(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 2023.)
Em 1932, apenas cinco anos, portanto, depois de o cinema aprender a falar, Hollywood fez um cru, duro, corajoso panfleto contra a pena de morte. Construído em cima de diálogos fortes, poderosos, baseado em peça teatral, The Last Mile, no Brasil Cadeira Elétrica, permanece vívido, importante, quase um século depois de seu lançamento.
– “Você chegou bem na hora de ver a apresentação, Cinco”, diz o guarda para o preso que acaba de chegar e ser colocado em sua cela no corredor da morte, a de número cinco. ”O número um será frito daqui a meia-hora.”
A câmara mostra o rosto do preso da cela um, Berg (George E. Stone), um homem com uma terrível expressão de pavor no rosto.
O guarda, com um prazer sádico, insiste em fazer o novo preso sofrer o máximo que for possível: – “Vista linda, não é? Observe bem. Você também vai sair daqui exatamente como ele.”
“O número um será frito.” Literalmente frito, na cadeira elétrica.
Palavras duras, linguagem crua. Os realizadores deste The Last Mile não pegam leve. De forma alguma. Logo após os rápidos créditos iniciais, surge um letreiro que diz o seguinte:
“The Last Mile é mais que uma história de prisão e dos condenados. Para mim, é uma história daqueles homens dentro de celas com barras de ferro, esmagados física, mental e espiritualmente entre as forças implacáveis de leis feitas pelo homem e morte programada pelo homem. E, justa ou injustamente considerados culpados, não são eles vítimas de convenções imperfeitas do homem, sobre as quais ele construiu uma estrutura social de segurança duvidosa? Qual é a responsabilidade da sociedade pelos sempre crescentes assassinatos? O que será feito com os assassinos? The Lastg Mile não pretende dar uma resposta. A sociedade deve achar a solução. Mas assassinato seguido de assassinato NÃO é a solução.”
Talvez a linguagem pareça hoje um tanto empolada, ou antiga – mas a mensagem é forte, inequívoca. E o texto é assinado: logo abaixo da frase há o nome do autor: “Lewis E. Lawes, diretor da Prisão de Sing Sing, Ossining, New York.”
O diretor de uma das maiores e mais famosas prisões dos Estados Unidos. Alguém que entende do assunto.
O preso recém-chegado garante que é inocente
A primeira sequência que vemos mostra o final do julgamento de um homem acusado de assassinato. Chama-se Richard Walters (o papel de Howard Phillips, na foto acima). O juiz está lendo a sentença: ele foi considerado culpado por homicíedio em primeiro grau e será enviado para um presídio do Estado onde aguardará a execução da sentença de morte.
Na segunda sequência Richard Walters está sendo levado para a cela número cinco do corredor da morte – e ouvirá do guarda Pat Callahan (Ralph Theodore) aquelas frases de boas-vindas: – “O número um será frito daqui a meia-hora.”
O presídio não é identificado, nem há referência ao nome do Estado em que se passa a ação – a melhor maneira de os realizadores dizerem que poderia ser qualquer um dos Estados em que há a pena de morte.
As celas desse presídio não têm parede com porta na parte dianteira, de forma a permitir alguma privacidade para o preso. São barras de ferro, do teto ao chão – exatamente como jaulas de animais nos zoológicos.
O preso da cela ao lado da de Richard Walters, a de número 4, se chama John Mears (o papel de Preston Foster, na foto abaixo), e ele é conhecido como Killer – o matador. Ele se apresenta para Richard assim que o guarda Callahan sai de perto; explica que ali todos são conhecidos pelos números de suas celas – seus nomes agora já não importam. Os demais presos também se apresentam para o recém-chegado.
Quando Richard diz como se chama, Killer Mears logo diz: – “Ah, você é o cara que costurou seu parceiro por dinheiro?”
Os presos liam jornais, ou então os guardas fofocavam com eles. O fato é que Killer Mears sabia da história de Richard – condenado por ter matado a tiros seu sócio em um posto de gasolina.
– “Não, não, eu não matei”, ele diz com voz firme – mas Killer Mears não está interessado em ouvir sua versão.
Um inocente a ser assassinado pelo Estado
The Last Mile é um filme extremamente curto: tem apenas 75 minutos. Quando estamos com 17 minutos, o preso da cela um, Berg, acaba de se despedir dos outros e ser levado para a sala em que fica a cadeira elétrica. A câmara mostra que Richard, envergado pelo peso da angústia, se ajoelha em sua cela. As luzes do corredor da morte tremem com a descarga elétrica que vai fritar Berg. Um efeito visual e um acorde apavorante nos indicam que vai começar um flashback – e, num flashback rápido, sucinto, direto como tudo no filme, mostra-se o que de fato aconteceu no posto de gasolina.
Richard e seu sócio Max estavam no posto quando ele foi invadido por dois ladrões. Richard tentou reagir, agarrou o braço do assaltante que tinha uma arma em punho. A arma disparou, o tiro acertou Max; os assaltantes, assustados, fugiram em seu carro.
Fica absolutamente claro que a história verdadeira contada por Richard e por seu advogado no julgamento não convenceu os jurados.
O homem no corredor da morte à espera do momento em que será frito, como diz o guarda sádico, é absolutamente inocente.
Um filme sem atores famosos
Através de diálogos entre os presos, o espectador fica sabendo que a mãe de Richard – que é mostrada na sequência do julgamento e também durante aquele flashback, e é uma senhorinha absolutamente simpática, o papel de Louise Carter – não desistiu de tentar provar a inocência do filho, e tem lutado para adiar a execução até obter um novo julgamento ou um indulto do governador.
Os próprios colegas de Richard no corredor da morte acreditam que ele conseguirá escapar.
