Imperdoável/The Unforgivable, co-produção Inglaterra-Alemanha-EUA de 2021, é um drama denso, sério, sobre alguns temas importantíssimos, barra-pesadas. O principal deles é a segunda chance – o que acontece a um condenado por crime que cumpre sua sentença e volta ao convívio da sociedade.
Outro tema é a vingança, a sede de vingança de quem perdeu um parente, vítima de um criminoso.
E há ainda a questão sempre delicada, sempre complexa, multifacetada, da adoção – e da vontade de os parentes biológicos quererem de volta o convívio de quem foi adotado ainda criança por uma outra família.
O filme trata desses temas – fundamentais, mas sem dúvida alguma pesados, amargos, espinhosos – da maneira mais digna possível.
Não é um filme fácil de se ver, de forma alguma. É daqueles que mostram sofrimento demais, tristeza demais, dureza demais – e que fazem o espectador mergulhar em tanto sofrimento, tanta tristeza, tanta dureza. Não me acanho em dizer que por mais de uma vez chequei quanto tempo ainda faltava para enfrentar aquela barra-pesada toda. E o filme não é longo, sequer passa de 2 horas – tem 112 minutos de duração.
Mas é um belo filme. E, além disso, a par disso, é também um filme importante.
Fiquei bastante chocado quando, depois que acabamos de ver o filme, me deparei com críticas de uma virulência descomunal, uma coisa impressionante, fora do comum, fora de propósito.
Posso estar completamente errado, é claro, mas me ocorreu que há três pontos que poderiam explicar tanta virulência contra este The Unforgivable. O primeiro é o fato de que é a refilmagem de uma minissérie inglesa de muito sucesso, elogiadíssima e premiadíssima, Unforgiven, de 2009 – e uma refilmagem sempre leva todo mundo, os críticos e também os seres humanos, se me permitem a brincadeira, a fazer comparações.
Outro dia mesmo aconteceu de, ao escrever sobre um filme de Brian De Palma, eu reler o que escrevi sobre Paixão/Passion, que o grande realizador lançou em 2012. Acho que tem tudo a ver, e por isso me permito transcrever aqui o começo daquele meu texto: “Um filme não é só um filme, é também todo o contexto em que foi feito, tudo que cercou sua produção e também toda a reação à obra em si. Se este Paixão/Passion, de Brian De Palma, de 2012, pudesse ser visto apenas como um filme, se fosse possível o espectador se abstrair de qualquer outra coisa, acho que seria, sem dúvida, um bom filme, interessante, bem realizado, com uma bela trama.”
O problema – eu digo em seguida – é que o Paixão de De Palma é a refilmagem de Crime de Amor, que Alain Corneau havia lançado apenas dois anos antes, em 2010. E Crime de Amor é um filme absolutamente brilhante, muitíssimo melhor do que a refilmagem. Portanto…
Um outro ponto é Sandra Bullock, a intérprete da protagonista da história, essa pobre Ruth Slater, que come o pão que todos os diabos fizeram questão de amassar. Sandra Bullock – um tanto como Woody Allen, ou como Bob Dylan foi, ainda nos anos 60 – é uma pessoa que inspira sentimentos fortes, amor ou então ódio. Não há muita gente indiferente a Sandra Bullock – e há muita gente que não aguenta, não suporta sua figura. Além de atriz principal, ela é também um dos produtores de The Unforgivable.
O terceiro ponto é o mais complexo de todos. Pode ser que muitas pessoas tenham odiado o filme porque são contra a defesa de que todo ser humano merece uma segunda chance. Porque acreditam que “bandido bom é bandido morto”. Porque têm como mandamento na vida a Lei do Talião, o olho-por-olho, dente-por-dente.
Três histórias diferentes logo no início
O roteiro (escrito consecutivamente por Peter Craig, Hillary Seitz e Courtenay Miles) apresenta para o espectador, logo na abertura, três narrativas, três situações – que, é claro, logo em seguida vão se misturar, vão se interligar:
* Uma mulher está saindo da prisão. Veremos que se chama Ruth Slater, e é levada do presídio onde passou 20 anos para o mundo exterior por um oficial de condicional extremamente rígido, exigente, duro, Vincent Cross (Rob Morgan, na foto acima). O oficial de condicional deixa Ruth em uma espécie de pensionato para moças de trato nada, mas nada fino, um lugar miserável, opressivo, no meio de uma Chinatown que parece pior que a penitenciária de onde ela saiu. E entrega a ela o endereço de um lugar onde ela encontrará trabalho – uma indústria de pescado.
