O Lugar da Outra / El Lugar de la Otra

3.0 out of 5.0 stars

(Disponível na Netflix em 10/2024.)

São duas mulheres absolutamente diferentes uma da outra. Díspares, distantes como se uma fosse da Terra e outra de algum planeta de galáxia distante – embora fossem as duas de Santiago do Chile, em meados dos anos 1950.

Mercedes (o papel de Elisa Zulueta) era uma mulher em tudo por tudo comum, tão igual a tantas e tantas outras que acabava ficando cinzenta – ou mesmo invisível. Classe média bem média, dois filhos adolescentes, marido fotógrafo com um arremedo de estúdio dentro da casa apertada da família. A outra, María Carolina (interpretada por Francisca Lewin), era uma escritora de sucesso, bem de vida.

Mercedes trabalhava como secretária de juiz. María Carolina mata a tiros seu amante, no salão de chá do Hotel Crillón, um dos mais chiques, se não o mais, da capital chilena. O chefe de Mercedes, o dr. Aliro Veloso (Marcial Tagle), é nomeado o juiz de instrução que chefiará as investigações sobre o crime.

Um lance de puro acaso – o juiz a encarrega de pegar roupas para levar para a presa – fará Mercedes entrar no apartamento da outra.

Uma vez dentro daquele mundo que ela desconhecia, amplo, confortável, silencioso, cheio de perfumes, batons, belas escovas de cabelo, Mercedes não quer mais sair do lugar da outra.

Esta, basicamente, é a trama de El Lugar de la Outra, produção chilena de 2024 que me cativou, me envolveu, me deixou muito impressionado.

É maravilhoso que seja um filme tão absolutamente feminino. Não apenas as duas personagens centrais são mulheres. É mulher a diretora, Maite Alberde, são mulheres as duas roteiristas, Inés Bortagaray & Paloma Salas, e é mulher a autora do livro em que o roteiro em parte se baseia, Alia Trabucco Zerán.

Sim. Que seja absolutamente feminino é impressionante, maravilhoso. Mas o fantástico, o quase inacreditável, é que este filme tão absolutamente bem realizado, em cada quesito, seja o primeiro longa-metragem de ficção da diretora, uma moça nascida em 1983, dez anos depois do golpe militar que instaurou a sangrenta ditadura liderada pelo general Augusto Pinochet. Antes deste El Lugar de la Outra, Maite Alberde fez nove documentários (se eu tiver contado corretamente) e também duas séries de TV. Duas de suas obras foram indicadas ao Oscar de melhor documentário – longa metragem: Agente Duplo (2020) e A Memória Infinita (2023).

Que coisa doida, insana, incompreensível, espetacular que é o talento.

El Lugar de la Outra informa, bem no início, que é inspirada em fatos reais. A rigor, parte da história é real. Mercedes Arévalo e María Carolina Geel são tão díspares, tão antípodas, que a primeira é uma personagem de ficção, criada para o filme, e a segunda existiu de fato. María Carolina Geel era o pseudônimo da escritora Georgina Elena Silva Jiménez, nascida em Santiago em 1910, que, no dia 14 de abril de 1955, assassinou a tiros seu amante, Roberto Pumarino Valenzuela, dentro do Hotel Crillón.

Uma mulher de vida dura, dupla jornada pesada

A primeira tomada do filme, logo após o letreiro “Inspirada en hechos reales”, mostra uma mulher – Mercedes, veremos rapidamente – acordando com o ronco do marido. Ela se levanta da cama e vai acordar os dois filhos, que dividem o mesmo quarto, dormem em um beliche. Arruma a mesa do café da manhã, dá ordem para que seus dois garotões parem de discutir. Desliga o rádio que um dos filhos havia ligado – “Um pouco de silêncio seria bom”.

Efrain, o marido (o papel de Pablo Macaya, na foto acima), logo está de pé. Diz que seus primeiros clientes estão para chegar, e a pequena sala da casa terá que ser arrumada para se transformar em seu estúdio fotográfico – nos anos 50, era usual fotógrafos atenderem clientes em pequenos estúdios, para gravar imagens de aniversariantes, noivos, gente comum em ocasiões especiais.

Quando, depois de colocar todas as coisas na mesa, Mercedes enfim se senta para tomar o café da manhã, o cesto de pães já está vazio.

Ao descer as escadas do pequeno sobrado, já arrumada para o trabalho, tropeça na enceradeira que está quebrada faz tempo, e Efrain ficou de mandar consertar, mas não manda jamais. Quando ela reclama disso com ele, o marido a chama, com ironia, de “meritíssima”, “magistrada”.

Os clientes chegam para a sessão de fotos – jovens noivos. Mercedes oferece copos d’água, Efrain diz à noiva que ela pode, se quiser, retocar a maquiagem.

