(Disponível na Netflix em 4/2023.)
É uma beleza de filme este Crimes de Família (2020), do diretor argentino Sebastián Schindel. A grande Cecilia Roth nos brinda com uma atuação esplendorosa como uma mulher de classe média alta, que tem uma vida tranquila, confortável, prazerosa, e de repente se vê engolfada não por um crime de família, mas dois, quase ao mesmo tempo.
Um drama sério, pesado, denso, para o público adulto, daqueles que fazem pensar – essa coisa que anda quase virando raridade em meio a tanto filme de super-herói, de aventureiro das galáxias ou de mundos paralelos, perseguições de carro e adaptações de historinhas em quadrinhos, perdão, graphic novels.
Uma história que parece invenção de roteirista extremamente criativo, com virada surpreendente no final – que, no entanto, aconteceu na vida real.
Na abertura, Crímenes de Familia informa: “Inspirado en hechos reales”.
Os créditos finais contam, em letras pequenas, que a produção contou o apoio da OIT, a Organização Internacional do Trabalho, e da ONU Mulheres – uma espécie de selo de garantia de que é uma obra comprometida com a razão, as boas causas.
Uma característica fantástica, impressionante, do filme é que ele mostra uma burguesa, uma privilegiada, e sua empregada doméstica, moça pobre do interior, do mato, quase analfabeta – e não transforma a relação em um exemplo da luta de classes, uma denúncia da nojenta exploração da mulher pela mulher, um panfleto contra o capitalismo e um hino ao dia do amanhã em que triunfará o socialismo.
Um filme latino-americano que foge à regra quase absolutamente geral do cinema – o italiano, o francês, o espanhol, o brasileiro, muitas vezes o americano também – de que gente boa é gente pobre, e, se a pessoa é rica, é ruim da cabeça, doente do pé e mau caráter.
Meu Deus do céu e também da Terra! Um filme latino-americano que não é maniqueísta ao falar de ricos e pobres!
Crimes de Família fala do absurdo, da insanidade que é a injustiça social – sem ser maniqueísta nem ginasiano-marxista.
Uma raridade. Um estupor.
A ação se passa em duas épocas diferentes
O roteiro – escrito pelo diretor Sebastián Schindel e Pablo Del Teso – apresenta paralelamente, simultaneamente, como se fossem passados ao mesmo tempo, eventos que na realidade ocorreram em períodos distintos. Próximos, mas distintos. É um truquezinho, uma manobra dos roteiristas que pode deixar o espectador um tanto confuso, pelo menos de início.
Um dos períodos, o que na verdade aconteceu primeiro, é aquele em que Alícia (o papel de Cecilia Roth) e seu marido Ignacio (Miguel Ángel Solá) ficam sabendo que seu único filho, Daniel, homem aí de uns 30 anos, foi preso, acusado de ter violado uma ordem judicial de não se aproximar de sua ex-mulher, e de a ter espancado e estuprado.
Fazia já bastante tempo, mais de um ano, creio, que Daniel e Marcela (Benjamín Amadeo, na foto abaixo, e Sofía Gala Castiglione) haviam se separado – e a separação tinha sido mal resolvida, tensa, tumultuada. Sempre que se viam tinha briga – até que Marcela conseguira a tal ordem judicial. Depois do ataque de Daniel, do estupro, Marcela foi à polícia, fez exame para constatar os ferimentos e a existência de sêmen – e Daniel foi preso.
Havia droga envolvida na violência: o próprio Daniel confessaria no tribunal que era viciado, primeiro em cocaína, depois em crack.
Alicia e Ignacio visitam o filho na prisão, prometem arranjar um advogado para ele – e convocam um advogado velho amigo do casal.
Alicia sofria por não ver o netinho, Martincito (Jeremías da Cruz), garoto de uns dois anos e meio. Desde a separação, Marcela não permitia que os avós paternos vissem o menino.
