O Guardião Invisível / El Guardián Invisible

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2.5 out of 5.0 stars

(Disponível na Netflix em 11/2023.)

O Guardião Invisível/El Guardián Invisible, produção de 2017, abre com belas, bem cuidadas tomadas de um bosque em uma manhã chuvosa e tudo indica que fria. A câmara parece passear pelo bosque, onde há um lago, um rio, até encontrar o primeiro dos cadáveres que o espectador verá ao longo dos 129 minutos de filme.

É de uma moça, uma adolescente. Ela está nua, de bruços, bem perto do rio; a única indicação de violência está no pescoço – dá para perceber que ela foi estrangulada. Sobre a região pubiana, há um objeto escuro, do tamanho de um telefone celular, ou um pouco menor.

O objeto – o espectador não demora a ser informado – é um chanchigorri, em espanhol, ou txantxigorri, em basco. É um confeito, uma pastelaria, um alimento típico da região de Navarra, extremo Nordeste da Espanha, junto do País Basco e da França. Seus principais ingredientes – informa a página de trívia do IMDb sobre o filme – são carne de porco frita, banha, massa de pão (farinha, portanto) e açúcar.

A existência do chanchigorri, o fato de o alimento ter sido colocado ali, isso será importantíssimo na investigação policial – e em toda a trama. É um dos elementos específicos daquele lugar, aquela região em que se passam os fatos – Navarra, o País Basco. Assim como a chuva constante: ali chove muito mesmo, e o diretor Fernando González Molina, o roteirista Luiso Berdejo e o diretor de fotografia Flavio Martínez Labiano vão mostrar isso para o espectador ao longo de todo o filme. Chove em praticamente todas as sequências em exteriores.

Elementos específicos daquela região: chanchigorri, chuva constante e Basajaun. Basajaun é o termo que a imprensa passará a usar para designar o suspeito do assassinato daquela garota e das demais que aparecerão mortas em diferentes locais daquele pedaço da Espanha.

– “Basajaun significa ‘O Senhor da Floresta’ em basco” – dirá, lá pelo meio da narrativa, a Tia Engrasi (o papel de Itziar Aizpuru). “Ele é uma criatura protetora, que cuida para que o equilíbrio da floresta fique intacto. Ele é harmonia e colaboração. Botar o nome dele em um assassino vai contra a natureza.”

Uma comida típica do lugar, uma figura da mitologia basca, as chuvas. Tudo, em O Guardião Invisível, demonstra a importância daquele lugar específico. É uma história que não poderia se passar em nenhum outro lugar do mundo a não ser ali mesmo.

É isso que o filme tenta passar o tempo todo.

O Guardião Invisível é o primeiro filme de uma trilogia baseada nos livros da escritora Dolores Redondo, que foram um gigantesco sucesso internacional e ficaram conhecidos como a Trilogia Baztán. Baztán é um município da Província Autônoma de Navarra, e também o nome do rio que passa na região.

A maior parte dos acontecimentos se dá na cidade de Elizondo, a cidade natal Amaia Salazar, a protagonista da história.

A inspetora Amaia terá que enfrentar fantasmas

Amaia Salazar é o papel de Marta Etura – que, como sua personagem, é dali daquela região. Nasceu em San Sebastián (em espanhol) ou Donostia (em basco), em 1978. Em 2023, somava nove prêmios e 19 outras indicações, e 44 títulos, entre eles Vientos de Agua (2006), Azul Escuro Quase Preto (2006), Eva – Um Novo Começo (2011), O Impossível (2012).

Amaia Salazar surge na tela logo após o fim dos créditos iniciais – o título El Guardián Invisible aparece sobre uma tomada geral daquele trecho do bosque, o rio e o corpo estendido da adolescente morta no centro – e a epígrafe, uma beleza de frase:

“Esquecer é um ato involuntário. Quanto mais você quiser deixar algo para trás, mais ele irá persegui-lo.” (William Jones Barkley)

Créditos iniciais e epígrafe apresentados, vemos em super big close up uma daquelas espécies de termômetros usados para teste de gravidez. Amaia Salazar está checando que não está grávida.

É uma beleza de tomada: vemos o aparelhinho, ocupando o centro da tela. O aparelhinho é abaixado pela mulher que o segurava, e vemos agora, em close-up, o rosto da protagonista da história que está para começar.

O rosto de Amaia Salazar-Marta Etura ainda está em close-up quando o celular dela toca. É o comissário de polícia, o chefe dela – Amaia é uma inspetora da polícia de Pamplona, a capital de Navarra.

Enquanto ela começa a botar uma roupa, o homem que estava deitado na cama acorda. Amaia explica em inglês a James que encontraram uma garota estrangulada, e que ela está indo. Veremos depois que o americano James (Benn Northover) é um artista plástico, que ele e Amaia se dão bem, se amam, e estão fazendo tratamento para ter um filho.

Ter filho é o que Amaia deseja para o futuro. Ao obedecer ao chamado do comissário e se dirigir à beira do rio em que a adolescente foi encontrada estrangulada, Amaia fará uma dolorosíssima viagem rumo ao passado.

