(Disponível no Mubi em janeiro de 2022.)_
As criaturas a que Agnès Varda deu vida em seu filme de 1966 – dedicado explicitamente, nos créditos iniciais, “para Jacques”, Jacques Demy, seu marido – são dadas a súbitas, violentas, radicais alterações de humor, de comportamento.
Edgar Piccoli, o protagonista da história, interpretado por Michel Piccoli, pessoa em geral afável, educada, tem, num determinado momento, um acesso de destempero, mau humor, e agride com palavras e ações dois funcionários do hotel do vilarejo em que está vivendo nos últimos meses. Nesse momento do ataque aos funcionários, a tela se tinge de um fundo vermelho vivo, a cor normalmente associada a reações sanguíneas, passionais.
A fotografia do filme, maravilhosa (assinada por três profissionais, Willy Kurant, William Lubtchansky e Jean Orjollet), é em glorioso, magnífico preto-e-branco. Mas em algumas sequências – exatamente nos momentos das radicais mudanças de comportamento dos personagens criados pela realizadora – a tela se tinge de vermelho.
Como quando a dona do hotel, Michelle, de repente, do nada, deixa completamente de lado seu comportamento calmo, suave, e passa a se insinuar para um sujeito desagradável, antipático, um bandidinho do lugar, Max Picot (Pierre Danny). Bem, “se insinuar” é pouco. Michelle literalmente se oferece para o tal Max, em pleno restaurante do seu estabelecimento, que naquele momento, agosto, auge do verão, está absolutamente cheio. Todos ficam chocados com a cena; vemos o espanto no rosto de Piccoli – e um espanto ainda maior no do doutor Desteau (Bernard Lajarrige), o amante de Michelle.
Michelle é o papel da sueca Eva Dahlbeck (na foto acima), linda e bergmaniana – fez seis filmes com o grande mestre Ingmar Bergman, entre eles Sorrisos de uma Noite de Amor, “uma das melhores comédias românticas de todos os tempos”, segundo o crítico Leonard Maltin.
Mas As Criaturas não é uma comédia romântica – é um drama um tanto pesado (e experimental) sobre o comportamento humano, os relacionamentos e, sobretudo, sobre o ato de criar, o ato de inventar histórias, personagens, dar vida a criaturas fictícias.
E Michelle não é o principal papel feminino – nem Eva Dahlbeck é a mais bela atriz do elenco. A protagonista feminina da história é Mylène, a mulher do escritor Edgar Piccoli – o papel de uma Catherine Deneuve de 22 aninhos de idade cuja beleza deixa o espectador tonto, zonzo.
Há uma terceira bela atriz no filme, embora muitíssimo menos conhecida que Catherine Deneuve e Eva Dahlbeck. Chama-se Marie-France Mignal, e interpreta Viviane Quellec, a irmã mais nova de Michelle. Enquanto Michelle administra o hotel criado pelo pai (o papel de Alain Roy), hoje um velho quase senil que vive numa cadeira de rodas, Viviane vive sua vida independente em Paris, bem longe daquele vilarejo situado num local que, na maré alta, se transforma em uma ilha. Mas, naquele mês de agosto em que se passa parte da ação, Viviane veio de Paris para o hotel da família. Livre leve solta, logo se deu bem com um eletricista bonitão que estava trabalhando no vilarejo, Jean Modet – o papel de Nino Castelnuovo.
Esse Jean não aparece em sequência alguma ao lado de Mylène, a jovem mulher de Edgar Piccoli – mas é fascinante ter, em um filme de Agnès Varda rodado em 1965 e lançado em 1966 Catherine Deneuve e Nino Castelnuovo, o casal central do maravilhoso Os Guarda-Chuvas do Amor/Les Parapluies de Cherbourg, que o marido da realizadora, Jacques Demy, havia feito em 1964 – e foi o filme que projetou La Deneuve para o sucesso internacional.
La Deneuve voltaria a trabalhar com Demy no ano seguinte ao deste Les Créatures, 1966, em Duas Garotas Românticas/Les Demoiselles de Rochefort, ao lado de sua irmã, Françoise Dorléac. Um quarto de século depois, em 1993, Agnès Varda faria um documentário de média metragem sobre esse filme do marido, Les Demoiselles Ont Eu 25 Ans, as garotas fizeram 25 anos.
Um casal parindo. Ele, um romance. Ela, uma criança
Agnès Varda abriu seu Les Créatures com big close-ups da jovem Catherine Deneuve. Primeiro a boca, depois os olhos.
Meu Deus do céu e também da Terra! Nem Boticelli, nem qualquer outro pintor jamais conseguiu desenhar um rosto tão belo.
