(Disponível na Netflix em 8/2024.)
Limites/Boundaries, co-produção independente de EUA-Canadá, fora dos grandes estúdios, é um misto de drama familiar e road movie escrito e dirigido por uma mulher jovem, na faixa dos 40 anos – e a protagonista da história é também uma mulher jovem, na faixa dos 40 anos.
Não há, no entanto, nada da autobiográfico neste Limites – creio que dá para afirmar isso com toda segurança. Shana Feste, a autora da história e do roteiro e diretora, é uma mulher admirável, tipo fora de série, uma profissional bem sucedida e, pelo jeito, muito respeitada em seu meio.
Laura, a personagem central da história, interpretada pela ótima Vera Farmiga, não é nada disso. Não tem um trabalho satisfatório, agradável – é a secretária executiva de uma milionária, Sofia (o papel de Dolly Wells), nada simpática ou interessante. Está separada do marido que ainda ama, e a relação com o namorado – que não parece lá essas coisas – é rompida logo nos primeiros minutos da narrativa. Insegura, instável, carente, Laura desenvolveu a mania de recolher na rua cães e gatos abandonados. Tem nove em casa, vários deles, ou todos, com alguma doença.
Sobretudo, Laura tem problemas com o pai e com o filho.
Henry (o papel de Lewis MacDougall), adolescente de 14 anos, é, segundo a própria mãe, “ou gay, ou socialmente desajustado, ou brilhante — talvez as três coisas”. Claro, ser gay não é problema – mas, como Henry diz que não é, Laura acha que ele pode ser mas não ter coragem de assumir. Ela vive sendo chamada pela diretora da escola dele para ouvir queixas sobre seu comportamento. Entre outras excentricidades, Henry gosta de desenhar as pessoas sem roupa – e entregar os desenhos para elas.
Bem no início do filme, ela é chamada mais uma vez pela diretora (o papel de Jill Teed). E dessa vez Henry não está sendo suspenso, e sim expulso. A diretora sugere que Laura procure uma escola para jovens com problemas – e ela simplesmente não tem como pagar uma escola particular.
A relação com o pai, Jack, sempre foi problemática. Quando ela era jovem, Jack era ausente, não dava bola para a filha. Agora, idoso, a procurava muito para pedir ajuda – e ele era o tema constante das consultas de Laura com sua terapeuta (o papel de Chelah Horsdal).
Jack – o papel do grande Christopher Plummer, aos 87 anos em 2016, quando o filme foi rodado – está sendo expulso do lar de idosos em que vivia nos últimos anos. Haviam descoberto que o velhinho estava plantando maconha na estufa da casa.
O pai precisava de um lugar para morar; Laura não estava disposta a cuidar ao mesmo tempo de um pai e de um filho problemáticos, e pensa então em levar Jack para morar com a outra filha dele, Jojo (Kristen Schaal), que mora em Los Angeles.
A maior parte do filme se passa na viagem que os três fazem de carro entre Seattle, onde Laura vive, e Los Angeles. Sem que Laura perceba, Jack, com a ajuda do neto Henry, vai vendendo maconha pelo caminho. Entre os fregueses estão dois velhos amigos dele, interpretados por Peter Fonda (em um dos seus últimos papéis) e Christopher Lloyd (o eterno Doc da trilogia De Volta Para o Futuro).
Esta é, basicamente, a trama do filme. Um drama familiar que se desenrola na estrada.
Na conversa com a terapeuta, Laura mostra sua insegurança
Limites abre com uma sequência de Laura falando com sua terapeuta. O diálogo é interessante, bem escrito pela autora e diretora Shana Feste, e a interpretação de Vera Farmiga é ótima. A sequência revela bastante sobre como é essa Laura – insegura, indecisa, com dificuldade de encarar claramente as coisas. E dá todo o tom de como vai ser o filme, além de apresentar o motivo da escolha do título – Boundary é fronteira, divisa, limite. Transcrevo.
