Rio Acima / Up the River

1.0 out of 5.0 stars

(Disponível no YouTube em 6/2023.)

Quase um século atrás, em 1930, apenas três anos depois que o cinema aprendeu a falar, John Ford dirigiu um filme com dois iniciantes. Eles viriam a ser grandes amigos, consumiriam juntos quantidades industriais de tabaco e uísque e se firmariam como dois dos maiores astros do cinema mundial. Mas Spencer Tracy e Humphrey Bogart jamais voltariam a contracenar, em suas longas e prestigiosas carreiras – este Rio Acima/Up the River foi o único.

Evidentemente, Spencer Tracy e Humphrey Bogart dispensam apresentação, mas achei que seria interessante registrar alguns dados básicos sobre esses monstros sagrados.

Humphrey Bogart é de 1899, Spencer Tracy é de 1900. Estavam, portanto, com 30/31 anos em 1930, quando fizeram seus primeiros filmes. (Bogart morreria em 1957; Tracy, em 1967.)

Bogart fez 84 filmes, recebeu 14 prêmios, inclusive um Oscar. No total, as indicações ao prêmio da Academia foram três.

Tracy fez 79 filmes, recebeu 14 prêmios, inclusive 2 Oscars. Indicações à estatueta foram nove.

Bogart foi casado no papel quatro vezes, e teve uma belíssima história de amor com Lauren Bacall, sua quarta esposa, com quem viveu 13 anos e fez cinco filmes.

Tracy foi casado no papel uma única vez, e teve uma belíssima história de amor – embora sem casamento oficial – com Katharine Hepburn, com quem conviveu mais de 25 anos e fez nove filmes.

Quando Bogart estava muito doente, de câncer, em 1956 e 1957, o casal Spencer e Kate visitava quase diariamente o amigo na casa dele e de Lauren Bacall.

Quando Tracy foi enterrado, Kate Hepburn não foi à cerimônia fúnebre, para não incomodar a esposa dele, Louise, e seus dois filhos.

Meu Deus, quanta história…

Por ser o único filme dos dois astros juntos, por ser dos primeiros filmes de cada um deles – e, meu Deus, estão tão jovens que é até difícil reconhecê-los! –, por ser dirigido pelo sujeito que os grandes realizadores consideram o maior de todos, este Up the River é um filme interessante. No mínimo, no mínimo, para os fãs da época de ouro de Hollywood.

Eu, que sou absolutamente fanático por esses filmes, e até a Mary, que também gosta muito deles, conseguimos aguentar os 92 minutos. Mas olha, é dureza, viu? Eta filmezinho ruim – mestre Ford que me perdoe!

Um espertalhão, um burro, um bom sujeito e uma garota

O problema principal é a história, de autoria de Maurine Watkins. É uma coisa absolutamente sem pé nem cabeça, nonsense. Não há qualquer lógica, sentido, razão.

Os créditos iniciais especificam de cara, logo abaixo do título, que é uma “comedy drama”. Mas na verdade o que se pretende é muito mais comédia do que drama. São quatro personagens centrais, todos eles presos em “uma prisão estadual do Sul”, como também especifica um letreiro depois dos rapidíssimos créditos iniciais:

* St. Louis (o papel de Spencer Tracy) é um prisioneiro experiente; já esteve até num corredor da morte. Não ficamos sabendo que tipo de crime ele cometeu, mas o fato é que ele consegue fugir da prisão a hora que bem entende. O filme abre com St. Louis saindo da prisão, de noite, sem que nada o impeça. Há um belo carro esperando por ele – não sabemos quem o deixou ali, mas tudo bem. O esperto fugitivo abandona ali, junto dos muros do presídio, o companheiro com quem havia conseguido fugir, Dannemora Dan.

* Dannemora Dan é mostrado como um sujeito bastante destituído de inteligência, tadinho. E o ator Warren Hymer (à esquerda na foto abaixo) faz todos os exageros possíveis e também os impossíveis para demonstrar ao respeitável público que seu personagem é mesmo burro. O que o filme não conta de jeito algum para o respeitável público é que raio de crime Dannemora Dan cometeu para ser preso.