Mylène e seu marido Piccoli estão na estrada. Estão felizes, eles dois, rostos sorridentes – mas ele está correndo muito, e ela está pedindo para ele diminuir a velocidade.
Não se fala explicitamente hora alguma de onde eles estão vindo e para onde vão – mas dá para inferir que o casal está saindo de sua casa em uma cidade grande, provavelmente Paris mesmo, e indo para um lugar sossegado onde Piccoli possa escrever o romance que já tem em mente. – “Nós vamos alugar uma casa, vamos fazer caminhadas, só nós dois, juntinhos”, ele diz. Ela faz cara boa, mas pede para ele diminuir a velocidade.
A câmara passa a mostrar um lugar à beira-mar – seguramente o lugar para onde o casal está indo.
Estamos vendo uma paisagem à beira-mar quando ouvimos o barulho forte de uma batida de carro, e só depois que ouvimos o barulho a câmara mostra, em uma rápida tomada, o carro do casal chocado com uma árvore à beira da estrada.
E é aí começam os créditos iniciais. Ao final dos créditos vem a dedicatória: “Pour Jacques”.
A partir daí, o roteiro original escrito por Agnès Varda deixa o espectador em suspense durante pelo menos dez inquietantes minutos. Vamos vendo diversas sequências em que Piccoli aparece – com a marca de um grande corte na testa, seguramente sequela do acidente –, mas não vemos sua jovem e bela mulher.
Vemos Piccoli junto do mar, em um trecho de areia por onde passam veículos, mas que, na maré alta, fica submerso. Depois vemos Piccoli andando pelo vilarejo – mais tarde pessoas vão se referir ao lugar como “a ilha”.
Como já foi dito, não se diz explicitamente em momento algum que lugar é aquele, mas as filmagens foram em Noirmoutier-en-l’Île – uma grande ilha localizada no Oceano Atlântico, um pouco ao Sul da foz do Rio Loire. O lugar é uma ilha duas vezes por dia, durante a maré alta – como acontece também, creio, um pouco mais ao Norte, com a lindíssima ilha St. Michel. Durante a maré baixa dá para carros e caminhões chegarem até lá. Em algum momento do filme há referência a Nantes – a cidade grande mais próxima de Noirmoutier-en-l’Île.
Mas o que importa é que vemos Piccoli, e, durante mais de dez minutos, não temos notícia de Mylène. Quando ela finalmente aparece, na casa que o casal alugou, uma casa ampla, que parece um forte, percebemos que ela ficou muda – seguramente pelo choque com o acidente. Não parece ter ficado ferida, ao menos não gravemente – mas ficou muda. Anda pela casa com uma cadernetinha e uma caneta penduradas na roupa, que usa para se comunicar com o marido. Está sempre alegre, sorridente – perdeu a voz, mas não perdeu le bonheur, la joie de vivre, a alegria de viver. Cozinha bem, prepara pratos gostosos para o marido. E os dois se dão muito bem, são carinhosos um com o outro, gostam de ficar grudados sempre que possível.
Lá pelas tantas, ela anuncia que está grávida, e ele fica felicíssimo.
Estão ambos parindo – ela, uma criança. Ele, um novo romance, personagens. Criaturas.
Criaturas que perdem o controle delas mesmas
Durante um bom tempinho, não acontece nada na história. Vemos a rotina do casal. Mylène não gosta de sair de casa, fica sempre enfurnada lá. Piccoli sai muito de casa, passeia, caminha. Vai à quitanda do lugar comprar alimentos e bebidas, fica conhecendo a dona da venda, Henriette (Jeanne Allard), sua filha adolescente aí de uns 13 anos, Suzon (Joëlle Gozzi), a Michelle do hotel e algumas outras pessoas do vilarejo. Tem um momento em que ele não apenas dá bom dia a um cavalo como conversa bastante com ele.
E não acontece propriamente coisa alguma – repito – durante um bom tempinho.
Agnès Varda nos oferece, então – entre uma breve sequência e outra em que vemos Piccoli dando uma caminhada, ou simplesmente andando dentro de casa, ou não fazendo coisa alguma – tomadas da paisagem. Como se fossem assim quadros, pinturas, cenários praianos, algumas naturezas mortas. Barcos pesqueiros, o produto da pesca. Peixes em exposição na feira. Caranguejos. Muitas, muitas tomadas de caranguejos.
Nessas tomadas em que não aparece criatura alguma, ouvimos acordes de violino um tanto lancinantes. Quando corta para uma tomada em que Piccoli está caminhando, se faz silêncio – para logo aquele acorde um tanto chato, desagradável, voltar, em nova tomada da natureza.
(Esse trecho aí, e em especial a sequência em que vemos Piccoli conversando com o cavalo, foram o suficiente para que Mary tomasse a decisão de desistir de ver o filme quando ele sequer tinha chegado à metade de seus 92 minutos.)
