A Mortalha de Seda / The Corpse Came C.O.D.

1.5 out of 5.0 stars

(Disponível na Franciellen Taynara do YouTube em 11/2024.)

Há belos filmes baseados em histórias bem simples, fiapos de história, como, para dar só um perfeito exemplo, Um Homem, Uma Mulher (1966), o filme com que Claude Lelouch conquistou o Oscar, a Palma de Ouro, o público e o desprezo de 12 entre cada 10 críticos de cinema. Este A Mortalha de Seda, mistura de trama policial com comédia da Columbia de 1947, é o perfeito exemplo do contrário: uma história rica, cheia de coisas interessantes, gostosa, que foi contada em um filme muito fraquinho. E bota fraquinho nisso.

Fraquinho demais. Os atores não estão nada, mas nada bem. Mas, diacho, a trama é tão divertida que a gente vê o filme com prazer. Bem, eu vi com prazer – mas não posso ser tomado como um bom exemplo, porque sou um maníaco pelos filmes do período de ouro de Hollywood, entre os anos 1930 e 1960 e poucos. Mas Mary, ali do meu lado, que não tem essa mania, também se divertiu vendo este The Corpse Came C.O.D.

Sim, este é o título original do troço. C.O.D. significa cash on delivery, algo tipo pagamento contra a entrega. O cadáver veio como pagamento contra a entrega.

É como a ação começa, logo após um intróito bastante interessante. Um caminhão pára diante da mansão de Mona Harrison, uma louraça estrela de cinema. O mordomo da estrela, Fields (William Trenk), vai atender ao motorista do caminhão, que diz ter uma grande caixa para a srta. Harrison, a ser entregue mediante o pagamento de exatos US$ 431,00 – uma soma considerável, naqueles idos de 1947.

A estrela – que tomava sol ao lado de sua piscina, lendo seu horóscopo do dia, que previa coisas horrorosas – vai até o motorista do caminhão. Ele informa que está entregando um material enviado por Hector Rose, do Palisades Studios.

– “Ah… Então finalmente ele decidiu enviar os tecidos que encomendei”, diz Mona.

Ela se retira para fazer o cheque de US$ 431,00, atendendo ao esquema C.O.D., pagamento contra a entrega. Na tomada seguinte, o mordomo está abrindo a grande caixa de madeira que o motorista do caminhão deixou no chão do jardim da mansão. Mona está diante dele, pedindo para que ele se apresse – mostra-se ansiosa para ver os tais tecidos que Hector Rose enviou.

A caixa é aberta – e dela rolam para o chão entre o mordomo e Mona vários grandes rolos com tecidos finos, inclusive a seda do título brasileiro, e o corpse, o corpo, o cadáver de Hector Rose, que, veremos logo em seguida, era o chefe dos figurinistas do Palisades Studios.

Não chegamos sequer a cinco minutos do filme que dura apenas 87, e já aconteceu o que conta o título original, The Corpse Came C.O.D., o cadáver veio pagamento contra a entrega.

Adoro criticar os títulos que os exibidores brasileiros inventam, essa coisa tipo Noivo Neurótico, Noiva Nervosa para Annie Hall, Os Brutos Também Amam para Shane, Assim Caminha a Humanidade para Giant… Mas, neste caso específico aqui, acho que houve um bom acerto. A Mortalha de Seda é uma boa sacada.

Os distribuidores ´portugueses também se saíram bem: lá o filme teve o título de Encomenda Sinistra; na França, foi L’Assassion Ne Pardonne Pas.

A loura não chama a polícia – chama um amigo

O natural a se fazer, quando uma pessoa recebe em sua casa um cadáver que veio para pagamento contra a entrega, seria ligar para a polícia – e é isso que o mordomo Fields acha que a patroa deveria fazer. Mas a patroa raciocina que ligar para a polícia seria um horror para sua imagem. A polícia poderia achar que ela tinha alguma coisa a ver com o assassinato de Hector Rose (que aparece em alguns flashbacks, interpretado por Cosmo Sardo). Até porque, na noite anterior, ela havia tinha uma discussão feia com o figurinista, no estúdio, e muita gente tinha visto e ouvido a cena.