Na segunda sequência, depois que St. Louis foge no carrão que ninguém sabe de onde veio, abandonando o companheiro ali, vemos um desfile, numa rua de Kansas City, de um grupo de gente de uma organização tipo Exército da Salvação, chamada Irmandade da Esperança. Dannemora Dan é apresentado a quem assistem ao desfile, como uma pessoa que já esteve do lado do Mal, mas agora encontrou Deus e a paz. O rapaz faz um discurso cheio de boas intenções – só que aí aparece, num belo carrão, e muito bem vestido em um terno impecável, o patife do St. Louis. Dannemora Dan bem que tenta continuar sua pregação cristã, mas cede à tentação e começa a encher o patife de porrada. Chega a polícia, Dannemora Dan é preso de novo.

* O espectador também não fica sabendo qual foi o crime cometido por Steve (Humphrey Bogart), mas aparentemente não foi algo grave demais, porque ele é encarregado de tarefas burocráticas no próprio presídio, como receber novas presidiárias que chegam, fazer a ficha delas. É um sujeito distinto, educado – e está na cara que é de classe social mais alta do que a do espertalhão St. Louis e do bobão Dannemora Dan. Quando ficamos conhecendo Steve, faltam apenas alguns meses para que ele possa sair em liberdade condicional.

* E, finalmente, a quarta dos personagens principais da história, se é que esse termo se aplica ao que vemos na tela. Judy (o papel de Clare Luce, o segundo nome a aparecer nos créditos) é uma jovem de 21 aninhos, que, ao ser questionada por Steve no momento da chegada à prisão, conta que foi presa porque trabalhava como vidente. Ué, mas isso não é crime, diz Steve. Ela explica que sugeria para quem a consultava que comprasse ações com o sujeito que a pagava para fazer aquele trabalho – um estelionatário chamado Frosby (Morgan Wallace).

Steve e Judy se apaixonam perdidamente um pelo outro ali, na primeira vez em que se vêem, ele fazendo perguntas para preencher a ficha dela. no presídio.

Não dá para saber o que Ford quis dizer com este filme

O presídio – e essa talvez seja a característica mais marcante do filme, além de não nos contar propriamente uma história que faça sentido – é uma festa. Uma alegria danada. Todos ali são felizes. Há um time de beisebol pelo qual todos os detentos torcem animadissimamente. Há shows de talentos no bom teatro do lugar – e, diabo, como tem preso talentoso ali.

Garotinha aí de uns 9, 10 anos de idade, Jean, a filha do diretor do presídio (o papel de Joan Lawes), passeia feliz pelo lugar, brinca com alguns presos. A Dannemora Dan, por exemplo, responde – com rapidez e sem errar nunca – a perguntas que o burraldo faz sobre coisinhas de conhecimentos gerais. Ele fica espantadíssimo ao ver que a garota sabe de tudo.

O pai da garotinha, o diretor do presídio onde todo mundo é alegre, feliz (o papel de Robert Emmett O’Connor), é ele também um bom sujeito. Em um momento em que Steve quer dar uma palavrinha com a amada Judy, por exemplo, o diretor cede aos dois o seu gabinete, na boa.

Ah, sim, e é importante registrar que desse presídio os caras podiam fugir na maior. St. Louis e Dannemora Dan fogem duas vezes!

Não tenho a menor idéia sobre o que John Ford quis dizer com esse filme quase todo passado no presídio feliz. Assim, passo para algumas informações.

* Essa moça Claire Luce (1903-1989), de quem jamais tinha ouvido falar, não teve uma carreira de muitos filmes – são apenas 13 os títulos de sua filmografia. Este Rio Acima foi seu primeiro filme, assim como também o primeiro de Spencer Tracy, que vinha de uma carreira no teatro. Não reconheço nenhum dos outros 12 títulos de sua carreira.