É por aí, é nessa altura do filme que começam a surgir aquelas sequências em que o vermelho toma conta da tela, para realçar os instantes em que os personagens – aquelas criaturas de Agnès Varda, que vão virar também as criaturas do escritor Piccoli – passam por brutais mudanças de humor, de comportamento.
O verbete sobre o filme na Wikipedia em francês tem duas belas frases sobre isso: “Fatos perturbadores se produzem. Vários habitantes da ilha parecer perder o controle de si mesmos.”
“Plusieurs habitants de l’île semblent perdre le contrôle d’eux-mêmes.” É exatamente isso.
Passado aquele rápido instante em que as pessoas perdem o controle de si mesmas, elas se arrependem do que fizeram, pedem desculpas. Depois que agride verbal e fisicamente o jovem Simon (Robert Ganachaud), garçom do hotel, e uma outra funcionária, Pìccoli pede desculpas à simpática Michelle, diz que foi provocado por eles. Mais tarde, pouco depois que ela própria dá aquele vexame no restaurante de seu hotel, se oferecendo toda para o bandidinho, Michelle fica envergonhadíssima, tenta se desculpar.
Nesse episódio no meio do restaurante, Piccoli acha que aquela perda de controle de Michelle teve a ver com um pedaço de metal, algo parecido com uma grande moeda, que foi colocado perto dela. E, de fato, o espectador já havia visto mais de uma rápida tomada em que um objeto redondo de metal era colocado sub-repticiamente nos bolsos de algumas pessoas.
Um elemento externo que mexe no comportamento das pessoas? Algo um tanto mágico, sobrenatural? Ficção científica?
O clímax da história criada por Agnès Varda será uma espécie de jogo de xadrez em que as peças são aquelas pessoas do vilarejo – Michelle, sua irmã Viviane, seu amante, o doutor Destou, Henriette da venda e sua filha Suzon, o eletricista bonitão Jean, o garçom Simon, o velho Quellec pai de Michelle e Viviane.
Vemos essas criaturas em um grande tabuleiro de xadrez. Elas avançam pelas casas de acordo com o número que sai de um dado acionado pelos dois jogadores – o próprio Piccoli e Monsieur Ducasse (o papel de Lucien Bodard), um sujeito misterioso, engenheiro aposentado, que possui em sua grande casa, em formato de torre, um imenso número de gadgets, geringonças mecânicas e elétricas, com os quais age sobre a vida das pessoas do vilarejo.
Aí duas coisas, duas histórias, duas linhas se misturam. Há aquela realidade que Piccoli encontra no vilarejo da ilha, aquelas pessoas do lugar – pessoas que ele usa para construir a sua ficção. E então há a realidade e a ficção que ele está criando, seus personagens, suas criaturas, moldadas a partir daquela gente que ficou conhecendo.
Cada espectador poderá decidir o que é o que – até onde vai a realidade, onde começa a imaginação do escritor.
O que importa é que ao final, como eu já disse lá em cima, tanto Piccoli quanto sua belíssima jovem mulher vão parir – ele sua ficção, suas criaturas fictícias, ela uma criaturinha de carne e osso.
Piccoli trabalhou com as mais lindas atrizes
Antes de passar para outras opiniões, para as opiniões de quem de fato entende, quero registrar alguns fatos.
* Em Portugal, Les Créatures teve o título de Páginas Íntimas.
* Catherine, de outubro de 1943, estava portanto com 22 anos em 1965, o ano em que o filme foi rodado. Michel Piccoli é de 1925, e estava portanto com 40 anos; a diferença de idade entre os dois – 18 anos – é bem significativa.
* Michel Piccoli é danado. Trabalhou ao lado de Brigitte Bardot (O Desprezo, 1963, Jean-Luc Godard), Simone Signoret (As Virgens de Salem, 1957, Raymond Rouleau), Jeanne Moreau (O Diário de uma Camareira, 1964, Luis Buñuel), Jane Fonda (O Perigoso Jogo do Amor, 1966, Roger Vadim), Romy Schneider (As Coisas da Vida, 1970, e Sublime Renúncia, 1971, ambos Claude Sautet). E aqui ao lado de Catherine.
Ô louco, meu!
* Coincidência: em Les Choses de la Vie, o personagem de Michel Piccoli é casado com uma mulher mais jovem de beleza fenomenal, extraordinária que é Romy Schneider. Exatamente como neste Les Créatures aqui. E, exatamente como neste filme de Agnès Varda, seu personagem sofre um grave acidente automobilístico.
* Michel Piccoli interpreta Edgar Piccoli. Essa coisa de o personagem ter o nome do ator, que pode até surpreender um pouco os espectadores mais jovens, era absolutamente comum nos filmes franceses e italianos da segunda metade do século passado.