Antes de sair para o trabalho, ela cochicha com o marido para tomar cuidado – a pele do noivo está muito feia, ele precisaria mexer na iluminação. E pede mais uma vez que ele mande consertar a enceradeira.

Em um quiosque na rua, compra um grande pastel, que vai comendo no ônibus em direção ao trabalho.

Uma vida dura, sim – mas não miserável, nem infeliz

Essa sequência inicial tem apenas 4 minutos – e é esplêndida, em todos os detalhes. Os atores estão muito bem, os figurinos, a cenografia, a fotografia, tudo é primoroso, perfeito. E não é apenas nos aspectos visuais, formais. A diretora Maite Alberde e essa jovem atriz Elisa Zulueta nos apresentam um retrato consistente da protagonista da história.

Bem… Cada espectador pode, é claro, formar o seu próprio retrato de Mercedes. Para mim, a Mercedes que o filme nos apresenta é exatamente aquilo que tentei definir mais acima – uma mulher em tudo por tudo comum, tão igual a tantas e tantas outras que acabava ficando cinzenta – ou mesmo invisível.

Não é uma mulher propriamente plena, satisfeita, feliz com sua vida. Muito trabalho, muita dureza, bem provavelmente poucos momentos de grande, intensa alegria. Mas não é uma mulher miseravelmente infeliz. A casa é pequena, apertada, filhos adolescentes costumam mesmo ser aborrescentes. O marido ronca, não acha tempo para consertar a enceradeira, não ganha muito bem – mas, diabo, a trata com carinho; é visível que gosta dela. Tem uma profissão digna, não é um vagabundo. Ela mesma tem um bom emprego, e por sorte seu chefe, o juiz Veloso, é uma ótima pessoa, um profissional dedicado e correto, que a trata com muito respeito.

Diacho: quem tem família, casa, emprego, como essa Mercedes, por mais que leve uma vida cinzenta, quase invisível, a rigor, a rigor, não tem do que reclamar.

Mas tudo, dentro da cabeça dela, vai mudar a partir do momento em que surge a outra.

Uma belíssima sequência – as duas protagonistas frente a frente

Fiquei muito, mas muito impressionado com a fotografia, a direção de arte, a reconstituição de época – e, em especial, a montagem do filme. Vi depois, em uma olhada pela internet, que Sergio Armstrong é amplamente reconhecido como um dos grandes diretores de fotografia do Chile. A montagem, assinada por três profissionais, Alejandro Carrillo Penovi, Javier Estévez e Geraldina Rodriguez, é espantosamente competente, talentosa.

A sequência em que Mercedes segue o juiz Veloso através dos salões do Hotel Crillón, e vê pela primeira a escritora María Carolina é não menos que magistral.

Mercedes acompanha o juiz Veloso até o hotel. Na calçada, há um enxame de fotógrafos, repórteres. Uma tomada do rosto de Mercedes- Elisa Zulueta com uma expressão de absoluto espanto, olhando um pouco para cima, para o alto do pequeno lance de escadas entre a calçada e a porta principal do hotel de luxo. Corta, e vemos também em close-up o rosto de María Carolina-Francisca Lewin, ladeada por carabineiros. Ela tem sangue espalhado por seu rosto, pelo elegante blazer roxo claro – e parece que ela está com os olhos fixos naquela mulher ali abaixo, na calçada. A mulher que vai tomar seu lugar, ocupar seu belo apartamento.

Nova tomada de Mercedes, o olhar fixo na outra. Nova tomada de María Carolina, o olhar voltado para Mercedes. Uma tomada em plano mais amplo, umas duas dezenas de fotógrafos e também curiosos com os rostos voltados para cima, na direção da escritora que havia acabado de assassinar o amante a tiros no lindo, imaculado, salão de chá do Hotel Crillón. Uma melodia ao mesmo tempo triste e forte, com um solo de piano, complementa a sequência. (A trilha sonora, assinada por José Miguel Miranda e José Miguel Tobar, é ótima, serve perfeitamente à narrativa.)

Neste momento, estamos com apenas 6 minutos dos curtos 89 de duração de El Lugar de la Outra.

Os realizadores quiseram dizer mais do que o filme mostra

O que, exatamente, acontece na cabeça de Mercedes Arévalo, essa mulher de vida cinzenta, quase invisível, não miserável, mas não muito mais que remediada, quando ela fica conhecendo aquele mundo de conforto, silêncio, e bens até então desconhecidos, representado pelo apartamento amplo, elegante, da escritora então presa por assassinato?

Esta, afinal, me parece a questão central da trama. O tal do the heart of the matter, o fulcro, a essência.