Laura: – “Estava pensando em que poderíamos voltar a nos ver uma vez por mês. É, estou me sentindo como se estivesse num bom momento. Sabe. tipo eu fiz o dever. Fizemos o dever. Fizemos.”
Terapeuta: – “Você tem falado com seu pai?”
Laura: – “Bem, eu… Ele ligou, mas não atendi. Ele sabe as condições.”
Terapeuta: – “Então você estabeleceu um limite?”
Laura: – “Sim.”
Terapeuta: – “Deve ter sido bem difícil para você.”
Laura: – “Na verdade não. Não. Estou me sentindo bem decidida. Tipo muito decidida. Na verdade… eu estava pensando, este é o melhor momento de estabelecer um limite? Sabe? Eu fico pensando… Talvez tivesse sido melhor se eu tivesse atendido. Sabe como é?”
Terapeuta: – “Não”.
Laura: – “Tá, OK, bem, não seria assim tipo pedir ajuda ou algo assim. Tipo eu não estou descontando os anos de desapontamento…”
Terapeuta: – “E abandono”.
Laura: – “Bem, eu ia dizer oportunidades perdidas, mas, sim, tá certo, é, vamos dizer abandono.”
Uma jovem escritora e diretora talentosa
Um belo elenco.
Tem Vera Farmiga, essa moça talentosa, ótima atriz de bons filmes como Vítimas da Guerra/In Tranzit (2006), Amor Sem Escalas/Up in the Air (2009), Em Busca da Fé/Higher Ground (2011), Um Novo Amor/At Middleton (2013), O Juiz (2014), O Favorito/The Front Runner (2018).
O grande veterano Christopher Plummer, que, como o vinho, foi ficando cada vez melhor à medida em que envelhecia, depois do sucesso estrondoso como o capitão von Trapp em A Noviça Rebelde/The Sound of Music (1965).
E, em papéis pequenos, Peter Fonda, Christopher Lloyd – e também Bobby Cannavale, como Leonard, o ex-marido de Laura.
Acho muito interessante qiamdp atores importantes, famosos, topam trabalhar em filme independente, de diretora jovem, que seguramente não seria grande sucesso de bilheteria. Isso é sem dúvida prova de que respeitam essa moça Shana Feste.
Shana Feste nasceu e foi criada em Palos Verdes, na Grande Los Angeles, em 28 de agosto de 1976. (Segundo o IMDb; a Wikipedia, estranhamente, dá o mesmo dia 28 de agosto, mas de 1975.) Estudou na UCLA e na Universidade do Texas em Austin, onde obteve o grau master em Escrita Criativa e Redação de Roteiros, e ainda no American Film Institute, onde se graduou em 2003 em Produção. Não teve propriamente vida fácil, de filhinha de papai: registra-se que trabalhou garçonete, babá e tutora para pagar pelos estudos.
Tinha apenas 33 anos quando estreou na direção em 2009, com The Greatest, no Brasil Em Busca de uma Nova Chance, que – exatamente como este Limites – é um drama familiar escrito, roteirizado e dirigido por ela, com atores consagrados, veteranos, Susan Sarandon e Pierce Brosnan, mais a fantástica Carrey Mulligan, então em vertiginosa ascensão.
Fiquei absolutamente encantado quando vi esse Em Busca de uma Nova Chance. Minha anotação começava assim: “Este é um belo, sensível, delicado filme sobre perda, sobre como uma família continua vivendo após uma perda. Tem interpretações extraordinárias de todo o elenco, e a direção demonstra, além de grande talento, muita maturidade. Pois é – e isso traz a pergunta: quem, raios, é Shana Feste, autora da história e do roteiro e diretora do filme?”
Bem mais adiante, e ainda antes de checar quem era, afinal, Shana Feste, escrevi: “Quis rever a abertura do filme, os primeiros dez minutos. A revisão só confirmou: que beleza, que maravilha. Exemplo de direção segura, madura, talentosa.”
Aos 33 anos de idade, na sua estréia como realizadora, a moça dirigiu três grandes atores e fez um belo drama familiar de forma segura, madura, talentosa!