Ela será nomeada a responsável pela investigação, já que a garota morta é exatamente de Elizondo, a cidade natal da própria inspetora.

Ao voltar para Elizondo pela primeira vez em muitos anos, a inspetora Amaia Salazar terá que enfrentar fantasmas terríveis, horripilantes.

Há fantasmas demais, e pesados demais

Policial ou detetive que volta à cidade natal para investigar um crime e enfrenta os fantasmas de seu passado – esse tema poderia até mesmo ser considerado um subgênero. Não lembro assim de cabeça, logo de cara, mas há muitos exemplos. La Trêve, série belga muito boa de 2016 – um detetive da polícia volta à sua cidade natal com a filha jovem, após a morte da esposa, e se envolve em um caso sobre a morte de um jogador de futebol de 19 anos.

The Sinner, série americana de 2017-20221, que não vi – “de volta à sua cidade natal para investigar um terrível assassinato, o detetive Maik Briegand acaba trazendo à tona mais corpos, pistas e traumas do passado”, diz a sinopse da Netflix.

A Cidade da Violência, filme da Coréia do Sul de 2006 – “um detetive especialista em combater o crime organizado volta para sua cidade natal para o funeral de um antigo amigo de escola, e passa a desconfiar que existem muitas coisas a mais por trás do que ocorreu”, diz a sinopse da Looke.

Perto de Casa: Assassinato na Mina de Carvão, série alemã de 2022 – “de volta à sua cidade natal para investigar um terrível assassinato, o detetive Maik Briegand acaba trazendo à tona mais corpos, pistas e traumas do passado”, segundo a sinopse da Netflix”.

E seguramente há muitos outros.

Nada contra o fato de O Guardião Invisível abordar um tema que é comum. De forma alguma. Só existem duas ou três histórias na vida, costumava repetir Claude Lelouch. E além de tudo esse tema é muito bom, rico, interessante.

O problema – me pareceu – é que, talvez para se diferenciar das outras tramas, a história criada pela escritora Dolores Redondo e roteirizada por Luiso Berdejo exagera muito nos fantasmas do passado de Amaia Salazar quando ela retorna a Elizondo. São fantasmas demais, e pesados demais.

A mãe não tolerava a existência da filha caçula

Os horrorosos, terríveis fantasmas do passado vão sendo revelados aos poucos, ao longo do filme, em flashbacks que têm a ver com sonhos e pensamentos que vão perturbando a mente de Amaia. Revelar todos eles, especialmente o mais grave de todos, que só aparece quando a narrativa já se encaminha para o fim, seria, é claro, um spoiler absurdo. Creio, no entanto, que não chega a atrapalhar o eventual leitor que ainda não viu o filme dizer que a relação entre Amaia, a mais jovem de três filhas, e sua mãe, Rosario, era um horror.

Há aí uma falha no roteiro (não sei se ela existe também no livro): não há qualquer tentativa de explicação para o fato de Rosario, a mãe, não amar a sua caçula. E o “não amar” é uma maneira bastante imperfeita de dizer a coisa. Na verdade, o filme mostra que a mãe não tolera a existência de Amaia. (A mãe é interpretada por Miren Gaztañaga quando jovem e por Susi Sánchez quando já bem idosa.)

Já com a filha mais velha, Flora (Elvira Mínguez), e a do meio, Rosaura (Elvira Mínguez), a mãe tinha um relacionamento normal, segundo o filme mostra.

Há outra falha grave no roteiro, me parece – e, de novo, não sei se no livro também é assim. Pode ser que o livro explique bem coisas que não couberam nos 129 minutos do filme. Mas o fato é que a história contada pelo diretor     Fernando González Molina e pelo roteirista Luiso Berdejo deixa um imenso buraco ao não explicar como é possível que, nos dias em que se passa a ação, as irmãs mais velhas Flora e Rosauro não saibam dos fatos pavorosos que aconteceram no passado com a sua caçula Amaia.

Flora trata Amaia como culpada do crime inominável de ter abandonado a família, a confeitaria da família, a cidade – quando na verdade Amaia é que foi vítima de crime terrível.

A escritora é da região que descreve. E adora gastronomia

Há, a meu ver, mais furos no roteiro. Amaia sair absolutamente ilesa do acidente, quando o filme se aproxima do fim, é um absoluto absurdo. E a sequência de enfrentamento violento que vem a seguir é um horror, um pavor, uma tentativa desnecessária, empobrecedora, de copiar os momentos de clímax de muitos filmes policiais e/ou de ação de Hollywood, com porrada e mais porrada e mais porrada.

Não gostei do filme, por causa desses problemas que vi nele. Mas O Guardião Invisível tem muitas belas características, como a fotografia, caprichadíssima, maravilhosa, que transforma Elizondo e as matas em torno dela na coisa mais cinzenta que pode haver em um filme em cores. A fotografia e toda a ambientação, a chuva persistente, ajudam a dar uma sensação de dureza, de dor, de desolação.