* Uma jovem aí de uns 20 e poucos anos está dirigindo seu carro, dormita por um rápido instante, seu carro atravessa um farol vermelho e é atingido por outro que vinha na transversal. A moça, Katherine (Aisling Franciosi, na foto abaixo), fica bastante ferida, mas não gravissimamente. Veremos que estuda piano, está para se apresentar em uma audição importante, em um belíssimo teatro da cidade. Ela vive em uma família que parece absolutamente tranquila, estável, classe média bem de vida.
* Um sujeito de maus bofes, a rigor com cara de doido perigoso, observa, de um carro, a saída de Ruth Slater da prisão, e segue o carro em o oficial de condicional a conduz para aquele pensionato horroroso na Chinatown – veremos em seguida que tudo se passa em Seattle e seus arredores.
Durante alguns minutos, o espectador fica meio no escuro, sem entender ainda o que une essas três narrativas, essas três situações diferentes. Mas esse incômodo não se prolonga por muito tempo. Bem rapidamente, informações básicas vão sendo dadas.
Ruth Slater havia sido presa 20 anos antes por matar o xerife do condado onde ela morava numa casa de sítio com a irmãzinha que tinha então 5 anos de idade. As duas eram órfãs, não tinham mais parentes no mundo – a mãe já havia morrido, o pai se matou, a jovem Ruth cuidava da irmãzinha mas não tinha como se manter. A polícia chegou para despejar as duas – e o xerife levou um tiro fatal.
A irmãzinha de 5 anos era Katherine. Com a prisão da irmã mais velha que cuidava dela, foi dada para adoção. O casal que a adotou, Michael e Rachel Malcolm (os papéis de Richard Thomas e Linda Emond) cuidou dela com muito afeto – mas jamais mencionou para ela a existência da irmã que a havia criado nos primeiros anos de vida.
Da prisão, Ruth escrevia sem parar cartas para a irmã – que os pais adotivos jamais entregaram para Katherine.
O sujeito com cara de doido perigoso que observou Ruth sendo solta se chama Keith Whelan (o papel de Tom Guiry), e é filho do xerife assassinado. Não se conforma com o fato de Ruth ter saído solta em regime condicional após ter cumprido 20 anos de prisão. Acha que ela tem que morrer – e planeja alguma forma de executá-la, ou fazer com que policiais se vinguem da morte do colega. Seu irmão mais novo, Steve (Will Pullen) parece bem mais sensato, centrado do que ele.
A ex-presidiária sofre mais que escravo nas galés romanas
O filme vai nos mostrando, em ações paralelas, o que vai acontecendo nas vidas de Ruth, de Katherine e sua família, e dos irmãos Whelan, os órfãos do xerife assassinado.
Volta e meia há flashbacks para 20 anos atrás, para os acontecimentos na casa em que Ruth e Katherine viviam, quando a policia chegou para despejá-las de lá.
A vida pós-prisão de Ruth é infernal. O lugar em que vive é pior do que a prisão, como eu já disse. Ela divide um quarto pequeno com três outras mulheres, pessoas sem qualquer tipo de simpatia, o banho só pode durar tantos minutos, é tudo infernal. O trabalho que ela consegue através da indicação do oficial da condicional, na tal indústria de peixes, é duro, exaustivo, mal-cheiroso.
A mulher sofre mais que escravo nas galés romanas.
Um dia, pega um ônibus e vai até a antiga chácara onde viveu com Katherine – onde aconteceu o crime que a separou a irmã e a fez passar 20 anos na prisão. A casa havia sido reformada, melhorada – morava ali um casal e seus dois filhos. O homem, o espectador logo vê, é uma boa alma; chama-se John Ingran (o papel de Vincent D’Onofrio, que achei bem mais magro do que nos filmes anteriores dele), é um advogado bem sucedido. A mulher dele, Liz (o papel da grande Viola Davis, na foto abaixo) é uma mulher dura, rígida, irritadiça.
John Ingran faz gestos simpáticos àquela desconhecida que diz ter morado na casa muitos, muitos anos atrás. E Ruth passa a contar com ele para tentar conversar com os pais adotivos da irmã, tentar chegar até ela.
A jovem diretora alemã demonstra talento
Não relatei nada que aconteça depois da metade dos 112 minutos de duração do filme. Tenho certeza de não ter dado spoiler.
E acho que o que relatei demonstra que é uma bela história, uma bela trama.
E tudo é apresentado ao espectador com talento. A jovem diretora Nora Fingscheidt, uma alemã nascida em 1983, que estava portanto com 38 anos na época do lançamento do filme, demonstra maturidade, domínio do ofício. Todo o elenco está muito bem – e Sandra Bullock tem a melhor interpretação de sua carreira, na minha opinião.