Assim, em vez de ligar para a polícia, a estrela loura liga para o jornalista Joe Medford.

Não, não é que a loura seja burra demais. Joe Medford é amigo dela; está sempre disposto a ajudá-la em qualquer coisa. É um sujeito esperto, muito esperto, e seguramente saberá o que fazer para ajudá-la naquela terrível situação – é o que ela pensa.

Na verdade, as indicações são de que Joe é apaixonado por Mona… Faz tudo por ela para ver se a moça passa a gostar dele.

O apaixonado Joe logo aparece na mansão da estrela. Ouve cuidadosamente o relato dela, e decide que o melhor a fazer é ligar para o tenente detetive Mark Wilson (Jim Bannon), da polícia de Los Angeles. Porque ele sabe que o policial é, exatamente como ele, um grande fã de Mona, e seguramente não fará nada para prejudicá-la, muito ao contrário.

Joe vê claramente – assim como o espectador – que Mona, acreditando não estar sendo vista, retira do material contido na grande caixa um daqueles rolos de tecidos, e o leva correndo para seu quarto.

Uma boa sacada do roteiro para deixar o espectador com a pulga atrás da orelha: será que, afinal, a maior estrela do Palisades Studios tem alguma coisa a ver com o assassinato do figurinista Hector Rose?

A atriz que faz o principal papel feminino está um horror

Confesso que, até ali quando o filme está com uns 15 minutos, eu acreditava que o casal central da história fosse o repórter Joe Medford e Mona Harrison, a estrela do estúdio. Ledo engano. A mocinha da história não é Mona – é Rosemary Durant, outra repórter. Uma boa repórter, fuçadora, esforçada, atenta. Ela só aparece quando estamos com 19 minutos do filme. Enquanto um batalhão de repórteres está reunido entrevistando Lance Fowler (William Forrest), o chefe de publicidade do estúdio, Rosemary está fazendo o que um bom repórter teria que fazer: remexendo nas coisas da sala do figurinista assassinado.

É para lá que se dirige também Joe Medford. Quando ele mexe na porta da sala, Rosemary corre para se esconder dentro de um armário de roupa. Joe entra na sala, fuça as coisas, à procura de alguma pista – e depois vai até o armário de roupa.

A cena é engraçada, daquele humor bem trapalhão, bem pastelão. Joe pega um cabo de vassoura e vai cutucando o interior do armário. Quando cutuca Rosemary, ela cai de bunda dentro de uma grande caixa de roupa, e fica com a bunda presa lá dentro.

Fica óbvio que os dois se conhecem muitíssimo bem, são rivais, estão sempre competindo para ver quem descobre as coisas primeiro, quem dá o furo de reportagem. Fica óbvio também, de cara, que a) Rosemary é apaixonada pelo rival bonitão e b) que a atriz que a interpreta é um horror, um pavor, uma coisa assustadoramente ruim.

A louraça Mona Harrison é o papel de Adele Jergens (na foto acima), uma atriz que, neste filme, ao menos, está perfeitamente insossa, inodora, sem sal, sem açúcar, sem nada. O repórter Joe Medford é interpretado por George Brent (na foto abaixo), galã de um grande número de filmes dos anos 30 e 40, par constante da então jovem Bette Davis, com quem fez nada menos de 11 filmes – e de quem, de resto, foi amante. George Brent não compromete no papel do repórter grandalhão e bonitão que se encanta com todas as mulheres que passam à sua frente, mas demora um tanto a perceber que a mais interessante delas é exatamente a rival toda apaixonada por ele.

Agora, Joan Blondell (na foto abaixo), que faz essa Rosemary Durant… Meu Deus do céu e também da Terra…

A interpretação dela faz com que os piores atores das novelas e das séries cômicas da TV Globo pareçam todos uns Laurence Olivier, umas Meryl Streep.

Rosemary Durant-Joan Blondelll arregala aqueles imensos olhos claros dela e faz careta de espanto umas 75 vezes, ao longo dos menos de 60 minutos em que aparece na tela.

Dá vergonha no espectador.

Há um outro ator que trabalha como se estivesse no pior programa cômico da televisão mundial – um tal John Berkes, que faz Larry Massey, o fotógrafo trapalhão do jornal em que trabalha Joe Medford. O cara atua como se estivesse num filme mudo pastelão – só que não tem graça alguma.