Sem ver o neto, Alicia tinha em casa um garoto quase da idade dele – Gladys, a empregada que trabalhava para o casal fazia muitos anos, tinha tido um garoto, Santiago, que na época da prisão de Daniel estava perto de fazer três anos. Alicia tinha grande afeição pelo garoto, que também gostava muito dela, a chamava de tia; a relação entre os dois era tranquila, gostosa; a patroa pagava um boa escola maternal para Santi, como todos o chamavam.
O garotinho Santi é o papel de Santiago Ávila. A mãe dele, Gladys, é interpretada por Yanina Ávila – e que bela interpretação. Yanina Ávila está impressionantemente perfeita como aquela moça praticamente analfabeta, ignorante de tudo, que parece ter séria deficiência intelectual, e teve uma história de vida pavorosa – a mãe morreu quando ela era bem criança, o pai abusava sexualmente dela. O mais absoluto horror.
Gladys, a pobre empregada, também é presa
Paralelamente às sequências dessa época da prisão de Daniel, o filme vai mostrando fatos que aconteceram vários meses depois. Daniel continuava na cadeia, já havia sido interrogado por um trio de juízes, quando a pobre, infeliz Gladys é presa. (Na foto abaixo, Yanina Ávila como Gladys.)
Sebastián Schindel e Pablo Del Teso escreveram o roteiro de forma a não fornecer para o espectador informações sobre o crime pelo qual Gladys é acusada. Foi uma sábia decisão, eu acho – em termos dramáticos, é perfeito que o crime de Gladys só seja finalmente mostrado para o espectador quando a narrativa já se aproxima bem do final. Não teria sentido, em termos de dramaturgia, fazer de forma diferente, revelar de cara os fatos.
A demora da revelação pode, de alguma maneira, incomodar, perturbar o espectador, enquanto estão rolando os 99 minutos do filme. Afinal, vamos vendo dois casos diferentes sendo contados em paralelo – dois julgamentos ocorrendo ao mesmo tempo na tela. Mas creio que todos os espectadores seguramente entenderão o motivo dos realizadores, quando, perto do final do filme, os fatos enfim vierem à tona.
Um advogado que usa expedientes fora da lei
Não dá, de forma alguma, para revelar o que o filme guarda até quase o fim. Seria um spoiler absurdo, inominável.
Não é uma tarefa fácil fazer sinopses de filmes assim, sem dar qualquer informação que prejudique o espectador, que antecipe o que não pode ser antecipado. A sinopse apresentada pela própria Netflix não traz spoilers, mas fica vaga demais: “Depois de seu filho ser acusado de estuprar e tentar assassinar a ex-esposa, Alicia embarca em uma jornada que vai mudar sua vida para sempre.”
E é bem parecida com a do IMDb: “Alicia é uma mulher desesperada que fará de tudo para impedir que seu filho Daniel vá preso sob a acusação de tentar matar a ex-mulher.”
As duas sinopses só falam da prisão de Daniel, e não mencionam a de Gladys. A do IMDb comete um erro grave: na verdade, Alicia fará de tudo é para que seu filho não permaneça preso, não seja condenado.
Creio que falar sobre o que Alice faz por amor ao filho não chega, de forma alguma, a ser spoiler.
Depois que Daniel e a ex-mulher Marcela são ouvidos por três juízes, e as indicações são de que ele deverá ser condenado, Alicia resolve recorrer a um outro advogado, um criminalista famoso, um bambambã, Echezabal (Claudio Martínez Bel).
A sequência é apavorante.
O dr. Echezabal recebe a mulher em um escritório gigantesco, imponente, com vista para um grande tribunal em uma praça de Buenos Aires. Já havia examinado o processo. Diz a ela que o caso é difícil, mas obter uma decisão favorável não chega a ser impossível. E dá o preço: 400 mil. Alicia engole em seco e diz: – “Quatrocentos mil pesos…”
O dr. bambambã a corrige: – “Dólares”.
Mãe é mãe, e Alicia insiste com Ignacio que eles têm que contratar o tal advogado. Ignacio é contra.
