(Disponível na Netflix em 6/2022.)
Marina Vidal, a protagonista, a personagem-título, tem momentos de grande felicidade nos 12 primeiros minutos de Uma Mulher Fantástica. A partir daí, come o pau que o diabo amassou, sofre mais que condenado nas galés romanas. Marina é uma mulher fantástica, mas é transexual, e os preconceitos da sociedade – quase toda, de maneira ampla, geral e irrestrita – tornam a vida dela um inferno.
Ao contar essa história, da qual é co-autor – tendo no papel de Marina uma mulher transgênero fantástica, Daniela Vega –, Sebastián Lelio, um dos grandes realizadores do atual cinema chileno, fez uma bela obra que arrebatou a crítica mundo afora. Una Mujer Fantástica conquistou 31 prêmios, inclusive o Oscar de melhor filme estrangeiro, o Urso de Prata de melhor roteiro e a menção especial do Júri Ecumênico no Festival de Berlim, a indicação para o Globo de Ouro de melhor filme e o Goya de melhor filme ibero-americano.
Foi a primeira produção chilena a ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro, e apenas o terceiro latino-americano, depois dos dois argentinos A História Oficial (1985) e O Segredo dos Seus Olhos (2009).
Os filmes fazem de nós pessoas melhores, dizia Roger Ebert, o grande crítico que amava os filmes, e não meter o pau neles. Eles ajudam também a fazer história, e Uma Mulher Fantástica contribuiu para a luta contra os preconceitos. Ao ser convidada para participar da cerimônia do Oscar de 2018, no Dolby Theatre de Los Angeles, e apresentar Sufjan Stevens, que cantaria uma das canções candidatas ao Oscar naquela categoria, Daniela Vega foi a primeira mulher transgênero a figurar em uma cerimônia da Academia, diante daquela audiência de vários milhões de pessoas mundo afora.
Não é pouca coisa, não. De jeito algum.
Um casal que se ama muito, se dá bem
O que aparece nas primeiras tomadas de Uma Mulher Fantástica fica a cerca de 1.800 km de Santiago do Chile: são tomadas daquela maravilha, daquele esplendor que são as Cataratas do Iguaçu. E, logo depois delas, o que vemos é um homem, um sujeito de boa aparência, cabelos brancos, sendo massageado, naquilo que veremos em seguida que é um lugar de sauna e relaxamento, bem no Centro de Santiago, com o sugestivo nome de Finlândia.
Ele é Orlando Onetto (o papel de Francisco Reyes, na foto acima), um empresário de 57 anos, dono de uma indústria têxtil que leva seu nome. Veremos com o tempo que Orlando se separou já faz alguns anos de sua mulher, Sonia (Aline Küppenheim), e há um bom tempo tem um namoro firme com Marina Vidal. Ao final daquele dia em que esteve no clube Finlândia para uma sauna e uma massagem, Orlando se encontra com Marina e vão a um elegante restaurante japonês, onde dois garçons cantam “Parabéns a Você” em japonês para ela. A idade de Orlando, 57, será mencionada em algum momento do filme, mas não a dela. Marina é bem mais jovem que o namorado – não deve ainda ter completado os 30 anos.
Depois dos parabéns, ele oferece a ela um envelope. Marina lê o que ele havia escrito a mão em uma folha de papel: um vale uma viagem às Cataratas do Iguaçu. Orlando explica que havia imprimido as passagens e as guardado em um envelope – mas, como não tinha conseguido encontrar o envelope, escreveras aquele vale. E acrescenta que aquela viagem, marcada para dai a 10 dias, não é pouca coisa: as Cataratas do Iguaçu são uma das maiores maravilhas da natureza.
(Tem toda razão ele.)
Tudo faz o espectador perceber que aquelas duas pessoas se amam muito, se dão muito bem.
Vão depois os dois para a casa dele – mais tarde saberemos que os dois haviam decidido enfim viver sob o mesmo teto, e ela havia levado para a casa dele várias malas com suas coisas.
Vemos, em belas tomadas – tomadas elegantes, suaves, nada explícitas – que os dois trepam.
Estamos aí, eu chequei depois, com 12 minutos de filme.
Uma perda sem tamanho – e um festival de preconceitos
Vemos uma tomada em que Orlando está sentado na cama, os pés no chão. Marina acorda, pergunta o que ele tem. Ele não sabe explicar o que tem, mas evidentemente está passando mal.
