se envolver com David, nem o advogado que fugia do casamento após ter sido traído pela mulher estava procurando uma nova relação.
Um vendedor alegre, piadista, um médico tenso, amargurado
Não poderia haver duas pessoas mais diferentes do que Eddie Hoke (o papel de Keenan Wynn) e o dr. Fortness (Michael Rennie).
Eddie, vendedor, caixeiro viajante bem sucedido, é daqueles tipos que estão o tempo todo alegres, fazendo brincadeiras, contando piadas – e reparando em tudo, como no fato de que David e Binky estavam com as mãos dadas durante um trecho do vôo. Uma pessoa que adora falar da vida dos outros.
Usa brinquedinhos meio bobos, como objetos que parecem dentões gigantescos de coelho, olhos esbugalhados. E, lá pelas tantas, saca do bolso uma foto de sua mulher, vestida de maiô, e a apresenta para os outros três.
A câmara focaliza a foto que ele exibe, e o espectador identifica Bette Davis – mas uma Bette Davis bem mais jovem do que a atriz tinha em 1952, ano do lançamento do filme.
A exibição da foto da mulher bela, jovem, coxas à mostra, deixa os três novos amigos de Eddie um tanto sem jeito, um tanto espantados com o gesto ousado, um tanto fora de propósito. Mas serve também, é claro, para avisar ao espectador que Bette Davis virá aí…
Sempre expansivo, Eddie distribui um cartão de visitas a cada um dos três novos amigos – e sugere que todos façam o mesmo. Para que todos se reúnam mais uma vez, depois que chegarem a Los Angeles. Que se encontrem de novo – e diz que eles são como os Quatro Mosqueteiros.
O dr. Fortness é um sujeito que está sempre sério, sisudo. Na verdade, está sob forte tensão. O espectador ficará sabendo disso através de uma conversa que o médico tem com David, em um momento em que estão apenas os dois, no aeroporto de Vega, o avião parado à espera do fim da tempestade para retomar a viagem.
O médico bebe um destilado daquele jeito mais comum nos filmes que na vida real – no gargalo, de maneira sôfrega, ansiosa –, enquanto relata para o advogado que havia acabado de conhecer um fato acontecido cinco anos antes. Uma tragédia, que mudara toda a sua vida, que o afastara da mulher e do filho único, as duas pessoas que ele amava de paixão.
À medida em que o dr. Fortness vai contando para David os eventos que resultaram na tragédia, o espectador vai vendo na tela o que está sendo narrado. Era uma noite de sábado, e o médico estava no clube de campo jantando com sua bela mulher (o papel de Beatrice Straight, uma atriz da Broadway que estava então estreando no cinema) e vários amigos. Ligam do hospital pedindo que ele vá até lá com urgência para operar um garoto mexicano com crise de apendicite. Apesar de já ter bebido muito, o médico pega seu carro; um colega e amigo, Brooks (Hugh Beaumont), vai com ele. Na estrada, o dr. Fortness acelera muito mais que o necessário. Brooks conversa com ele, tenta convencê-lo a entregar o volante, mas bêbado, a gente sabe muito bem, é foda – ainda mais quando alguém insinua ou diz abertamente que ele está bêbado.
O filme é uma homenagem à solidariedade
Admito, confesso que ali quando o filme estava com cerca de meia hora eu me perguntava (embora sem coragem vocalizar para a Mary) onde o roteiro de Nunnally Johnson queria chegar. Não é que não estivesse gostando do filme. Não, não é isso, de forma alguma. Estava gostando de tudo, dos personagens bem construídos, dos atores, da forma inteligente, talentosa, com que o roteiro ia nos apresentando aquelas quatro pessoas.
Aí, quando o filme está com 40 minutos, há uma grande surpresa. Uma inesperada reviravolta.
E o que acontece depois é que é o cerne da obra.
Creio que não chega a ser spoiler para o eventual leitor que ainda não viu o filme contar que David Trask dará telefonemas – pela ordem – para a sra. Fortness, para Mike Carr (a mãe dele, Sally Carr, é quem atende) e, finalmente, para Marie Hoke. Marie Hoke, que surge na tela aos 77 minutos do filme que dura 96, é, como já foi dito, o papel de Bette Davis.
A mulher do médico, a sogra da cantora que não conseguiu sucesso, a mulher do vendedor sempre alegre, brincalhão – todas recebem um telefonema de um estranho. A Phone Call from a Stranger.
Também creio que não chega a ser spoiler registrar que, no verbete elogiativo sobre Appel d’un Inconnu, o Guide des Films de Jean Tulard especifica que, com relação à mulher e ao filho do médico e também ao marido da cantora, David Trask é de grande ajuda – ao passo que, quando conhece Marie Hoke-Bette Davis, ele é que é ajudado, ele é que aprende, ele é que se engrandece.
Um sujeito que ajuda pessoas que até então não conhecia. Um sujeito que é ajudado por uma pessoa que até então não conhecia.
A solidariedade. A capacidade que o bicho homem tem de ajudar o outro – essa característica que faz a gente achar que talvez a humanidade não tenha sido assim uma invenção que não deu certo.
“Um grande momento do cinema humanista.”
