Talk Show: Reinventando a Comédia / Late Night

2.5 out of 5.0 stars

(Disponível na Netflix em 11/2022.)

Uma sinopse rápida de Late Night, no Brasil Talk Show: Reinventando a Comédia, produção americana de 2019, poderia ser assim: o tempo passou na janela e só Katherine Newbury, a estrela premiadíssima de um talk show da TV americana, não viu. Quando a audiência despenca e a rede decide acabar com o programa, a ajuda vem da pessoa que menos parece adequada: uma jovem indiana gorduchinha escurinha sem qualquer experiência no show-business.

Katherine Newbury é interpretada pela maravilhosa Emma Thompson, motivo pelo qual quis ver o filme, disponível na Netflix. Molly Patel, a indiana que trabalhava até então numa indústria química como inspetora de qualidade, é o papel de Mindy Kaling – e não tenho vergonha alguma em dizer que o nome dela não me dizia nada, embora depois tenha visto que ela está em Oito Mulheres e um Segredo / Ocean’s 8 (2018). Mindy Kaling – que, pelo jeito, é um fenômeno – é a autora da história original e do roteiro, e também uma das produtoras do filme.

Pessoas do mundo artístico (e também do universo dos esportes) que fizeram imenso sucesso no passado e com o tempo vão perdendo a fama e virando um símbolo do fracasso são um dos temas mais constantes do cinema. Charles Chaplin fez em 1952 uma obra-prima sobre um velho palhaço que perde o público, Luzes da Ribalta/Limelight, seu último filme nos Estados Unidos, antes de ser banido pela paranóia do macarthismo. A história da jovem em ascensão enquanto o homem que a ajuda no início de carreira vai pro brejo já rendeu quatro versões de Nasce uma Estrela – em 1937, 1954, 1976, 2018. Antes que minha neta Marina faça 18 seguramente haverá uma nova versão. Estes são apenas alguns exemplos de uma longa tradição.

A história criada por Mindy Kaling tem porém uma base que é típica destes nossos tempos atuais, que é específica destas primeiras décadas do século XXI: a luta sem tréguas pelo politicamente correto, pelo defesa da diversidade, haja o que houver, custe o que custar.

Os adjetivos “gorduchinha” e “escurinha” do primeiro parágrafo não foram escolhidos porque eu seja um gordofóbico e um racista nojento, abjeto, mas porque o filme insiste muito no fato de que a moça é uma indiana gorduchinha e escurinha.

Toda a estrutura do filme se concentra nisso: o programa de Katherine Newbury – uma inglesa radicada havia décadas nos Estados Unidos, sem nunca ter perdido o sotaque britânico e o gosto por um linguajar educado, refinado, desconhecido pelos jovens nas ruas – é todo feito por homens heterossexuais brancos. E é exatamente por isso que o programa ficou velho, não conseguiu estabelecer contato com as audiências mais jovens. E será preciso que surja exatamente uma indiana gorduchinha e escurinho pra chacoalhar de vez tudo aquilo.

É tudo politicamente correto demais

Emma Thompson é uma das atrizes que mais admiro, por quem tenho especial respeito. Meses atrás, fiquei absolutamente tocado, emocionado com a atuação espetacular dela como a juíza Fiona Maye, que enfrenta, em sequência, dois casos dificílimos, controversos, polêmicos, sobre direito de família, no Tribunal Superior da Inglaterra, a High Court de Londres, em Um Ato de Esperança/The Children Act (2017), de Richard Eyre, com base no extraordinário romance de Ian McEwan, ele por sua vez, um dos dois escritores que mais tenho admirado nos últimos anos. (O outro é o cubano Leonardo Padura.)

Fiona Maye é uma personagem riquíssima, extraordinária. Enfia-se naquele caso complexo do rapaz de 17 anos, portanto ainda menor de idade, que tem leucemia e precisa de transfusão de sangue para sobreviver, mas os pais e ele mesmo se negam a isso, por motivos religiosos – enquanto, ao mesmo tempo, seu casamento de muitos anos, que parecia sólido como Gibraltar, está correndo o risco de se desmanchar como um castelo de cartas. Quando li o livro, não pensei em uma atriz para interpretar uma eventual versão cinematográfica da história, mas, se tivesse parado para pensar, seguramente a escolha seria Emma Thompson.

