(Disponível No Cine Antiqua do YouTube em 12/2022.)
Seis anos antes de fazer o papel título de A Malvada (1950), a jovem e bela Anne Baxter fez o papel título deste A Hipócrita (1944). Claro que A Malvada e A Hipócrita são invenções dos distribuidores brasileiros – no original, eram, respectivamente, All About Eve e Guest in the House. Mas Anne Baxter está nos dois títulos originais: ela é a Eve do grande clássico de Joseph L. Manckiewicz, assim como é a hóspede na casa deste filme 200 mil vezes menos conhecido e respeitado que o outro.
E as personagens que Anne Baxter interpreta nos dois filmes são, sim, malvadas, hipócritas, e mais uma série de adjetivos por aí, nessa base.
Mas o melhor de todos, o que mais se encaixa na figura de Evelyn Heath, a personagem deste Guest in the House, é manipuladora.
Manipulador/a – aquele/a que manipula, engendra, forja, maquina. É exatamente isso.
Poderia ser também aquele/a que espalha a cizânia em um ambiente, em proveito próprio. Cizânia. Adoro essa palavra. Um dos livrinhos da dupla Albert Uderzo e René Goscinny com as aventuras de Astérix e Obélix se chama exatamente A Cizânia, por causa de um personagem, um romano, que consegue inocular em qualquer ambiente os vírus da suspeita, da má vontade, do ciúme, do descontentamento. Assim que este Guest in the House demonstra a que veio, o que vai acontecer na história, me lembrei do livrinho A Cizânia.
Com a diferença de que, nos livrinhos de Uderzo e Goscinny, tudo é engraçado – e neste filme aqui tudo vira drama, depois que Evelyn Heath entra na até então feliz casa da família Proctor.
Vale registrar alguns títulos que o filme recebeu mundo afora, que fogem do original Guest in the House, hóspede na casa, para realçar a falta de caráter da personagem central, essa Evelyn Heath que é a cizânia em carne e osso. Em Portugal foi A Mulher Sem Alma; na Espanha, México, Chile, Semilla de Odio, semente de ódio; na Itália, Veleno in Paradiso, veneno no paraíso. O filme foi relançado nos Estados Unidos com o título de Satan in Skirts, satã de saia.
Era um família feliz. Até a moça chegar
Uma casa feliz, uma família feliz.
O filme começa quando a família Proctor está esperando, ansiosamente, a chegada de Dan (Scott McKay, à esquerda na foto acima). Ele havia passado meses longe, e estava vindo para apresentar sua noiva, Evelyn.
Como é um grupo de várias pessoas, será absolutamente natural se o espectador demorar um pouquinho para entender quem é quem, Eu fiquei um tanto confuso bem no inicinho da narrativa. Estão ali na casa para receber Dan e sua noiva:
* Douglas e Ann, os donos da casa – os papéis de Ralph Bellamy, à direita na foto acima, e Ruth Warrick. Douglas é o irmão mais velho de Dan. Ele e Ann são – o espectador rapidamente verá – um belo casal, se amam, se respeitam, têm confiança um no outro.
* Lee (Connie Laird) é a filhinha única do casal, uma garotinha deliciosa, alegre, alto astral, espevitada, aí de uns sete, oito anos de idade.
* Tia Martha (Aline MacMahon), tia dos irmãos Doug e Dan, uma senhora tranquila, amável, simpática, de bem com a vida. Tia Martha tem a sua própria casa, mas passa boa parte do tempo na do sobrinho.
* John e Hilda, os empregados da casa (os papéis de Percy Kilbride e Margaret Hamilton). Pelo jeito, estão com os Proctors há muitos, muitos anos, são de casa.
* Miriam Blake (Marie McDonald) não é parente, mas está morando na casa muito ampla, espaçosa, confortável. É a modelo de Douglas, que é pintor, ganha a vida vendendo quadros e gravuras.
* Hackett (Jerome Cowan), um velho amigo da família, estava ocupando o quarto de hóspedes. Com a iminente chegada de Evelyn, a noiva de Dan, ele desocupa o quarto – mas está na sala junto com todos os outros quando o casal chega em casa.
Será Hackett, o amigo da família, que dirá a frase brilhante que define a entrada em cena de Evelyn.
Ela faz uma entrada teatral, operística, triunfal. Coloca-se adiante de Dan, e faz caras, bocas e declarações de amor para cada uma das pessoas da família. Diz e rediz que está feliz por conhecer pessoalmente aquelas pessoas de quem Dan tanto havia falado.
Aquilo demora tanto que, após Evelyn falar com cada um, Dan, o parente que todo mundo estava esperando, diz algo como: – “Ninguém vai dizer alô para mim?”
E aí, depois que os parentes fazem festa para Dan, Hackett, o amigo da família, fala a frase brilhante:
– “Quer saber, Dan? Uma vez eu vi Berhardt fazer uma entrada como esta. Deu o mesmo nó na minha garganta!”
Bernhardt. Sarah Bernhardt (1844-1923). Se a vida fosse justa, todo mundo mereceria ter visto uma vez na vida Sarah Bernhardt fazer uma grande entrada em cena, e Isadora Duncan dançar aquela dança que ela jamais dançou deste lado do mundo, como dizia Julio Cortázar – mas essa é outra história, completamente diferente.