Diretor e roteirista estavam em plena forma
Telefonema de um Estranho foi o terceiro e último dos filmes em que Bette Davis (1908-1989) contracenou com Gary Merrill (1915-1990). Haviam feito juntos o já citado A Malvada/All About Eve (1950) e Mulher Maldita (1951). Foram casados entre 1950 e 1960 – ela foi a segunda mulher dele, ele foi o quarto marido dela.
Tenho quase a certeza de que Bette Davis aceitou fazer um papel pequeno, uma participação especial neste Phone Call from a Stranger por amor ao marido, para dar força ao marido.
Gary Merrill é o protagonista da história, o ator principal do filme. Por razões exclusivamente comerciais, marqueteiras, no entanto, seu nome não aparece primeiro nos créditos iniciais e nos cartazes do filme. O nome no alto, o nome em primeiro, o top billing ficou com Shelley Winters – porque seu nome atraía mais gente às bilheterias do que Gary Merrill. Como já foi dito, a atriz havia sido premiada com o Oscar naquele ano de 1952, o ano em que o filme foi lançado.
Shelley Winters, aproveito para registrar, ganhou dois Oscars – este aí por seu papel como a pobre (em todos os sentidos) Alice Tripp de Um Lugar ao Sol, a adaptação para o cinema de Uma Tragédia Americana, de Theodore Dreiser, talvez o romance mais comunista da literatura norte-americana, e o de melhor atriz coadjuvante por O Diário de Anne Frank (1959). Shelley levou para casa duas estatuetas, exatamente como Bette Davis – mas foi indicada apenas quatro vezes, contra 11 de Bette.
E aí vejo que já escrevi umas 230 linhas sobre Phone Call from a Stranger e não citei uma única vez o nome do diretor, Jean Negulesco.
O nome Jean Negulesco (1900-1993) me faz lembrar de comédias musicais, romances. divertissementg – não propriamente de dramas sérios para platéias adultas. Diacho: é o cara que fez Como Agarrar um Milionário (1953), A Fonte dos Desejos (1954), Papai Pernilongo (1955), A Lenda da Estátua Nua (1957). Verdade. Mas é também o cara que fez os dramas Acordes do Coração (1946), Feras Que Foram Homens (1950), As Chuvas de Ranchipur (1955).
Os críticos não gostam muito de Jean Negulesco, um romeno que estudou pintura em Paris, foi expor seus trabalhos nos Estados Unidos em 1927 e resolveu se radicar por lá. Tanto Jean Tulard quanto Rubens Ewald Filho elogiam, em seus dicionários de cineastas, alguns dos filmes que dirigiu na época em que foi contratado pela Warner, de 1941 a 1948, mas dizem que ele parece ter perdido o talento quando foi contratado pela Fox, no final dos anos 40.
Já do produtor e autor do belo roteiro deste Phone Call From a Stranger os críticos costumam falar muito bem. Jean Tulard, por exemplo, afirma que Nunnally Johnson (1897-1977) é “um dos roteiristas mais importantes de Hollywood”. Bem, o cara escreveu – para citar só um – o roteiro de Vinhas da Ira, o classicão de John Ford adaptado do romance classicão de John Steinbeck.
Jean Tulard diz sobre o trabalho de Nunnally Johnson como diretor: “Criticou-se nos seus filmes uma tendência ao excesso de diálogos – pecado menor dos roteiristas que se tornaram realizadores –, mas ele utilizou com habilidade o cinemascope e provou ser uma autoridade na direção de atores”.
Estavam em excelente forma tanto o roteirista Nunnally Johnson quanto o diretor Jean Negulesco quando fizeram este Telefonema de um Estranho. É um filme muito bom.
Anotação em dezembro de 2024
Telefonema de um Estranho/Phone Call from a Stranger
De Jean Negulesco, EUA, 1952
Com Gary Merrill (David Trask),
Shelley Winters (Binky Gay, a sra. Michael Carr), Michael Rennie (Dr. Fortness), Keenan Wynn (Eddie Hoke)
e Evelyn Varden (Sally Carr, a sogra de Binky), Craig Stevens (Mike Carr, o marido de Binky), Beatrice Straight (Mrs. Fortness), Ted Donaldson (Jerry Fortness, o filho do médico), Helen Westcott (Jane Trask, a mulher de David), Bette Davis (Marie Hoke, a mulher de Eddie), Warren Stevens (Marty Nelson), ]Sydney Perkins (aeromoça), Hugh Beaumont (Dr. Brooks, o colega do dr. Fortness), Thomas Jackson (Mr. Sawyer), Harry Cheshire (Dr. Fletcher), Tom Powers (Dr. Fernwood), Freeman Lusk (Thompson), George Eldredge (médico), Nestor Paiva (garçom), Perdita Chandler (Mrs. Brooks), Genevieve Bell (Mrs. Fletcher), George Nader (o piloto), William Neff (o co-piloto), John Doucette (bartender), Ruth Robinson (enfermeira)
Roteiro Nunnally Johnson
Baseado em história de I.A.R. Wylie
Fotografia Milton Krasner
Música Franz Waxman
Montagem Hugh S. Fowler
Direção de arte Lyle Wheeler, J. Russell Spencer
Figurinos Elois Jenssen
Produção Nunnally Johnson, 20th Century Fox.
P&B, 96 min (1h36)
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Título na França: “Appel d’um Inconnu”. Em Portugal: “Chamada de um Desconhecido”.