As atuações são todas muito, muito boas – o cinema espanhol tem sido, nas últimas décadas, um espanto no quesito atores. Meu, quanta gente boa. Essa moça Marta Etura é uma beleza, uma maravilha.

Registrada minha opinião, volto aos fatos.

O romance El Guardián Invisible foi publicado em 2013. Os dois livros seguintes da Trilogia Baztán, Legado en los Huesos e Ofrenda a la Tormenta, sairiam logo em seguida, em 2013 e 2014. A trilogia foi um imenso sucesso; os livros foram traduzidos em mais de 35 línguas e venderam mais de 2 milhões de exemplares. No Brasil, foram editados pela Planeta.

Costumam ser muito boas as sinopses feitas pela Amazon; eis o que diz o site da empresa em Português sobre O Guardião Invisível:

“O corpo de uma adolescente é encontrado às margens do Rio Baztán, num pequeno povoado em Navarra, na Espanha, e para desvendar o caso a investigadora Amaia Salazar precisa voltar à sua terra natal, uma região da qual sempre tentou escapar por motivos que nem seu marido conhece, mas que ainda a atormentam na forma de pesadelos. Amaia sabe que o local, marcado pela inquisição espanhola, é cheio de velhas crenças pagãs. O que ela não imagina é que, com o avanço da investigação e a descoberta de novos corpos, a fronteira entre mitologia e a realidade ficará cada vez mais tênue. O desafio agora é descobrir se os crimes resultam da ação de um serial killer ou de uma criatura mítica conhecida como Basajaun, o guardião invisível.”

É preciso registrar: embora não faça referência à inquisição espanhola, o filme consegue passar a importância da coisa da mitologia entre as pessoas da região.

Os livros foram lançados, então, em 2013 e 2014. Este primeiro filme, como já foi dito, é de 2017. Em 2019 veio Legado nos Ossos, em 2020, Oferenda à Tempestade, e foram, os três, obras da mesma equipe – o diretor Fewrenando González Molina, o roteirista Luiso Berdejo e Marta Etura no papel da inspetora Amaia Salazar.

Assim como Marta Etura, a escritora Dolores Redondo Meira é basca, nascida na maior metrópole da região, Donostia-San Sebastián, em 1969. Começou a escrever aos 14 anos, com histórias infantis. Abandonou o curso de Direito para estudar gastronomia, e, formada, trabalhou em vários restaurantes, até ter o seu próprio. Delícia: isso explica como e por que há tantos detalhes a respeito dos ingredientes usados no preparo do chanchigorri ou txantxigorri, a iguaria típica da cozinha basca que tem grande importância na trama de O Guardião Invisível.

Anotação em novembro de 2023

O Guardião Invisível/El Guardián Invisible

De Fernando González Molina, Espanha-Alemanha, 2017

Com Marta Etura (Amaia Salazar)

e Elvira Mínguez (Flora Salazar, a irmã mais velha de Amaia), Carlos Librado Nene (Jonan Etxaide, policial), Francesc Orella (Fermín Montes, policial), Itziar Aizpuru (Tía Engrasi), Benn Northover (James Westford, o marido de Amaia), Miren Gaztañaga (Rosario, a mãe de Aamaia, quando jovem), Idurre Puertas (Amaia criança), Patricia López Arnaiz (Rosaura Salazar, a outra irmã de Amaia), Miquel Fernández (o pai de Amaia), Mikel Losada (Freddy, o marido de Rosaura), Quique Gago (Víctor, o marido de Flora), Pedro Casablanc (o comissário geral de Pamplona), Paco Tous (dr. San Martín), Ramón Barea (Alfonso Álvarez de Toledo), Manolo Solo (dr. Basterra). Colin McFarlane (Aloisius Dupree, da CIA, o mentor de Amaia), Susi Sánchez (Rosario, a mãe de Amaia, quando velha), Anjel Alkain (Iriarte), Richard Sahagún (Zabalza), Alba Azcara (Flora criança), Aiora Ona (Rosaura criança), Mikel Larrañaga (o pai de Anne), Ainhoa Aierbe (a mãe de Anne), Javi Cañón (Alberto Flores)

Roteiro Luiso Berdejo   

Baseado no romance homônimo de Dolores Redondo    

Fotografia Flavio Martínez Labiano 

Música Fernando Velázquez

Montagem Verónica Callón    

Casting Eva Leira, Yolanda Serrano 

Direção de arte Antón Laguna

Figurinos Loles García Galean, Rosa Pérez

Produção Mercedes Gamero, Adrián Guerra, Mikel Lejarza,

Peter Nadermann, Núria Valls, Nostromo Pictures, Atresmedia Cine, El Guardián Invisible, Nadcon Film, Zweites Deutsches Fernsehen (ZDF).

Cor, 129 min (2h09)

**1/2

2 Comentários para “O Guardião Invisível / El Guardián Invisible”

  1. Oi Sérgio, tudo bem? Recomendo The Sinner, 1a temporada. Muuuuito bom. 2a e 3a nem tanto. Bastante interessante.

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