Marina se veste, ajuda o namorado a se vestir, preparam-se para sair. Entre o andar da casa em que eles estão e a garagem há uma escada. Marina demora um pouquinho a chegar à escada junto dele, e Orlando cai, rola pela escada, machuca a cabeça ao chegar ao andar de baixo.
No carro, ela tenta fazer com que ele converse, não adormeça. Chegam ao hospital rapidamente, e o atendimento é imediato.
Mas Orlando não resiste.
O médico diz para Marina que foi um aneurisma. Mas sua atitude diante da mulher não é uma atitude normal, não é o jeito com que ele trataria uma outra mulher qualquer.
Não bastava Marina ter perdido repentinamente o namorado, o homem que amava, o homem com que iria começar definitivamente a viver junto. Não havia se passado meia hora da morte de Orlando, e ela começava a enfrentar toda uma sequência de episódios de puro e simples preconceito contra ela pelo fato de ser uma transgênero.
Depois do médico preconceituoso aparece um policial. Depois uma policial. Os exames haviam revelado os ferimentos que Orlando havia sofrido ao rolar pela escada. Pressionada, e com a consciência clara de que não devia nada a ninguém, Marina não se defende direito, não expõe com clareza, segurança, o que havia acontecido.
E depois há a família dele.
O filho de Orlando é um idiota, um poço de caretice
A ex-mulher, Sonia (o papel de Aline Küppenheim), é um horror. Mas muito pior que ela é o filho dela e de Orlando, Bruno (Nicolás Saavedra).
Bruno é um daqueles personagens criados para que o espectador tenha ódio dele, ou, no mínimo, desprezo, nojo.
O sujeito é jovem – deve estar com uns 26, 28 anos no máximo –, filho de pai rico, frequentou com toda certeza boas escolas, as melhores da cidade sensacional, belíssima, maravilhosa, daquele país encantador. Teve todos os privilégios do mundo – e no entanto é uma besta, um idiota, um poço de preconceitos, de caretice, de babaquice.
A única pessoa que trata Marina de forma digna, respeitosa, ou no mínimo educada (além de Orlando e da irmã dela, que conheceremos já quando a narrativa está bem adiantada), é Gabo, o irmão mais velho de Orlando. Mas Gabo não se sente forte o suficiente para enfrentar de peito aberto a cunhada e o sobrinho.
Gabo é o papel de Luis Gnecco, o ator de mais de 90 títulos na filmografia, entre eles a elogiada série Prófugos (2011-2013), um original da HBO que teve entre seus diretores Pablo Larrain, outro dos grandes realizadores chilenos, o ótimo filme No (2012), sobre o plebiscito que começou a pôr fim à ditadura de Augusto Pinochet) e Neruda (2016), o bom filme sobre um período da vida do poeta e então senador, em que ele se vê obrigado a fugir do país para escapar da prisão. Luis Gnecco faz o papel do poeta.
Não é um filme LGBT, e sim de viés humanista
Sebastián Lelio criou a trama e o roteiro de Uma Mulher Fantástica juntamente com Gonzalo Maza, um ex-crítico de cinema que vem trabalhando com o diretor já há vários anos. Maza escreveu o roteiro original de El Año del Tigre, que Lelio dirigiu em 2011; ele e Lelio assinaram juntos o roteiro original de Gloria, o belo filme de 2013 que os americanos quiseram refilmar, e o próprio Lelio dirigiria em 2018, com a maravilhosa Julianne Moore no papel que havia sido da também maravilhosa Paulina Garcia.
Ou seja: é uma dupla de criadores azeitada, experiente.
Em uma das entrevistas que deu na época da apresentação de Una Mujer Fantástica no Festival de Berlim de 2017, Sebastián Lelio disse que que aquele não era um projeto LGBT, mas um filme de viés humanista, como mostrou reportagem de Carlos Heli de Almeida em O Globo:
– “É uma história coerente com o momento que atravessamos hoje, em que os seres humanos estão diante de uma encruzilhada na evolução da espécie: tem gente querendo erguer murros, fechar fronteira, isolar pessoas, e há uma contracorrente que prega que devemos abraçar a complexidade da vida e aprender a viver juntos. Daí a relevância da problemática dos transgêneros, que é um símbolo da fronteira em que nos encontramos agora.”
E ainda: – “Era um tema que me intrigava e me desafiava. Há algo ali com que podemos nos identificar, e que tem muito a ver com o mundo hoje. Mas cheguei a parar de escrever o roteiro porque não conhecia nenhuma pessoa com essa condição. Uma das pessoas que encontrei em minhas buscas foi Daniela. Fiquei tão fascinado por ela e sua história pessoal que decidi usá-la no filme. Era uma aposta. Achava uma aberração estética usar um ator ou uma atriz que não fosse transexual. Como no início do cinema, quando os negros eram interpretados por brancos com o rosto pintado.”
