(Disponível na Na Franciellen Taynara do YouTube em 1/2025.)
Pier 5, Havana não é, de forma algum, um grande filme – mas, diabo, é uma fantástica, extraordinária, fascinante peça de museu. Foi lançado em outubro de 1959, ainda não completados sequer 10 meses da Revolução Cubana que culminou com a fuga do ditador Fulgêncio Batista, sua família e cerca de 180 aliados mais próximos, e a entrada triunfal em Havana dos rebeldes comandados por Fidel Castro.
A ação se passa em Havana poucas semanas após a vitória dos revolucionários. O protagonista da história, Steve Daggett (o papel de Cameron Mitchell), chega a Havana para tentar encontrar seu maior amigo, Hank Miller, que havia desaparecido imediatamente após a derrubada da ditadura de Batista.
Em suas primeiras horas em Havana, Steve Daggett vai reencontrar seu grande amor, a bela Monica (Allison Hayes), que havia se casado com Hank, separado dele e agora era a mulher – teúda e manteúda – de um milionário cubano, Fernando Ricardo (o papel de Eduardo Noriega). Milionário, sim, mas colaborador do novo governo, ao qual fazia graúdas doações. A parte romântica da trama é bastante interessante – mas o mais importante é que o americano recém-chegado vai acabar descobrindo que há um gigantesco esquema de contra-revolucionários, pró-Batista, que planeja tomar de volta o poder.
Steve Daggett, o herói, o protagonista, enfrentarás os contra, lutará a favor do governo revolucionário de Fidel Castro.
Nos cartazes do filme, há a expressão “newly freed Cuba” – a recém-libertada Cuba.
Um filme norte-americano que faz forte defesa da Revolução Cubana, do governo revolucionário que derrubou o ditador Batista, que liberou Cuba.
Ah, meu… É sensacional!
Um triângulo amoroso que vira um quadrado
O filme começa com um grande mapa da ilha de Cuba, seguido por tomadas tiradas de cinejornais da época, mostrando movimentação de guerrilheiros nas montanhas, agitação nas ruas, a chegada dos rebeldes a Havana. E vamos ouvindo a voz em off do protagonista da história, Steve Daggett-Cameron Mitchell:
– “A revolução em Cuba durou cinco anos. Durante todo esse tempo, eu li sobre isso nos jornais de Miami. Nunca prestei muita atenção. E de repente toda a ilha havia explodido. O rádio está cheio disso. Batista e seu governo estavam em fuga. Um cara chamado Castro, que havia transformado um punhado de rebeldes em um exército vitorioso, era o novo herói. Ganhara a revolução e tomara Havana.”
Vemos um avião no ar, enquanto a voz em off continua narrando:
“Assim que as companhias aéreas retomaram seus horários para Cuba, consegui uma passagem em um dos primeiros vôos que saíram de Miami para lá.”
Uma tomada de Steve Daggett-Cameron Mitchell na janelinha do avião, olhando para baixo.
“O jornal disse que ainda havia alguns problemas em Havana. Mas eu tinha os meus próprios problemas, e isso era o mais importante para mim. Agora está lá a própria Havana, e em algum lugar lá embaixo meu melhor amigo, Hank Miller, havia desaparecido. Com todo o tiroteio que houve durante a revolução, eu não sabia se Hank estava vivo ou morto, mas tinha que descobrir. Eu devia isso a ele e também à minha consciência. Fazia muitos anos que não ia a Havana, mas tudo parecia igual. Tranquila. Pacífica. Não parecia que tinha havido uma revolução ali.”
Assim que desembarca, Steve é parado por um sargento de polícia, uniformizado (o papel de Paul Fierro), e informado de que deve ir ao gabinete do tenente Garcia.
O tenente Garcia (interpretado por Michael Granger) é uma figura simpática, tranquila – e bem informado. Sabia que Steve Daggett, de Miami, havia telefonado duas vezes, nos últimos dias, ao consulado dos Estados Unidos ali em Havana sobre o desaparecimento de um senhor Miller. O cônsul – ele explica para Steve – havia falado com a polícia, mas, infelizmente, não havia tido sucesso na busca por Miller. Sim, Miller tinha tido vários empregos como mecânico, o último deles em uma fábrica de barcos perto do píer 5. Ele, Steve Daggett, era dono de um pequeno campo de pouso perto de Miami, e havia oferecido um emprego a Miller.