No dia marcado para a execução do preso que sabemos que é inocente, Killer Mears consegue tirar a arma do guarda Callahan, e os presos iniciam um motim.
Isso acontece bem na metade dos curtíssimos 75 minutos que dura o filme.
Não há, nos créditos deste The Last Mile, um nome sequer que eu pudesse reconhecer. Não me lembro de ter visto qualquer um dos atores, nem me lembro de ter ouvido falar no roteirista e no diretor – que fizeram, ambos, um belíssimo trabalho. Samuel Bischoff é o diretor. Seton I. Miller escreveu o roteiro – adaptando para o cinema a peça teatral de John Wexley.
Vou atrás de informações sobre esses senhores – mas antes mesmo quero registrar que há uma grande ironia nessa coisa de o filme não ter gente famosa, grandes nomes: a peça de John Wexley, informa o IMDb, estreou na Broadway em 13 de fevereiro de 1930 e teve 289 apresentações. O papel de John Killer Mears foi interpretado por Spencer Tracy e, mais tarde, em outra produção, por Clark Gable. Dois dos maiores astros de Hollywood! Mas o filme baseado na peça não teve nenhum astro…
Nascido em Nova York, John Wexley (1907-1985) foi dramaturgo e também roteirista. Foi autor ou co-autor dos roteiros de filmes importantes, entre eles Anjos de Cara Suja (1938), de Michael Curtiz, e Os Carrascos Também Morrem (1943), de Fritz Lang. Membro do Partido Comunista, foi uma das vítimas do macarthismo e entrou na lista negra de profissionais que os estúdios ficavam proibidos de contratar.
Seton I. Miller (1902-1974) também foi um roteirista importante, autor ou co-autor dos roteiros de Scarface: A Vergonha de uma Nação (1932), de Howard Hawks, e As Aventuras de Robin Hood (1938), de Michael Curtiz, Deixou seu nome em 76 títulos, entre eles o noir Por Uma Mulher Má (1950) e a aventura Cingapura (1947)..
Miller teve uma indicação ao Oscar de melhor roteiro, por O Código Penal (1930), e ganhou a estatueta por Que Espere o Céu/Here Comes Mr. Jordan (1941) – que seria refilmado em 1978 como O Céu Pode Esperar/Heaven Can Wait, de e com Warren Beatty.
Interessante: este The Last Mile foi o único filme dirigido por Samuel Bischoff (1890-1975), que fez carreira como produtor – produziu nada menos de 141 filmes e/ou séries de TV, entre 1922 e 1964. Em 1922, fundou uma pequena produtora, que fez uma série de curtas com Mack Sennett. Depois passou por diversos estúdios – Columbia, Warner Brothers, RKO –, onde produziu de tudo, desde filmes de gângster até comédias e musicais.
Um filme bom e também importante, um precursor
Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4: “Drama cru sobre a vida no corredor da morte, com Killer Mears (Foster) liderando um motim no presídio. Baseado em peça de John Wexley. Refeito em 1959.”
Sim: houve uma refilmagem, dirigida por Howard W. Koch com Mickey Rooney no papel de Killer Mears. Aparentemente, nessa o preso mais rebelde e violento, o que inicia a rebelião, é que é o personagem central, e não Richard Walters, então interpretado por Clifford David.
Na minha opinião, este The Last Mile original aqui, embora seja bem pouco conhecido hoje, e não tenha nenhum grande nome nos créditos, é um filme muito bom, e também um filme importante, por ser aberta e virulentamente contra a pena de morte. Não sei dizer se foi o primeiro filme contra a pena de morte do cinema americano, mas é, de qualquer forma, um precursor de outras belas obras sobre o tema, como, só para citar dois grandes, Os Últimos Passos de um Homem/Dead Man Walking (1995), de Tim Robbins, e A Vida de David Gale (2003), de Alan Parker.
É bom lembrar que o então jovem Claude Lelouch fez um belo panfleto contra a pena de morte, A Vida, o Amor, a Morte, em 1969, quando na França ainda havia a pena capital. Civilizada, a França aboliu essa pena em 1981.
Segundo a Wikipédia, dos 195 países membros da ONU, em 108 já não existe mais a pena de morte. Outros sete a aboliram para crimes comuns (mantendo-a para circunstâncias especiais, como crimes de guerra) e 26 são abolicionistas na prática. Mas ainda há 54 países que assassinam seus criminosos.
Anotação em janeiro de 2023
Cadeira Elétrica/The Last Mile
De Samuel Bischoff, EUA, 1932
Com Howard Phillips (Richard Walters)
e Preston Foster (John ‘Killer’ Mears, cela 4), George E. Stone (Berg, cela 1), Noel Madison (D’Amoro, cela 6), Alan Roscoe (Kirby, cela 7), Paul Fix (Werner, cela 8), Al Hill (Mayer, cela 3), Daniel L. Haynes (Jackson, cela 2), Edward Van Sloan (rabino), Louise Carter (Mrs. Walters, a mãe de Richard), Ralph Theodore (Pat Callahan, o chefe dos guardas), Frank Sheridan (Frank Lewis, o diretor do presídio), Jack Kennedy (O’Flaherty), Albert J. Smith (Drake), William Scott (Peddie), Kenneth MacDonald (Harris), Walter Walker (governador Blaine), Alec B. Francis (padre O’Connor), Gladden James (secretário do diretor), Francis McDonald (assaltante), Frank Meredith (jurado), John T. Prince (jurado)
Roteiro Seton I. Miller
Baseado na peça teatral de John Wexley .
Fotografia Arthur Edeson
Montagem Rose Loewinger
Produção Samuel Bischoff, Burt Kelly,
William Saal, K.B.S. Productions Inc. Distribuição Astor Pictures.
P&B, 75 min (1h15, segundo o IMDb; 1h10 segundo o Cinemania).
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