Daniela Vega Hernández nasceu em San Miguel, na região metropolitana de Santiago, em 1989. A biografia dela no IMDb, assinada por AMP, passa bem ao largo de questões como em que época houve a decisão de Daniela assumir a identidade feminina – mas afirma que, quando ela estava com oito anos de idade, um de seus professores descobriu que a criança tinha uma belíssima voz, perfeita para o canto lírico. Em 2014, ela estreou no cinema em La Visita.
Sequências de imensa, impressionante beleza
A Daniela Vega que vemos em Uma Mulher Fantástica não é bela, e não é assim feminina, dentro dos padrões aos quais nos acostumamos. Seu rosto é bastante masculino em alguns momentos, embora em outros não seja tanto assim.
O momento em que Daniela Vega fica linda acontece quando a narrativa já passou da metade; ela vai à casa de seu professor de canto lírico. O diálogo é fascinante – o professor parece ser a pessoa que de fato mais conhece aquela mulher que, por um erro da natureza, da biologia, havia nascido homem. Há uma relação de grande afeto entre os dois. Aí então o professor começa a tocar, e Marina-Daniela Vega abre a boca para cantar – e, diacho, meu Deus do céu e também da Terra, que dom, que maravilhoso dom a natureza, a biologia, ou Deus, ele mesmo, entregou a essa pessoa!
Que voz!
Sebastián Lelio é safo, esperto, competente, talentoso – e então ele cria ali um momento do mais belo cinema. Há um corte, vemos Marina-Daniela Vega caminhando pela rua, certamente logo após sair do apartamento do professor – e no som não houve corte, continuamos a ouvir a voz maravilhosa da atriz cantando, creio, “Sposa son disprezzata”, de Geminiano Giacomelli.
Ainda ouvimos a voz maravilhosa, e estamos vendo Marina-Daniela Vega caminhando numa calçada enfrentando um vento fortíssimo que bate diretamente contra ela. Ela coloca o corpo todo para a frente, como para poder enfrentar a força do vento.
É uma imagem de grande, imensa força. De repente me lembro da sequência em que a matriarca da família, interpretada por Sachiko Murase, enfrenta a chuva e o vento violentos no final de Rapsódia em Agosto, do mestre Akira Kurosawa.
Os italianos tiveram a sensibilidade de perceber a força dessa imagem, e um dos cartazes de Una Donna Fantastica usa exatamente uma imagem dessa sequência.
Ah, sim, é preciso registrar que Sebastián Lelio se permite algumas fugas da realidade. A mais longa, mais forte e mais bela dessas fugas acontece depois de uma sequência terrível, dilacerante, em que Marina sofre absurdas agressões físicas. Para tentar se recompor, suplantar aquele momento, seguir em frente, ela vai a um nightclub. E dança, dança – e de repente estamos no meio de um musical de Hollywood, ou da Broadway, todos no lugar executando uma bela, ensaiadíssima coreografia, Marina ao centro.
É uma sequência de grande beleza.
É um belo filme.
Anotação em junho de 2022
Uma Mulher Fantástica/Una Mujer Fantástica
De Sebastián Lelio, Chile-Espanha-Alemanha, 2017
Com Daniela Vega (Marina Vidal)
e Francisco Reyes (Orlando Onetto), Luis Gnecco (Gabo Onetto, irmão de Orlando), Aline Küppenheim (Sonia, a ex-mulher de Orlando), Nicolás Saavedra (Bruno, o filho de Orlando), Amparo Noguera (Adriana, a investigadora da polícia), Trinidad González (Wanda), Néstor Cantillana (Gastón), Alejandro Goic (médico), Antonia Zegers (Alessandra), Sergio Hernández (o professor de canto), Roberto Farías (médico), Cristián Chaparro (massagista)
Argumento e roteiro Sebastián Lelio & Gonzalo Maza
Fotografia Benjamín Echazarreta
Música Nani García, Matthew Herbert
Montagem Soledad Salfate
Casting Alejandra Alaff, Moira Miller
Desenho de produção Estefania Larrain
Figurinos Muriel Parra
Produção Juan de Dios Larraín, Pablo Larraín, Sebastián Lelio,
Gonzalo Maza, Participant, Fabula, Komplizen Film, Muchas Gracias, Setembro Cine, Zweites Deutsches Fernsehen.
Cor, 104 min (1h44)
***1/2
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