É um belo, vigoroso documento sobre como é absolutamente difícil, se não impossível, uma pessoa condenada por um crime ter direito a uma segunda chance, uma vida digna – mesmo depois de pagar as contas à Justiça, à sociedade, depois de cumprir o tempo de prisão determinado em julgamento todo feito dentro do que mandam as leis.
Mais ainda: ao longo de toda a narrativa, o filme parece nos fazer lembrar que a imensa maior parte dos problemas, quase todos eles, tem a ver com a pobreza, com a injustiça social, a má distribuição da riqueza.
Não vi a minissérie inglesa na qual este filme se baseia, Unforgiven. Sally Wainwright, a autora da história e também do roteiro da série de três episódios, uma inglesa nascida em Yorkshire em 1964, é uma mulher de talento; escreveu também a belíssima série Gentleman Jack, de 2019, estrelada pela mesma Suranne Jones que faz o papel de Ruth Slater em Unforgiven. Toda a ação da série original se passa exatamente em Yorkshire, no interior da Inglaterra.
A série foi exibida em 2009. Já em 2010 foi anunciado que ela seria refilmada nos Estados Unidos; o produtor Graham King, que comprou os direitos para a refilmagem, queria Angelina Jolie no papel de Ruth Slater, e contratou o roteirista Christopher McQuarrie para escrever a nova versão da história especificamente para ela.
Por alguma razão, ou uma série de razões, o projeto não foi para frente na época. Mas foi retomado quase uma década depois. Ao produtor Graham King juntou-se Sandra Bullock. Decidiu-se que a ação se passaria em Seattle e em uma chácara nos arredores da cidade.
Não parece ter sido fácil o trabalho de adaptação da história inglesa para a realidade do Estado de Washington. de elaboração do roteiro. Nos créditos está dito que o roteiro é de “Peter Craig and Hillary Seitz and Courtenay Miles”. Pelas normas do Writers Guild, o sindicato dos roteiristas, isso indica que Peter Craig elaborou um roteiro, que depois foi reescrito, ao menos em parte, por Hillary Seitz, e em seguida reescrito novamente por Courtenay Miles. (Quando duas ou mais pessoas trabalham juntas em um roteiro, usa-se entre os nomes o sinal “&”. O “and” indica que cada um trabalhou separadamente do outro.)
Sempre é possível não gostar de uma coisa ou outra num filme. Acho, por exemplo, que o roteiro acabou tendo muitos pequenos flashbacks da época do despejo de Ruth e sua irmãzinha Katherine – são pequeninas sequências, mas são demasiadas, me pareceu. Acabam interrompendo demais a narrativa, que já é necessariamente dividida em três situações – as ações em torno de Ruth, as ações em torno de Katherine e sua família, as ações em torno dos filhos do xerife assassinado.
Achei também muito estranho que Corey (Andrew Francis), o sujeito que trabalha com Ruth na indústria pesqueira e se aproxima dela, tenha contado para os colegas sobre o crime que a moça havia cometido no passado – inconfidência que provoca uma briga violenta entre uma funcionária parente de policiais e a ex-presidiária. Não tem lógica. Não bate com o jeito com que ele age no resto do tempo.
Muito mais estranho ainda me pareceu a súbita e brutal mudança de comportamento de Steve Whelan, o filho mais novo do xerife assassinado. Em várias sequências, no começo, Steve parece absolutamente mais resolvido, mais tranquilo que o irmão mais velho, Keith. Keith é obcecado pela vingança, quer que Ruth morra. Steve, ao contrário, quer tocar a vida em frente, e parece mesmo entender que, diabo, a mulher já havia pago por seu crime com 20 anos na prisão. A mudança de comportamento dele, repentina, me pareceu de fato violenta demais, algo muito pouco lógico, pouco plausível.
Mas, diabo, mesmo isso aí, que me parece um defeito sério do roteiro, é pequeno diante das qualidades do filme.
Um belo filme, criticado com muita fúria
Não consigo compreender a fúria com que The Unforgivable foi tratado, por exemplo, no site que mantém vivo o legado do grande Roger Ebert – um crítico que sempre procurava ver primeiro as qualidades e não os defeitos de cada filme.
O texto assinado por Odie Henderson começa assim:
“Eu sei que pecados não arrependidos cometi para merecer a punição divina que é The Unforgivable da Netflix, mas você tem a chance de ser penitente e evitá-lo. São três filmes em um, cada um progressivamente pior que o anterior. Começamos com uma história de arrependimento, que leva a um breve drama de advogados antes de cair num thriller de mau gosto com sequestro e assalto. É baseado numa série de TV, que não vi, e então talvez isso explique por que ele pareça tão cheio de coisas. Sandra Bullock tem motivos para aparecer nele – ela é também a produtora –, mas grandes veteranos como Vincent D’Onofrio, W. Earl Brown e Viola Davis não têm desculpa. As sequências com Davis, em especial, são questionáveis: ela tem uma fala que tenho a certeza de que os realizadores não pretendiam que eu considerasse seriamente. Mas é um comentário tão chocante, fora de lugar, que coloriu minha própria análise.”