Steve confirma as informações dadas pelo tenente, inclusive a de que Miller tinha problemas com a bebida. E acrescenta que Miller havia aceitado a oferta de emprego, prometera viajar logo para Miami – mas não dera mais notícia.
O tenente diz que gostaria de levar Steve para conhecer uma pessoa. – “Isso pode ajudar na busca por seu amigo.”
A tal pessoa morava muitíssimo bem, em um prédio de gente rica – a voz em off de Steve narra para o espectador.
A cara que Steve-Cameron Mitchell faz quando entra na imensa sala de estar e vê a bela mulher, elegantissimamente vestida, é de absoluto choque.
O tenente Garcia faz a apresentação: – “Sr. Daggett, gostaria que conhecesse a esposa de Hank Miller.”
Monica Gray-Allison Hayes repete para o tenente o mesmo que já havia dito ao ser interrogada dias antes: que estava separada de Hank, e os dois não haviam se visto nas últimas semanas antes que ele fosse dado como desaparecido.
Chega uma visita – o milionário cubano Fernando Ricardo, atual namorado da bela Monica, e financiador de seu estilo de vida luxuoso. O tenente o apresenta a Steve (e ao espectador, é claro) como “um dos cidadãos mais eminentes de Cuba”.
Steve faz uma pergunta fantástica: – “Eminente antes de Castro ou depois?” A resposta do tenente: – “O sr. Ricardo não se envolve com a política. É dono de muitas plantações, e também um dos homens mais caridosos de Cuba com nosso povo.”
Antes de ir embora do apartamento, o tenente Garcia tira uma carta que trazia no bolso do paletó:
– “Já que a srta. Gray aparentemente não reconheceu o sr. Daggett… Uma foto muito interessante dela com o sr. Daggett e seu marido desaparecido…”
Na foto que ele mostra para Monica e o milionário, ela aparece entre Hank Miller e Steve Daggett, os três sorridentes, em trajes de banho, em uma praia, seguramente em Miami.
– “Meus homens a encontraram quando foram ao quarto do sr. Miller.”
De volta à sala do tenente na delegacia de polícia, Steve demonstra sua irritação: se Garcia sabia que ele e Monica se conheciam, por que raios quis levá-lo até ela daquela forma, de surpresa? O tenente o faz entender que tinha motivo para isso: queria checar a reação dos dois ao se reverem. Afinal, haveria a possibilidade de os dois terem feito Hank Miller desaparecer…
Como eu disse antes, a parte romântica da trama é bastante interessante. Dois grandes amigos que amavam a mesma mulher – que era apaixonada por um mas casou com o outro. E o triângulo amoroso dos três americanos nada tranquilos em Havana vira um quadrado quando a bela vira teúda e manteúda do ricaço cubano.
Mas o mais importante é que os destinos de todos os quatro vão rapidamente se cruzar com os planos de contra-revolucionários que queriam de volta a ditadura de Fulgêncio Batista.
Autores e diretor, nomes hoje pouco conhecidos
Uma história interessante, impactante, para um filme feito rapidamente, com a pressa, a urgência do jornalismo. É de fato fantástico que tenham realizado o filme e o lançado apenas nove meses e pouco após a revolução.
Os créditos iniciais informam que a história foi criada por Joseph Hoffman, e o roteiro é de James B. Gordon.
Joseph Hoffman (1909-1997) foi um escritor e roteirista nascido em Nova York, que, segundo o IMDb, se especializou em escrever para filmes B de vários gêneros – ação, mistério, comédias, capa e espada. Começou na Fox, entre 1935 e 1941, e depois passou pela Monogram, Columbia, RKO e Universal. Entre os filmes mais conhecidos com roteiros de sua autoria estão coisas como A Rainha dos Piratas (1950) e Contra Todas as Bandeiras (1952), mas também Sinfonia Prateada/Has Anybody Seen My Gal, uma comédia miusical com Piper Laurie e Rock Hudson dirigida pelo grande Douglas Sirk.
Já James B. Gordon era um pseudônimo usado por Robert E. Kent (1911-1984), que foi também o produtor deste Pier 5, Havana. Era um escritor prolixo: sua filmografia como roteirista tem 95 filmes, de todos os gêneros possíveis e imagináveis, de drama dos tempos de Jesus Cristo e da antiguidade (A Serpente do Nilo, 1953) a western (Aliança de Sangue, 1952), passando por policial noir (Passos na Noite, 1959) e musical (Ao Balanço das Horas, 1956). Como produtor, sua filmografia contém 44 títulos.