Três assassinatos temperados com muitas risadas”

Leonard Maltin deu 2 estrelas em 4 e escreveu duas frases sobre The Corpse Came C.O.D.: “Dois repórteres rivais tentam resolver o mistério de corpo de morto que aparece na residência de atriz. Material estritamente B.”

Verdade. É, sem dúvida alguma, um filme B. Mas o estudioso carioca A.C. Gomes de Mattos não perdeu tempo incluindo o troço em seu ótimo livro A Outra Face de Hollywood – Filme B.

O livro The Columbia Story diz – acertadissimamente – que “o roteiro de George Bricker Dwight Babcock, baseado no romance de Jimmy Starr, recusa, de maneira inteligente, a se levar a sério”, e “os autores oferecem um molho leve que temperou seus três assassinatos com uma boa quantidade de risadas”. E que “a direção de Henry Levin não acrescentou nada novo ao material conhecido”.

Na minha opinião, são as desastradas atuações de boa parte do elenco – mas acentuadamente as de John Berkes e, sobretudo, a de Joan Blondel que fazem com este A Mortalha de Seda/The Corpse Came C.O.D. seja um filme muito, muito ruim.

Atuações horrorosas, filme muito, muito ruim é coisa de responsabilidade do diretor. Henry Levin (1909-1980) dirigiu 56 filmes, dos quais os destaques são, segundo o IMDb, Os Mosqueteiros do Rei (1945) e Viagem ao Centro da Terra (1949). Rubens Ewald Filho diz em seu Dicionário de Cineastas que o cara é “ignorado pela crítica, mas por várias vezes revelou uma competência especial para o gênero capa-espada (A Espada Vingadora), a ficção científica (Viagem ao Centro da Terra) e o drama psicológico (Tormento)”.

Pode ser que o Rubinho esteja certo – agora, para a mistura de gêneros policial e comédia o cara se revela especialmente ruim.

Porque, diacho, o filme é ruim – apesar da trama, que é de fato bem interessante, divertida, gostosa.

Uma grande gozação sobre Hollywood

A trama satiriza Hollywood, o mundo do cinema, e, ao mesmo tempo, o jornalismo dedicado às celebridades. Dois temas deliciosos de serem satirizados.

Falei bem en passant no início desta anotação, que o filme tem uma espécie de intróito bastante interessante. Ele vem logo após os créditos iniciais – que, embora bem rápidos, sucintos, como era praxe na época, têm o detalhe diferencial de apresentar ilustrações, desenhos tipo charge, enquanto rola um tema musical ligeiro, típico de trilha sonora de comédia rasgada.

Terminados os créditos, ouvimos a voz em off de um narrador (Don Wilson), uma daquelas vozes um tanto empoladas dos velhos radialistas, lendo um bom texto. Como o filme não é conhecido, badalado, o IMDb não traz o texto, o que deixa para mim a tarefa de transcrever à unha. Lá vai o trecho inicial:

– “A esquina de Hollywood e Vine Street. O coração de Hollywood. A fabulosa cidade do faz-de-conta. A capital mundial do glamour. Onde música, risos e lágrimas são manufaturados para emocionar amantes de filmes de todas as nações. Vastos acres de Hollywood são ocupados por enormes estúdios, onde todas as emoções da vida humana são gravadas para os olhos e ouvidos em imagens que se movem e falam. (Víamos imagens aéreas de estúdios; corta, e vemos uma mulher escrevendo à máquina.) Hollywood é notícia. Vinte e quatro horas por dia, histórias saem de Hollywood através dos jornais da nação para serem lidas por milhões. Artigos de Hedda Hopper, Harrison Carroll, Sidney Skolsky, Jimmy Starr. (Vamos vendo tomadas de cada um dos colunistas enquanto seu nome é citado.) Sucessos de Hollywood, seu lado cômico, seus romances, suas tragédias, são transmitidos pelo rádio para o mundo por Erskine Johnson, George Fisher, Louella Parsons. Jimmy Fiddler, e muitos outros.”