E a partir daí o crítico passa parágrafos condenando uma frase da personagem de Viola Davis, uma referência à questão racial, a cor de pele. Para concluir dizendo que não sabe quem ou o que é “The Unforgivable”, o imperdoável do título – se é Ruth Slater, se é o Sistema, se são os pais adotivos de Katherine, se são os irmãos violentos. Ah, vai… Bem. Na minha opinião, toda a crítica desse Odie Henderson é uma grande idiotice; a grande preocupação do sujeito é uma frase que pareceu a ele – um negro – ofensiva aos negros.
No inglês The Guardian, o filme recebeu duas estrelas em cinco. O texto do crítico Peter Bradshaw começa assim:
“O premiado drama policial de Sally Wainwright da ITV Unforgiven foi redesenvolvido para a Netflix como um filme; foi transplantado de Yorkshire para Seattle, e o título foi mudado, talvez para evitar qualquer confusão com o filme de Clint Eastwood.”
(Unforgiven, no Brasil Os Imperdoáveis, o grande western que Clint dirigiu e estrelou em 1992.)
“Sandra Bullock assume o papel central de Suranne Jones como Ruth Slater, uma mulher que sai da prisão em liberdade condicional por ter matado um policial em um espasmo semi-acidental de raiva e medo quando ele foi enviado para impor seu despejo. Agora ela está obcecada em encontrar sua única família: a irmãzinha Katherine, que foi adotada depois que Ruth foi presa.”
E ele conclui assim:
“As voltas e mais voltas da trama, que eram administráveis num drama de TV de três partes, parecem artificiais e improváveis em um filme de duração normal, e Bullock tem pouco a fazer a não ser parecer conscientemente solene e martirizada ao longo dele todo.”
Cada um, é claro, tem direito à sua opinião.
Para mim, este The Unforgivable é um belo filme, uma bela, contunde crítica às pessoas e à sociedade como um todo que não conseguem perdoar um indivíduo que cometeu o crime, mesmo depois que o criminoso pagou por ele.
Anotação em dezembro de 2021
Imperdoável/The Unforgivable
De Nora Fingscheidt, Inglaterra-Alemanha-EUA, 2021
Com Sandra Bullock (Ruth Slater)
e Viola Davis (Liz Ingram), Vincent D’Onofrio (John Ingram), Jon Bernthal (Blake), Aisling Franciosi (Katherine Malcolm, a irmã de Ruth), Richard Thomas (Michael Malcolm, o pai adotivo de Katherine), Linda Emond (Rachel Malcolm, a mãe adotiva de Katherine), Emma Nelson (Emily Malcolm, a outra filha do casal Malcolm), Will Pullen (Steve Whelan, o filho mais novo do xerife), Tom Guiry (Keith Whelan, o filho mais velho do xerife), Jessica McLeod (Hannah Whelan, a mulher de Steve), Rob Morgan (Vincent Cross, o oficial da condicional), Andrew Francis (Corey), W. Earl Brown (xerife Mac Whelan), Neli Kastrinos (Katie aos 5 anos), Orlando Lucas (Ryan Ingram), Jude Wilson (Daniel Ingram), Paul Moniz de As (empreiteiro), Craig March (capataz), Alistair Abell (policial), Donavon Stinson (policial), Patti Kim (Patty), Jessica Charbonneau (garçonete), William Belleau (Bob Farrior), Viv Leacock (Cameron), Toby Hargrave (Stan)
Roteiro Peter Craig e Hillary Seitz e Courtenay Miles
Baseado na minissérie inglesa “Unforgiven”, escrita por Sally Wainwright
Fotografia Guillermo Navarro
Música David Fleming e Hans Zimmer
Montagem Stephan Bechinger, Joe Walker
Casting Francine Maisler
Direção de arte Kim Jennings
Produção Sandra Bullock, Veronica Ferres, Graham King, Construction Film, Fortis Films, GK Films, Red Production Company.
Cor, 112 min (1h52)
Disponível na Netflix em dezembro de 2021.
***
Gostei muito da sua resenha, a mais completa que encontrei.
Parece ser um filme que analisa bem o psicológico humano, traumas e tudo mais.
Não vejo a hora de assistir!
Eu assisti ao filme, realmente por acaso, e ele é simplesmente fascinante.