Me parece pretensioso demais, amplo demais, o que é exposto na sinopse do filme elaborada pelos realizadores, e também nas declarações da diretora Maite Alberde.

Eis a sinopse oficial:

“Chile, 1955. Quando a popular escritora María Carolina Geel assassina seu amante, o caso cativa Mercedes, a tímida secretária do juiz encarregado do caso. Depois de visitar o apartamento da escritora, Mercedes começa a questionar sua vida, sua identidade e o papel da mulher na sociedade, a encontrar naquele lugar um oásis da liberdade.”

Eis uma declaração da diretora Maite Alberde sobre sua obra (é sempre importante, eu acho, saber a opinião do autor; a minha opinião não importa nada; o que importa é o que diz o autor):

“No Chile do século XX, a maioria das mulheres condenadas por assassinados foi perdoada pela justiça só pelo fato de serem mulheres; condená-las lhes daria visibilidade. Os indultos sempre aludiam à loucura das assassinas, mas ninguém realmente escutava suas razões.”

E depois: “Em El Lugar de la Outra um desses casos é observado por Mercedes, uma mulher também invisível naquela época, que em meio aos debates sobre culpabilidade ou inocência, entende que a prisão é relativa, e a liberdade tem a ver com o quarto próprio. Que a única forma de forjar identidade e espaços pessoais e criativos é a defesa do mais mínimo, um lugar de silêncio, um quarto próprio. E isso ela aprende vivendo o lugar da outra.”

Na minha opinião, o filme não mostra que Mercedes passa a questionar sua vida, sua identidade e o papel da mulher na sociedade. Ao menos eu não vi isso. Para mim, Mercedes simplesmente se sente mais confortável no apartamento mais amplo, mais rico e, sim, mais silencioso do que a sua própria casa. Sente-se melhor em um lugar em que não tem que produzir coisas para o marido e o filho – lavar roupa e louça, fazer a comida, arrumar a casa. Sente-se mais feliz porque passa a ter acesso a coisas que sua condição social não permitia possuir – perfumes, cosméticos, roupas.

Mercedes não se engrandece como pessoa, não cresce, não fica melhor, mais sábia. Nem questiona o papel da mulher na sociedade, nem passa a ser criativa coisa alguma. Apenas e simplesmente passa a levar uma vida de pessoa bem mais rica durante algumas horas a cada dia. Algo que não tem nada de grandioso nem de engrandecedor.

A única mudança real que acontece na vida de Mercedes é que ela passa a ler. Sim, isso é mostrado, até com insistência.

Agora, diacho, para ter gosto pela leitura, para passar a gostar de literatura, não é preciso assumir como seu o apartamento mais rico que pertence a outra pessoa.

A história real que inspirou o filme é fantástica, incrível

Opiniões e interpretações à parte, registro aqui informações.

Os créditos do filme usam a expressão “guión original”, seguido dos nomes de Inés Bortagaray & Paloma Salas. Interessante isso, porque “roteiro original” é usado, tradicionalmente, para argumentos, histórias, tramas criadas especificamente para o filme – e não baseados em contos, romances, peças de teatro, reportagens.

Mais adiante, os créditos usam “basada en el livro Las Homicidas, de Alia Trabucco Zerán”.

Há aí uma certa contradição. A rigor, uma imprecisão. Não fica absolutamente claro, mas a verdade é que os fatos reais relacionados à escritora María Carolina Geel se basearam no livro “Las Homicidas”. Mas a história de Mercedes, as ligações todas dessa fictícia Mercedes com a escritora María Carolina são criação original das roteiristas Inés Bortagaray e Paloma Salas.

O que é uma beleza de trabalho, é bom que se diga – e insisto nisso. A história criada e depois roteirizada por essas duas senhoras é brilhante.

Bem, eu sou um admirador de histórias que misturam personagens reais com fictícios. Desde a mais espetacular de todas elas, aquela em que o protagonista, Piotr Bezukhov, mira seu revólver no invasor Napoleão Bonaparte, e só no último momento deixa de atirar, e o segundo personagem masculino mais importante, o príncipe Andrei Bolkonski, se torna auxiliar do general Mikhail Kutuzov, o chefe das forças armadas russas que lutou contra a invasão do país pelas tropas francesas.