Alicia vende o apartamento enorme, maravilhoso, em que o casal vive na Recoleta, o bairro nobre de Buenos Aires, para tentar garantir a liberdade do filho.
O espectador verá que o dr. Echezabal usa métodos absolutamente fora da lei para garantir uma decisão judicial favorável ao cliente.
Uma reviravolta de dar inveja a Harlan Coben
O advogado que o tribunal nomeia para fazer a defesa da pobre Gladys – pro bono, sem pagamento – é bom. O dr. Vieytes (Marcelo Subiotto) não consegue obter informação alguma de Gladys na primeira vez em que conversa com ela. Gladys se recusa a responder às perguntas dele, fica muda, com uma expressão de quem não está presente. Vieytes procura uma psicóloga.
Interessante: me parece que não é dito em momento algum o nome da psicóloga (o papel de Paola Barrientos). Mas é uma excelente profissional. Com muito jeito, obtém de Gladys informações que o advogado Vieytes não conseguiu; aos trancos, a pobre mulher conta para a psicóloga seu terrível histórico de vida, a miséria material nos arredores de uma cidade da província de Misiones, os abusos do pai
Quando é ouvida no julgamento de Gladys, a psicóloga expõe um belo currículo, que inclui especialização em casos traumáticos de mulheres abusadas. E seu depoimento é uma arma preciosa para a defesa da moça.
Na tentativa, claro, de defender sua cliente, o advogado Vieytes faz duras perguntas a Alicia, quando ela está sendo ouvida como testemunha. Alicia reage com indignação – pergunta como é possível que o advogado tente acusá-la de culpa pelo crime cometido pela empregada. E enumera muitas das coisas que ela e o marido haviam feito por Gladys, como cuidar dela na gravidez do garoto Santiago, pagar ginecologista, pagar a escola do garoto.
É muito emocionante o momento em que, ao final do julgamento, o juiz que preside a sessão pergunta a Gladys se ela gostaria de dizer alguma coisa. Tive a certeza (e creio que todos os espectadores também pensariam da mesma maneira) de que a moça, pobre coitada, se recusaria a falar diante do tribunal, de tantas pessoas. Tímida, frágil, de falar muito pouco, com deficiência intelectual, seria de se esperar que ela declinasse do convite do juiz.
Mas, surpreendentemente, Gladys dá seu depoimento: “Não sei o que aconteceu comigo. Só Deus sabe de mim. Sei que minha vida não importa, está perdida – mas a de Santi, sim, importa, porque ele tem que ter uma vida melhor que a minha”, diz. E faz grandes elogios e agradecimentos à patroa, diz que só tem a agradecer a ela, e pede que ela continue cuidando bem do garotinho Santiago.
Alguns dias depois, Alicia vai visitar Gladys na prisão; falta pouco para o filme acabar, e é então que acontece um fato absolutamente inesperado.
Escritores e roteiristas que adoram reviravoltas, tipo Harlan Coben, ficariam com imensa inveja.
Não é possível é ter inveja de Alicia.
Poucas pessoas – tanto na vida real quanto na ficção – foram obrigadas a tomar uma decisão semelhante à que Alicia toma.
O trabalho do diretor chamou a atenção da OIT
O diretor e roteirista Sebastián Schindel tinha um aninho de idade em 1976 quando Cecilia Roth estreou no cinema, em No Toquen a la Nena. De lá para cá, essa atriz extraordinária trabalhou em 95 filmes e ou séries de TV – na sua Argentina natal e também na Espanha e no México – e colecionou 17 prêmios e 17 indicações.
Alguns de seus belos filmes já foram comentados aqui:
Tudo Sobre Minha Mãe (1995),
Kamchatka (2002),
Aos Olhos de uma Mulher (2003),
Ninho Vazio (2008),
Dor e Glória (2019).