Mas é interessante notar que, para este filme, John Ford pegou um monte de iniciantes, atores ainda desconhecidos pelo público.

* Em 1930, aos 34 anos de idade, John Ford já havia dirigido 72 filmes – incluindo aí alguns curtas que fez nos anos iniciais da carreira. (O primeiro filme que dirigiu foi em 1917.) Sete Mulheres, de 1965, seu canto do cisne, foi o de número 146. Nunca vi nenhum desses 72 que vieram antes deste Rio Acima.

* Foram três os filmes dirigidos por John Ford e lançados em 1930. Além deste Rio Acima, chegaram aos cinemas também Homens Sem Mulheres/Men Without Women, um filme de ação, sobre mergulhadores da Marinha de guerra, e Galanteador Audaz/Born Reckless, um policial.

Em 1934 viria o ótimo O Juiz Priest/Judge Priest; em 1935 o forte, importante O Delator/The Informer, passado na Irlanda, terra natal de seus pais. Em 1939, lançaria a obra-prima No Tempo das Diligências/Stagecoach.

* A página de Trivia do IMDb sobre o filme relata – para explicar por que os dois grandes amigos Spencer Tracy e Humphrey Bogart não voltaram a trabalhar juntos – que o primeiro era contratado pela Fox e mais tarde pela MGM, enquanto o segundo era empregado da Warner Bros. Depois do fim da era dos estúdios, quando os atores podiam escolher à vontade que filmes fazer (“the freelance era”, diz o site enciclopédico), nos anos 1950, os dois falaram de fazer um filme juntos, mas segundo Katharine Hepburn, nunca chegaram a um acordo sobre quem apareceria primeiro nos créditos e nos cartazes. (Aparecer em primeiro lugar, o top billing, era algo importantíssimo em Hollywood. A rigor, ainda é assim, um tanto…)

* John Ford e Spencer Tracy só voltariam a trabalhar juntos em The Last Hurrah (1958), em que o então veterano ator interpreta um político que concorre à reeleição para prefeito. Diz o IMDb: “É estranho constatar que esses dois grandes ícones americanos descendentes de irlandeses colaboraram apenas duas vezes, mas na maior parte de suas carreiras eles estiveram ligados a diferentes estúdios, Ford com a 20th Century Fox e Tracy com a MGM”.

* Os dois primeiros filmes da carreira de Humphrey Bogart foram lançados em 1930, mas este Rio Acima estreou primeiro, no dia 12 de outubro. O outro, O Querido das Mulheres/A Devil with Women, chegou aos cinemas seis dias depois, em 18 de outubro. Há aí uma coincidência interessante: o protagonista desse outro filme é o grandalhão Victor McLaglen, que trabalharia em vários filmes de John Ford, inclusive o já mencionado O Delator e também na obra-prima Depois do Vendaval/The Quiet Man (1952).

“Uma autêntica curiosidade”, diz Pauline Kael 

Leonard Maltin deu ao filme 2.5 estrelas em 4: “Comédia boba mas engraçada sobre um par de condenados habituais, interpretados por Tracy (dinâmico em seu longa-metragem de estréia) e Hymer, e seus esforços para ajudar o companheiro preso Bogart (em seu segundo longa), que havia se apaixonado pela prisioneira Luce. É desnecessário dizer que este filme é notável pela confluência de grandes talentos no começo de suas carreiras – mas também é divertido de se ver.”

Sérgio Augusto deixou o filme de fora na edição brasileira que reduziu o livro 5001 Nights at the Movies, de Pauline Kael, a prima donna da crítica americana, para 1001 Noites no Cinema. Fez ele muito bem, mas então sobra pra mim a tarefa de traduzir a linguagem rica e empolada de Dame Kael.

Uau! Dame Kael veio bastante informativa!