O livro ”Las Homicidas” não é uma obra de ficção. Nele a advogada, ensaista e escritora Alia Trabucco Zerán relata, com base em longas pesquisas, quatro histórias de mulheres chilenas que cometeram assassinatos. Foi lançado em 2019 e traduzido para várias línguas, inclusive o inglês e o português; no Brasil, foi lançado em 2023 por uma editora de que eu nunca tinha ouvido falar, Fósforo, com tradução de Silvia Massini Felix. O site da Amazon descreve assim o livro:

“Este provocador e inquietante livro é o resultado de anos de investigação sobre os crimes cometidos por quatro mulheres chilenas (Corina Rojas, Rosa Faúndez, María Carolina Geel y María Teresa Alfaro), e sobre como a sociedade, os meios de comunicação e o poder reagiram a quem transgrediu violentamente o espaço doméstico e passivo que havia sido designado a elas.”

Alia Trabucco Zerán tem exatamente a mesma idade da diretora Maite Alberde. As duas nasceram – em Santiago – em 1983.

Dá para imaginar que no livro Alia Trabucco Zerán certamente aborda com mais profundidade do que a diretora Maite Alberde faz em seu filme a questão de que o crime de María Carolina Geel tinha um antecedente: uma outra mulher, também escritora, havia baleado o ex-amante ali naquele mesmo local, o Hotel Crillón!

Aconteceu em janeiro de 1941. Havia oito anos que María Luisa Bombal (1910-1980) e Eulogio Sánchez não se viam. Ela foi ao Crillón, e esperou pela chegada dele. Deu três tiros – mas ele sobreviveu, e, no julgamento dela, testemunhou a favor da ex-amante. O júri a absolveu.

Já María Carolina Geel (na foto) não teve julgamento por júri. Como mostra o filme, seu caso investigado e julgado pelo juiz Aliro Veloso.

Assim, de uma certa maneira, María Carolina agiu como uma copycat – o termo que em inglês identifica o criminoso que procura copiar, em todos os detalhes, um crime acontecido antes.  

Ao final da narrativa, antes do início dos créditos, vemos páginas de jornais da época – a sentença de María Carolina foi dada em junho de 1956, pouco mais de um ano após o crime. Três anos de prisão – mas, indultada pelo presidente da República, que atendeu a apelos de mulheres escritoras, entre elas Gabriela Mistral, Prêmio Nobel de Literatura, foi solta após 541 dias.

“Apenas 541 dias de prisão”, reclamava a manchete de um jornal. Outro, da época da condenação, explicava: “O juiz Veloso qualificou como um homicídio simples o ‘crime do Crillón’, porque não houve premeditação: a réu é anormal”.

Ao longo dos 541 dias de prisão, María Carolina escreveu o livro Cárcel de Mujeres, que foi publicado ainda em 1956 e teve imensa repercussão no Chile. Morreria no dia 1º de janeiro de 1996, aos 86 anos de idade.

El Lugar de la Otra foi escolhida pela Academia chilena para representar o país na corrida ao Oscar de melhor filme estrangeiro e ao Goya espanhol.

É um filme que merece ser visto.

Anotação em outubro de 2024

No Lugar da Outra/El Lugar de la Otra

De Maite Alberde, Chile, 2024.

Com Elisa Zulueta (Mercedes Arévalo),

Francisca Lewin (María Carolina Geel),

Marcial Tagle (juiz Aliro Veloso), Pablo Macaya (Efraín García, o marido de Mercedes), Cristián Carvajal (Concha), Gabriel Urzúa (Domingo, o colega de Mercedes), Nicolás Saavedra (Roberto Pumarino, o amante de María Carolina), Sebastián Apiolaza (Retamal), Pablo Schwarz (Montero), Enrique Valenzuela (Gaspar), Lucas Jadue (Samuel), Adams Pino (Suárez), Natalia Valdebenito (Matilde Guevara), Francisca Feuerhake (Lucía Guevara), Carlos Donoso (Rolando De La Fuente), Néstor Cantillana (René), Nicolás Zárate (Arnés), Francisco Pérez-Bannen (Pedro Echeverría), Rosario Bahamondes (Rosa), Patricio Strahovsky (vizinho de María Carolina), Maria José Parga (Adriana Silva), Emilio Edwards (Walter Pumarino), Felipe Zepeda Urrutia (Sergio Pumarino)

Roteiro Inés Bortagaray & Paloma Salas

Baseado no livro “Las Homicidas”, de Alia Trabucco Zerán

Adaptação Maite Alberdi        

Fotografia Sergio Armstrong

Música José Miguel Miranda, José Miguel Tobar 

Montagem Alejandro Carrillo Penovi, Javier Estévez e Geraldina Rodriguez

Casting Eduardo Paxeco

Desenho de produção Rodrigo Bazaes Nieto

Figurinos Muriel Parra  

Produção Rocío Jadue, Juan de Dios Larraín, Pablo Larraín, Fabula.

Cor, 89 min (1h29)

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Título nos EUA e no Reino Unido: “In Her Place”. Na França: “À Sa Place”. Em Portugal: “Vidas Paralelas”.

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