Uma família avançada, à frente de seu tempo
Este melodramão dirigido por um tal John Brahm, de quem eu jamais tinha ouvido falar, tem 121 minutos. Mais longo do que a imensa maioria dos filmes de Hollywood daquela época, e também de boa parte dos filmes de qualquer país, em geral entre 90 e 110 minutos. E falo disso porque é muito interessante: na imensa maior parte da longa narrativa, desde esse momento inicial em que Dan e Evelyn surgem na casa dos Proctors, até quando estamos nos aproximamos do fim, toda a família se encanta com a moça, a hipócrita do título brasileiro, a manipuladora do adjetivo usado nas resenhas. O único que não caiu no feitiço da espalhadora de cizânia é exatamente esse amigo da família, o visitante Hackett.
Guest in the House tem roteiro de Ketti Frings, e se baseia em uma peça teatral de Hagar Wilde e Dale Eunson. Hagar Wilde (1905–1971) era dramaturga e também roteirista. Autora deste baita melodrama, ela no entanto co-assinou os roteiros de duas comédias escrachadas dirigidas pelo grande Howard Hawks, Levada da Breca/Bringing Up Baby (1938) e A Noiva era Ele/I Was a Male War Bride (1949). E Dale Eunson (1904-2002) deixou seu nome como roteirista em 40 filmes – inclusive comédias, entre elas Como Agarrar um Milionário (1953).
Me pareceu, ao ver o filme agora, 78 anos após seu lançamento, em 8 de dezembro de 1944, o mundo afundado na Segunda Guerra Mundial, que aquela casa da família Proctor, tão cheia de gente alegre, feliz da vida, era bastante adiante de seu tempo.
Pô, meu, morava na casa da família a moça que servia de modelo para Douglas Proctor – e essa Miriam era uma mulher danada de bonita. (A atriz Marie McDonald, 1923-1965, na foto abaixo, 21 títulos na filmografia, era um mulherão, um avião.) Não rolava absolutamente nada entre ela e o seu contratante – tanto Douglas quanto Miriam viam a relação como estritamente profissional. E Ann jamais tinha tido qualquer tipo de pensamento que pusesse em dúvida a relação entre seu marido e a mulher que posava para ela muitas vezes em trajes sumários – nada sumários para os dias de hoje, mas bastante ousados para aqueles anos 1940, em que o Código Hays de autocensura estava em vigor e a caretice da sociedade norte-americana era um absurdo.
Aquela alegria, aquela coisa saudável, feliz, gostosa da família Proctor antes da chegada de Evelyn Heath me fez lembrar… Ah, as associações que a cabeça da gente faz… aquela maravilhosa família de Do Mundo Nada Se Leva/You Can’t Take it With You (1938), a obra-prima do mestre Frank Capra que, de uma certa maneira, antecipava o sonho do hippismo, da contracultura, de uma vida plena, gloriosa, cheia de satisfação, em comunidade.
Lewis Milestone ficou doente e foi substituído
Filme de uma produtora bem pequena, Hunt Stromberg Productions, Guest in the House começou a ser feito por um diretor de imenso prestígio, Lewis Milestone, autor, por exemplo, de Sem Novidade no Front (1930), 11 Homens e um Segredo (1960) e O Grande Motim (1962). Mas Milestone ficou doente, e foi então substituído por esse John Brahm, (1893-1982), alemão de Hamburgo que, como tantos outros europeus, emigrou para os Estados Unidos fugindo do nazismo. Vejo que ele foi para a televisão nos anos iniciais do novo meio; a partir de 1952, e até 1965, dirigiu dezenas de séries de TV.
Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4: “Melodrama cheio de atmosfera, ocasionalmente emocionante, sobre a jovem neurótica Baxter e seu efeito sobre a família de seu noivo. (Ralph) Bellamy está extremamente atraente em um raro papel central romântico, e Anne se sai bem nessa caracterização parecida com a de Eve Harrington.”
Eve Harrington, claro, é a personagem da atriz em All About Eve, A Malvada.
Anotação em dezembro de 2023
A Hipócrita/|Guest in the House
De John Brahm, EUA, 1944
Com Anne Baxter (Evelyn Heath), Ralph Bellamy (Douglas Proctor), Aline MacMahon (tia Martha), Ruth Warrick (Ann Proctor, a mulher de Douglas), Scott McKay (Dan Proctor, o noivo de Evelyn e irmão de Douglas), Jerome Cowan (Mr. Hackett, o amigo da família), Marie McDonald (Miriam Blake, a modelo), Percy Kilbride (John, o empregado), Margaret Hamilton (Hilda, a empregada, mulher de John), Connie Laird (Lee Proctor, a filhinha de Douglas e Ann)
Roteiro Ketti Frings
Baseado na peça teatral de Hagar Wilde e Dale Eunson
Fotografia Lee Garmes
Música Werner Janssen
Montagem James E. Newcom, Walter Hannemann
Desenho de produção Nicolai Remisoff
Produção Hunt Stromberg, distribuição United Artists.
P&B, 121 min (2h01)
**1/2
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