Bem. Preciso registrar aqui que, quando vimos agora este Limites/Boundaries, atraídos pelos nomes de Vera Farmiga e Christopher Plummer, não estava me lembrando do nome Shana Feste, nem de que havia visto e escrito sobre um filme dela. Só na hora de escrever esta anotação aqui, ao dar uma olhada na internet, foi que fui dar no meu texto sobre o filme de estréia dela.
O filme não foi bem na bilheteria nem entre os críticos
Pois bem. A sensação que tive ao ver este Limites foi de que é um filme bem mediano. Sim, a direção é firme, há bons diálogos, Christropher Plummer está muito, muito bem como esse sujeito que foi um pai ausente e já bem velhinho trafica droga – ainda que seja uma droga leve, cuja venda inclusive é autorizada em diversos estados norte-americanos, como o filme faz questão de lembrar.
Mas sequer a atuação de Vera Farmiga, atriz admirável, me pareceu tão boa assim. Achei que ela comete o pecado do exagero das caretas e dos gestos amplos em vários momentos do filme.
Sobretudo, não achei interessante, cativante, a história dessa família de gente problemática, mal resolvida. Os personagens não atraem a simpatia do espectador. Bem, pelo menos a minha eles não atraíram. Não tenho muito por que gostar de uma mulher que já passou dos 40 e mais parece uma adolescente, e enche a casa de gatos e cachorros doentes. Nem de um velho que ensina o neto a traficar droga. Nem de um garoto que tem talento para o desenho mas só o usa para desenhar pessoas peladas como forma de agredi-las,
Bem, mas isso aí é só opinião pessoal, intransferível, que nem dor de dente. Aqui vão informações objetivas sobre este quarto longa-metragem desta direção talentosa que merece atenção:
Rodado em maio de 2016, o filme só foi lançando em junho de 2018. Antes da estréia, em circuito limitado – afinal, é um filme independente, fora dos grandes estúdios –, foi apresentado em três festivais, o South by Southwest Film Festival, o Newport Beach International Film Festival e o Nantucket Film Festival.
Obteve cinco indicações a prêmios, mas não levou nenhum.
Foi um absoluto fracasso nas bilheterias. O faturamento bruto mundial, segundo o IMDb, não chegou a US$ 1 milhão.
No site agregador de opiniões Rotten Tomatoes, o filme tinha, em agosto de 2024, 49% de aprovação no Tomatometer, média de 77 críticas, e 56% de aprovação entre os leitores. No IMDb, tem a nota 5,7 em 10, média da opinião de mais de 3 mil leitores.
Isso posto, gostaria de dizer que, se souber que algum outro filme de Shana Feste está disponível, vou atrás.
Anotação em agosto de 2024
Limites/Boundaries
De Shana Feste, EUA, 2018
Com Vera Farmiga (Laura),
Christopher Plummer (Jack, o pai),
Lewis MacDougall (Henry, o filho),
Christopher Lloyd (Stanley, o amigo de Jack), Yahya Abdul-Mateen II (Serg, o colega), Kristen Schaal (Jojo, a irmã), Bobby Cannavale (Leonard, o ex-marido), Peter Fonda (Joey, o amigo de Jack), Dolly Wells (Sofia, a patroa), Ryan Robbins (Jim), Maxine Miller (Flirty Harriet), BJ Harrison (Mary), Chelah Horsdal (a terapeuta), Robin T. Rose (Willie), Jill Teed (a diretora da escola de Henry), Elizabeth Bowen (Griselda),
Argumento e roteiro Shana Feste
Fotografia Sara Mishara
Músics Michael Penn
Montagem Marie-Hélène Dozo, Dorian Harris
Casting Justine Arteta, Kim Davis-Wagner, Kara Eide, Kris Woznesensky
Desenho de produção Page Buckner
Figurinos Ariana Preece
Produção Bailey Conway, Chris Ferguson, Brian Kavanaugh-Jones, Automatik Entertainment, Oddfellows Entertainment, Stage 6 Films. Distribuição Sony Pictures Classics.
Cor, 104 min (1h44)
**1/2