O autor do livro conhecia profundamente o mundo do cinema

Nem mesmo o espectador norte-americano que viu o filme nos cinemas na época de seu lançamento era obrigado a saber que um daqueles vários jornalistas citados nesse texto de introdução – Jimmy Starr – era o autor do romance policial em que se baseia o roteiro, por sua vez assinado por George Bricker & Dwight V. Babcock.

Imagine então os espectadores não norte-americanos de hoje que – como a Mary e eu – encontram o filme no YouTube, grátis que nem passeio no parque.

Mas este é o fato. Não apenas as famosérrimas Hedda Hopper e Louella Parsons, mas todas aquelas pessoas citadas e mostradas em rápidas tomadas no intróito do filme eram jornalistas, colunistas que escreviam sobre as celebridades de Hollywood nos anos 40. Inclusive esse Jimmy Starr, citado direitinho nos créditos iniciais como autor do romance em que o roteiro se baseia.

James Atherton Starr nasceu no Texas em 1904, e fez de quase tudo um pouco. Foi, como diz uma das fontes facilmente encontráveis na internet, “gossip columnist, publicist, and press agent”. Colunista de fofoca em diversos jornais de Los Angeles, publicista ou redator de departamento de marketing de empresas – estúdios ou agências de profissionais –, assessor de imprensa. Dos dois lados do balcão, como a gente diz: dentro das redações e trabalhando para empresas.

E, além de tudo isso, foi autor de romances policiais – e roteirista de cinema.

Sua filmografia – como autor de histórias que foram filmadas, ou como roteirista – inclui nada menos de 50 títulos!

Ou seja: o cara conhecia profundamente, profundamente aquilo sobre o que escreveu no livro que deu origem a este filme gostoso de se ver mas ruim: Hollywood. O mundo do cinema.

E a verdade é que se há um tema que Hollywood adora é Hollywood. De bobagens como esta aqui a obras-primas como Crepúsculo dos Deuses de Billy Wilder (1950) e A Condessa Descalça de Joseph L. Mankiewicz (1954).

É isso. Há grandes filmes que não são fáceis, agradáveis de se ver, por serem duros demais, pesados demais, violentos demais. E há filmes ruins que são agradáveis de se ver. Chose de lóki.

Anotação em novembro de 2024

A Mortalha de Seda/The Corpse Came C.O.D.

De Henry Levin, EUA, 1947.

Com George Brent (Joe Medford, repórter),

Joan Blondell (Rosemary Durant, repórter),

Adele Jergens (Mona Harrison, a atriz de cinema), Jim Bannon (tenente detetive Mark Wilson), Leslie Brooks (Peggy Holmes, a secretária), John Berkes (Larry Massey, o fotógrafo trapalhão), Fred F. Sears (detetive Dave Short), William Trenk (Fields, o mordomo de Mona), Grant Mitchell (Mitchell Edwards, o chefão do estúdio), Una O’Connor (Nora), Marvin Miller (Rudy Frasso), Mary Field (Felice), Cliff Clark (Emmett Willard), Wilton Graff (Maxwell Kenyon), William Forrest (Lance Fowler, o chefe de publicidade do estúdio). Cosmo Sardo (Hector Rose, o figurinista assassinado), Charles Wagenheim (Claude), Lane Chandler (guarda da prisão), Gregory Gaye (diretor no estúdio), Don Wilson (a voz do narrador no início do filme)

e, interpretando a si próprios, George Fisher, Harrison Carroll, Jimmy Fidler, Hedda Hopper, Erskine Johnson, Louella Parsons, Sidney Skolsky, Jimmy Starr

Roteiro George Bricker  & Dwight V. Babcock   

Baseado no romance de Jimmy Starr

“Contribuíram para a construção do roteiro e diálogos Jack Henley e Dorothy B. Hughes, não creditados”, segundo o IMDb

Fotografia Lucien N. Andriot  

Música George Duning 

Montagem Jerome Thoms      

Direção de arte George Brooks, Stephen Goosson

Figurinos Jean Louis

Produção Samuel Bischoff, Columbia Pictures.

P&B, 87 min (1h27)

* 1.5

Título na França: “L’Assassion Ne Pardonne Pas”. Em Portugal: “Encomenda Sinistra”.

 

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