“O cenário é Sing Sing (o famosérrimo presídio na cidade de Ossining, no Estado de Nova York), e diabo se os presos não entrarem em suas celas à noite cantando melodiosos acalantes, suas vozes treinadas tomando os corredores de pedra. Nessa prisão educativa, graciosas presas se dedicam a brincadeirinhas – e eventuais flertes – com os homens. O filme – uma autêntica curiosidade – começou destinado a ser bem diferente do que acabou sendo. Um motim bastante falado na imprensa no presídio de Auburn, no Estado de Nova York, deu origem a vários filmes e peças de teatro sobre a vida na prisão. Na Broadway, Spencer Tracy obteve grande sucesso em The Last Mile; a MGM correu para preparar The Big House, um melodrama, e a Fox contratou Maurine Watkins para escrever Up the River, que deveria também ser um melodrama. Mas The Big House foi lançado antes, e a Fox estava para cancelar Up the River quando John Ford, que deveria dirigir e já havia contratado Tracy, veio com a idéia de transformar o filme em uma paródia cômica, com beisebol em vez de motim na prisão. (…) Bogart aqui não é mais que um jovem de rosto brilhante, mascando chiclete e sorridente, com uma mandíbula longa e magra, mas Tracy, em seu filme de estréia, está seguro e animado, como um bandido arrogante e durão – ele mantém suas cenas passando por muitas brincadeiras com os outros atores. Mas é o imprestável Warren Hymer, interpretando uma espécie de estúpido inocente e feliz, que garante as maiores risadas. O filme – que é lento e bizarramente piegas, em especial quando Bogart está em casa com sua muito comportada mamãe, ou passeia com seus amigos condenados – foi muito popular. (…) Refilmado em 1938, com Preston Foster.”

De novo, uau! Poucas vezes vi Dame Kael tão informativa.

Alguns registros sobre o texto dela:

O filme The Big House no Brasil se chamou O Presídio, e foi dirigido por George W. Hill e Ward Wing.

A peça The Last Mile, de autoria de John Wexley, teve 289 apresentações na Broadway, em Nova York, entre fevereiro e outubro de 1930. O IMDb registra que o produtor da peça, Herman Shumlin, concedeu a Spencer Tracy uma licença de duas semanas para que ele pudesse atender ao convite de John Ford para trabalhar no filme que iria fazer. The Last Mile foi filmada em 1932, com direção de Samuel Bischoff; é um belo filme, e está disponível no YouTube, como este Rio Acima aqui. O título no Brasil foi Cadeira Elétrica.

Mas… Estranho. Houve, sim, um Up the River com Preston Foster em 1938, no Brasil Erros da Juventude, mas, pelo que se vê no IMDb, apenas o título é o mesmo. A sinopse fala de uma história completamente diferente.

Ah, um último registro: não há rio algum na história. Nada de rio em Rio Acima/ Up the River. Neca de pitibiribas de rio, nem acima nem abaixo.

Anotação em junho de 2023

Rio Acima/Up the River

De John Ford, EUA, 1930

Com Spencer Tracy (St. Louis),

Warren Hymer (Dannemora Dan),

Humphrey Bogart (Steve),

Claire Luce (Judy)

e Joan Lawes (Jean, a filha do diretor do presídio), Sharon Lynne (Edith La Verne), George MacFarlane (Jessup), Gaylord “Steve” Pendleton (Morris), Morgan Wallace (Frosby, o estelionatário), William Collier Sr. (Pop), Robert Emmett O’Connor (o diretor da prisão), Louise Mackintosh (Mrs. Massey), Edythe Chapman (Mrs. Jordan), Johnnie Walker (Happy), Noel Francis (Sophie), Mildred Vincent (Annie), Mack Clark (Whitelay), Goodee Montgomery (Kit)

Roteiro Maurine Watkins e, não creditados, John Ford e William Collier Sr.

Baseado em história de Maurine Watkins

Fotografia Joseph August

Música James F. Hanley

Montagem Frank E. Hull

Decoração de interiores Duncan Cramer

Figurinos Sophie Wachner

Produção William Fox, Fox Film Corporation

P&B, 92 min (1h32)

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