O diretor do filme é um tal de Edward L. Cahn (1899-1963). Sua filmografia como diretor tem 128 títulos, realizados entre 1931 e 1962. A conta é fácil: o cara fez em média quatro filmes por ano. Segundo o IMDb, ele foi conhecido em Hollywood como o “one-week wonder”, a maravilha de uma semana – tempo de que precisava para terminar um filme.
Apenas no ano de 1959, o ano deste Pier 5, Havana, foram lançados nove filmes dirigidos por ele. Nove, meu!
No seu Dicionário de Cinema – Os Diretores, Jean Tulard dedica a Edward L. Cahn cinco linhas: “No ativo desse ex-montador aparece um brilhante western, Law and Order, em que Walter Huston era Wyatt Earp, o xerife do ajuste de contas em O.K. Corrall, e dois bons filmes de terror, Zombies of Mora-Tau e The Four Skulls of Jonathan Drake.”
Cameron Mitchell e Allison Hayes eram bem famosos
Como seguramente muitos dos filmes do produtor e roteirista Robert E. Kent e do diretor Edward L. Cahn, este Pier 5, Havana é o mais puro filme B que pode haver. Os filmes B, extremamente comuns e populares em especial entre os anos 1930 e 1950, tinham baixo orçamento, entre US$ 50 e US$ 200 mil, eram mais curtos que os classe A – tinham entre 55 e 70 minutos –, eram rodados em até três semanas, no máximo, e não tinham grandes astros no elenco.
Cameron Mitchell (1918-1994), o principal ator de Pier 5, Havana, nunca chegou a ser assim do nível de Glenn Ford, Kirk Douglas, Robert Mitchum, William Holden, para citar só alguns astros da sua geração; não chega a figurar, por exemplo, no livro 501 Movie Stars, editado por Steven Jay Schneider. Mas teve, sim, ampla fama.
Sua filmografia contém inacreditáveis 240 títulos, incluindo diversas séries de TV, como Chaparral, que teve 97 episódios entre 1967 e 1971. Em 1953, trabalhou em Como Agarrar um Milionário, ao lado de Marilyn Monroe, Lauren Bacall e Betty Grable, e em 1955 esteve ao lado de Doris Day e James Cagney em Ama-me ou Esquece-me.
E essa Allison Hayes, que faz Monica Gray, vinha de um sucesso extraordinário, no papel central de Attack of the 50 Foot Woman, no Brasil A Mulher de 15 Metros (1958), que se tornou clássico e cult ficção-científica/horror B. “Qualquer pessoa que ame os filmes B dos anos 50 aprecia a adorável Allison Hayes”, diz o fã apaixonado que escreveu uma minibiografia da moça para o IMDb. “Nascida Mary Jane Hayes em 6 de março de 1930 em Charleston, West Virginia, a belíssima ruiva foi a concorrente de Washington, D.C., no concurso de Miss America de 1949. (…) Começou a carreira em uma estação de TV em Washington antes de partir para Hollywood no início dos anos 1950. Allison começou na Universal Pictures; o estúdio a preparou bem, mas apenas para filmes B.”
Morreria em 1977, com apenas 47 anos, de leucemia.
Sobre o elenco, é necessário fazer um registro. O Eduardo Noriega que faz o papel do milionário Fernando Ricardo nasceu na Cidade do México, em 1916, e morreu em 2007; sua filmografia tem 173 filmes – o mais conhecido deles, segundo o IMDb, é As Duas Faces de Zorro (1981).
Há um outro Eduardo Noriega, bem mais jovem, espanhol de Santander, Cantábria, nascido em 1973. Esse Eduardo Noriega espanhol, que não tem nada a ver com o mexicano, é um dos grandes atores do cinema espanhol. Atuou em dois grandes filmes de Alejandro Amenábar, Morte ao Vivo/Tesis (1996) e Preso na Escuridão/Abre los Ojos (1997), e trabalhou também em outros bons filmes que já foram comentados neste site, como O Que Você Faria?/El Método (2005), Expresso Transiberiano/Transsiberian (2008), Mãos Que Curam/El Mal Ajeno (2010), O Que os Homens Falam/Una Pistola en Cada Mano (2012).
O novo regime ainda não era visto como bicho-papão
É preciso lembrar: em outubro de 1959, quando o filme foi lançado, Fidel Castro e o novo regime cubano ainda não eram o terrível bicho-papão, a pavorosa ameaça comunista ao Mundo Democrático Ocidental instalada a 365 km de Miami que viria a ser aos olhos dos governos e de boa parte da população dos Estados Unidos. (Ahnnn… Talvez seja necessário avisar que há alguma ironia na frase acima.)