Essa Katherine Newbury é o exato oposto de Fiona Maye. Não é simpática, não parece de fato inteligente. É uma chata de galocha. Uma estrela absolutamente mimada, metida a besta, que se considera mais perfeita do que Deus. Trata com o maior desprezo os diversos roteiristas que trabalham para ela, elaborando as falas de seu programa. Não interage com eles – há alguns roteiristas que estão trabalhando para ela faz anos e nunca tiveram a oportunidade de conversar com ela.

São uns oito ou dez roteiristas – todos, repito, insisto, homens brancos. Os “opressores”, segundo as regras atuais.

Quando até a própria estrela do show já percebeu que precisaria ter alguma mulher na equipe, surge em cena a candidata a uma vaga de roteirista que é indiana e completamente fora do padrão de beleza. Fica bastante óbvio: ahá, olha aí, é a moça indiana e nada linda – o próprio símbolo da oprimida pela sociedade branca, machista, colonista, escravagistas, capitalista, calhorda, filha da mãe – que vai salvar a branquinha inglesa de fala educada.

E a Molly Patel da autora e roteirista Mindy Kaling aparece logo, quando o filme ainda nem chegou aos 5 minutos.

Sequer a interpretação de Emma Thompson me parecia no padrão que seria de se esperar dela.

Deve ter sido por isso – por ser tão óbvio, desde sempre, que a moça indiana nada linda é que vai salvar a branquinha inglesa de falsa educada, essa coisa tão politicamente correta, tão certinha, tão previsível –, somado ao fato de que a personagem de Emma Thompson é tão pouco simpática, tão imbecil, que, quando o filme estava ali com uns 30 minutos, eu fiz um comentário mal-humorado com Mary e Dona Lúcia, que estava conosco.

Comentei que não sabia o que diabo o filme queria ser. Seria um drama sobre uma estrela que cai? Porque, diabo, comédia aquilo ali não era. Em meia hora, ninguém tinha dado sequer um sorriso, o que dirá uma boa risada.

Creio que, a rigor, Late Night não pretende ser um drama à la Luzes da Ribalta ou Nasce uma Estrela. O filme, parece, gostaria de ser uma comédia – embora seja muito pouco engraçado.

Creio que Late Night pretende mesmo é ser isso que ele é: um filme que defende que tudo só tem jeito se houver muita mistura, muita diversidade – e viva as cotas raciais!

O filme se inspira em pessoas e eventos reais

Quando o filme estava caminhando para terminar, imaginei que talvez ele pudesse estar contando uma história real.

Isso acontece às vezes; me ocorre que contar aquela determinada história não tem muito sentido, já que ela não é propriamente envolvente, simpática, interessante – mas teria sentido se fosse uma história real, porque aí é outro patamar, é outra coisa. É, afinal, uma experiência real de vida.

Não, não, não: Katherine Newbury jamais existiu – com esse nome ou outro qualquer.

Ahá… Mas há muita coisa inspirada na vida real, me conta o IMDb. Fico contente em ver que meu feeling estava – ao mesmo parcialmente – na direção correta.

Na sequência em que Katherine aparece ainda jovem, num vídeo que está sendo visto no computador por Molly Patel, Emma Thompson está – propositadamente, é claro – parecida com uma comediante britânica de stand-up dos anos 1980-1990, chamada Victoria Wood.

Há nos diálogos várias referências a profissionais da TV americana.

Várias figuras públicas representam a si mesmas – Bill Maher, Seth Meyers, Jake Tapper…

Fala-se várias vezes que Katherine Newbury sofreu de depressão. Emma sofreu depressão, na época em que terminou seu casamento com Kenneth Branagh. E, sim, Mindy Kaling escreveu o roteiro pensando em Emma no papel de Katherine.

Mais ainda: a coisa de Katherine ter tido um caso com um empregado, um subalterno, um roteirista, inspira-se diretamente – nos conta o IMDb – no exemplo real de David Letterman: “Em outubro de 2009, Letterman anunciou ao vivo que havia tido casos com várias subordinadas.”

Ou seja: embora não conte uma história real, Late Night se inspira em diversas pessoas e eventos reais.