Esse ótimo Crimes de Família é o 15º título de Sebastián Schindel como diretor – e seu nono longa-metragem. Depois dele, já fez mais dois, A Ira de Deus e Minta Para Mim, ambos lançados em 2022. Nascido na capital argentina em 1975, ele estudou Filosofia na Universidad de Buenos Aires e cinema na Escuela Nacional de Experimentación y Realización Cinematográfica (ENERC), e dá aulas de cinema documental na própria ENERC e na Universidad Nacional de General San Martín.
Em 2014, Schindel lançou O Patrão: Radiografia de um Crime, em que o dono de um açougue contrata um empregado vindo do campo, e vai transformando o pobre sujeito em um escravo. O filme chamou a atenção de especialistas da Organização Internacional do Trabalho. “Me chamaram e me disseram que meu filme parecia ter um roteiro escrito pela OIT, e a partir daí participamos de campanhas de conscientização sobre trabalho escravo”, contou o diretor ao jornal Clarín, de Buenos Aires, como mostra um texto assinado por Mariana Iglesias e publicado no site do jornal em 22/8/2020, na época do lançamento deste Crímenes de Familia.
“Quando souberam que eu estava escrevendo esse novo roteiro”, contou, “a OIT quis se somar ao projeto, por causa dos temas, e acabamos tendo também o apoio da ONU Mulheres.”
Acostumado a fazer pesquisas para documentários, Schindel havia pedido a advogados amigos que passassem para ele informações de casos de violência de gênero, feminicídios e maus tratos no trabalho. Crímenes de Familia, segundo a matéria, se inspira em dois desses casos.
Anotação em abril de 2023
Crimes de Família/Crímenes de Familia
De Sebastián Schindel, Argentina, 2020
Com Cecilia Roth (Alicia),
Yanina Ávila (Gladys, a empregada)
e Miguel Ángel Solá (Ignacio, o marido de Alicia), Benjamín Amadeo (Daniel, o filho de Alicia e Ignacio), Sofía Gala Castiglione (Marcela, a ex-mulher de Daniel), Diego Cremonesi (o médico, testemunha), Paola Barrientos (a psicóloga), Marcelo Subiotto (dr. Vieytes, o advogado pro bono de Gladys), Claudio Martínez Bel (dr. Echezabal, o advogado que cobra fortuna), Santiago Ávila (Santi, o filho de Gladys), María Marull (a diretora do jardim de infância), Silvia Villazur (funcionária do tribunal), Luis Longhi (fiscal), Luis Herrera (fiscal), Marcelo D’Andrea (Dr. Villar), Alma Vilela (Eleonora), Cecilia Labourt (Nené), Lucila Gandolfo (Teresita), Eduardo Pecar (juiz Ventimiglia), Rosana Vezzoni (juiz Badaracco), María Milessi (professora), Jeremías Da Cruz (Martincito, o netinho de Alicia), Clara Kovacic (a secretária de Echezabal), Tomás Buccella (o professor de ioga)
Roteiro Pablo Del Teso & Sebastián Schindel
Fotografia Julián Apezteguia
Música Sebastián Escofet
Direção de arte Daniel Gimelberg
Produção Horacio Mentasti, Buffalo Films, Magoya Films, Tieless Media.
Cor, 99 min (1h39)
***1/2
Título nos EUA: “The Crimes That Bind”.
Ainda bem q vc não deu spoiler do final. Arrepiei desde o momento que soube qual foi o crime da Gladys! Lembrei imediatamente da Fernanda Montenegro, numa peça de teatro do Millôr Fernandes, O Homem do Princípio ao Fim. Ela fez dupla com o marido Fernando Torres e interpretou o poema A Infanticida Maria Farrar. Eu chorava intensamente. Vc pode imaginar a Fernanda declamando esse poema e nunca esqueci desse bordão que aparece justamente no final do filme “vós, senhores, não vos deixeis.. toda cristura precisa da ajuda de alguém “. Como vc diz meu Deus do céu e da Terra: que atores, o que é issoooo. Essa atriz gladys, essa atriz Alicia, o que é isso?? Fico te devendo uma dica dessa. Muuuito obrigada.
Só uma dúvida: p que serve esse espaço onde se lê “site”? Qual site?