Sim, Fidel ainda era o líder dos guerrilheiros que libertaram Cuba de uma ditadura cruel e corrupta.
A Casa Branca havia reconhecido formalmente o novo governo poucos dias após Fidel e seus companheiros terem tomado o poder. É verdade que o então presidente da República, o republicano Dwight D. Eisenhower, não recebeu Fidel quando este visitou os Estados Unidos em abril de 1959 – mas as coisas só ficaram mais feias quando o regime de Castro anunciou, em julho de 1960, que todas as muitas empresas norte-americanas em Cuba seriam nacionalizadas sem indenização.
Em janeiro de 1961 os EUA romperam relações diplomáticas com Cuba – que passou, a partir de então, a se aproximar cada vez mais da União Soviética então dirigida pelo sucessor de Stálin, Nikita Khruschev. Em abril daquele mesmo ano, forças aéreas e navais dos Estados Unidos – já então liderados pelo jovem democrata John F. Kennedy – deram total apoio a uma tentativa de invasão de Cuba por cerca de 1,4 mil contra-revolucionários que se propunham a derrubar o regime de Fidel Castro.
Em outubro de 1962, com a instalação de mísseis soviéticos em Cuba, a guerra fria chegaria a seu ponto mais quente – a crise em que a humanidade chegou mais perto da possibilidade de uma guerra nuclear que destruiria todos os tipos de vida no planeta.
Hollywood sempre tratou bem a Revolução em si
Mesmo após a aproximação de Cuba com a União Soviética, do estabelecimento do regime comunista na ilha, da crise dos mísseis, e da transformação do país em uma nova ditadura, com o fim da liberdade de imprensa, a perseguição implacável a qualquer dissidente, os assassinatos de presos no paradón, Hollywood sempre tratou a revolução cubana em si
com bons olhos.
Como tinha que ser, uai! Derrubou-se uma ditadura terrível – e prometia-se uma vida nova.
Creio que o melhor exemplo disso é Havana (1990), o filme de Sydney Pollack com Robert Redford e Lena Olin que é ao mesmo tempo uma belíssima história de amor em tempos conturbados, um hino de amor à cidade caribenha e uma exaltação à revolução que derrubou a sangrenta ditadura de Batista.
Outro bom exemplo é Cuba (1979), realizado por Richard Lester, o diretor dos dois filmes dos Beatles, A Hard Day’s Night (1964) e Help! (1965), e daquela maravilha que é Robin e Marian (1976), entre tantos outros. Sean Connery interpreta um mercenário britânico que chega a Cuba pré-revolucionária para ajudar a treinar o exército de contra a guerrilha de Fidel Castro. O filme mostra um país dominado por uma ditadura sangrenta e absolutamente corrupta, que precisava desesperadamente de uma revolução para romper com tudo aquilo.
Gostaria ainda de registrar que, em 1949, exatos dez anos antes de guerrilheiros liderados por Fidel Castro, Ernesto Che Guevara e Camilo Cienfuegos derrubarem a ditadura sanguinária de Fulgêncio Batista, John Huston fez um filme sobre uma revolução popular que, em 1933, acabava derrubando uma ditadura sanguinária em Cuba. O filme se chama We Were Strangers, no Brasil Resgate de Sangue.
Quando vi Resgate de Sangue, escrevi: “O duro é pensar que agora em 2021 faz 61 anos que Cuba vive sob a ditadura sanguinária implantada pelos revolucionários que derrubaram a outra ditadura.”
Anotação em janeiro de 2025
Pier 5, Havana
De Edward L. Cahn, EUA, 1959
Com Cameron Mitchell (Steve Daggett),
Allison Hayes (Monica Gray),
Eduardo Noriega (Fernando Ricardo, o milionário amante de Monica), Michael Granger (tenente Garcia), Logan Field (Hank Miller), Nestor Paiva (Lopez, o outro milionário cubano), Otto Waldis (Schluss, o patrão de Hank Miller), Paul Fierro (sargento da polícia)
Roteiro Robert E. Kent (usando o pseudônimo de James B. Gordon)
Baseado em história de Joseph Hoffman
Fotografia Maury Gertsman
Música Paul awtell, Bert Shefter
Direção de arte William Glasgow
Produção Robert E. Kent, Premium Pictures Inc. Distribuição United Artists.
P&B, 67 min (1h07)
**1/2