Mindy Kaling é reconhecida, premiada

Isso registrado, é preciso saber sobre Mindy Kaling, o fenômeno que escreveu e roteirizou essa história – e ainda interpretou a segunda personagem mais importante.

12 prêmios, 39 indicações no total!

Nasceu em 1979, em Cambridge, Massachussetts, filha de dois indianos que se conheceram na Nigéria e emigraram para os Estados Unidos. Começou a carreira de atriz aos 26 anos, em 2005, com O Virgem de 40 Anos, comédia com Steve Carell; em novembro de 2022, tinha 40 títulos como atriz na filmografia, entre eles diversas séries de TV. Foi a primeira personagem feminina de The Office, no Brasil Vida de Escritório, na qual trabalhou em 158 episódios.

Em 2012, criou, escreveu e estrelou sua própria série de TV, The Mindy Project, que teve seis temporadas, num total de 117 episódios.

Em 2013, foi incluída lista das 100 Pessoas Mais Influentes do Mundo da revista Time. Só ao Emmy, o Oscar da TV americana, já teve 6 indicações.

É absolutamente inegável que a moça demonstra, neste Late Show, ter talento – além desse compromisso firme com o politicamente correto, com as cotas raciais, com a diversidade. É brincalhona, por exemplo, sua escolha do sobrenome da heroína, Patel, e do prenome da irmãzinha dela, Parvati. Uma homenagem a Parvati Patil, da saga Harry Potter.

E há, afinal, algumas frases engraçadas no filme. Por exemplo, quando Molly está atuando como mestre de cerimônias num show para arrecadar fundos para pesquisas contra o câncer – “Câncer não é engraçado” –, ela diz para a platéia que acabava de ser demitida de seu emprego. – “Eu não poderia nunca ser demitida! Afinal, eu sou das cotas raciais!”

Ou quando a chefona da rede de TV, Caroline Morton (o papel da interessante Amy Ryan), diz para Katherine Newbury que vai demiti-la, a estrela grita de volta algo assim: – “Você é a quarta presidente da rede desde que comecei a fazer o show nesta rede. Seu emprego tem mais rotatividade do que o de ditador de país africano!”

Late Night teve 14 indicações a prêmios. Emma Thompson recebeu uma indicação ao Globo de Ouro como melhor atriz de filme musical ou comédia. O conjunto do elenco foi indicado ao prêmio da Casting Society, e Mindy Kaling teve uma indicação como Estrela Favorita de Comédia do People’s Choice Award.

Anotação em novembro de 2022

Talk Show: Reinventando a Comédia/Late Night

De Nisha Ganatra, EUA, 2019

Com Emma Thompson (Katherine Newbury),

Mindy Kaling (Molly Patel)

e John Lithgow (Walter Lovell, o marido de Katherine), Hugh Dancy (Charlie Fain, roteirista), Reid Scott (Tom Campbell, roteirista), Denis O’Hare (Brad, o chefe dos roteiristas), Max Casella (Burditt, roteirista), Paul Walter Hauser (Mancuso, roteirista), John Early (Reynolds, roteirista), Luke Slattery (Hayes Campbell), Ike Barinholtz (Daniel Tennant), Marc Kudisch (Billy Kastner), Amy Ryan (Caroline Morton, a presidente da rede de TV), Megalyn Echikunwoke (Robin), Blake DeLong (McCary), Jia Patel (Pavarti Patel, a irmã de Molly), Bill Maher (ele mesmo), Seth Meyers (ele mesmo), Annaleigh Ashford (Mimi Mismatch), Halston Sage (Zoe Martlin), David Neal Levin (o gerente da indústria), Maria Dizzia (Joan), Paige Gilbert (Dee), Cleo Gray (Joyce), Kerry Flanagan (repórter), Lucas Caleb Rooney (Gabe Eichler)

Argumento e roteiro Mindy Kaling

Fotografia Matthew Clark

Música Lesley Barber

Montagem Eleanor Infante, David Rogers

Casting Maribeth Fox, Laura Rosenthal

Desenho de produção Elizabeth J. Jones

Produção Jillian Apfelbaum, Ben Browning, Mindy Kaling, Howard Klein, 3 Arts Entertainment, 30WEST, FilmNation Entertainment, Imperative Entertainment, Kaling International, Stage 6 Films

Cor, 102 min (1h42)

**1/2

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