* Coincidências, coincidências. Se o protagonista de um dos grandes filmes de Ingmar Bergman, O Sétimo Selo, de 1957, podia jogar xadrez com a morte, porque esta co-produção França-Suécia com uma atriz sueca e bergmaniana não poderia incluir um jogo de um xadrez com dados em que as peças são as criaturas da autora?
* Les Creátures passou por um processo completo de restauração de som e imagem. É a cópia restaurada, novinha, perfeita, maravilhosa, que está disponível no Mubi, o serviço de streaming que privilegia os filmes dos grandes diretores.
Críticas duríssimas – e também elogios apaixonados
Em entrevista à revista Cinéma et Télecinéma, na época do lançamento do filme, Agnès Varda disse o seguinte:
“Neste filme, tentei mostrar que a inspiração é uma coisa desordenada, que pode surgir de várias direções: do cotidiano de pessoas que conhecemos, da imaginação esvaziada, de paisagens, de leituras ou de encontros… Isso tudo cria uma confusão que não se organiza por si só. Se quisermos tratar desse fenômeno, devemos antes de mais nada reparar na desordem, porque da desordem nasce o pensamento, a simplicidade, a síntese.”
Houve críticas muito duras ao filme, na época do lançamento. Nos Cahiers du Cinéma, a bíblia dos cinéfilos nos anos 60, em que os jovens François Truffaut, Jean-Luc Godard e Claude Chabrol foram críticos nos anos 50, um tal Jean Narboni escreveu: “Varda, com As Criaturas, atirou-se no vazio. E quem faz isso, como escreveu um dia Godard, não deve prestar contas a ninguém.”
No semanário Le Nouvel Observateur, Michel Cournot escreveu: “O novo filme de Agnès Varda, As Criaturas, é um monstro, a tal ponto que ele toma, por momentos, a aparência de um escandaloso capricho.”
Houve também, é claro, quem defendesse o filme apaixonadamente. Em carta à realizadora, o lendário Henri Langlois (1914-1977), um dos fundadores da Cinemateca Francesa e um pioneiro na conservação e restauração de filmes, escreveu, como em resposta às críticas pesadas: “O seu filme é tão idiota quanto Jean Renoir, tão ruim quanto Rossellini, tão pouco poético quanto Méliès…”
No L’Humanité, o órgão oficial do Partido Comunista Francês, Samuel Lachize escreveu: “Talvez não seja o melhor filme de Agnès Varda. Acho até que faremos careta diante de As Criaturas e estaremos equivocados. Pois este é um filme livre… É uma obra que compreenderão melhor os poetas, pois As Criaturas não pertence a nenhum gênero conhecido, é um filme perturbador, curioso.”
No Le Figaro Littéraire, Paul Mazars escreveu: “Este filme não tem nada de abstrato, pois Agnès Varda conta as peripécias com rapidez, humor e felicidade. Trata-se de um romance de costumes provincianos, que nos mostra, sobretudo, a obra literária em vias de se criar, de nascer, de construir-se no sono e no sonho.”
Todas essas avaliações foram feitas na época do lançamento, em 1966. Vejamos o que diz hoje o Guide des Films de Jean Tulard. Ah… O Guide não gostou do filme, deu 1 estrela apenas:
“O filme deforma a realidade a favor dos fantasmas da autora. Mas a intrusão do imaginário parece muitas vezes artificial, dentro de uma narrativa que é muito brilhante. Isso resulta num filme original, mas bastante vão.”
Uma década de muita experiência formal
Não entendi muito bem o que o Guide quis dizer, mas paciência.
Agora, gostaria de fazer minha consideração.
Os anos 60 foram muito provavelmente o período em que houve mais experiências, experimentos, tentativas de inovar a linguagem cinematográfica, de mexer com a gramática, com as linhas básicas que haviam sido estabelecidas ainda no início do século, por, entre outros, gigantes como D.W. Griffith (o uso das ações paralelas, por exemplo) e Sergei Mikhailovich Eisenstein (a ênfase na montagem).
Naqueles anos 60, experimentou-se muito, experimentou-se absolutamente tudo, no mundo inteiro – mas provavelmente o país em que mais se inventou foi a França, com Alain Resnais e Jean-Luc Godard à frente. Orson Welles já havia tornado a decomposição da cronologia algo palatável às audiências, com seu Cidadão Kane (1941). Resnais foi muito além ao misturar passado, presente, realidade, sonho, fantasia, em especial em O Ano Passado em Marienbad (1961). Godard começou a fazer experiências com a narrativa já na sua estréia, em Acossado/À Bout de Souffle (1960), e passaria todas as décadas seguintes experimentando até onde a paciência do pobre espectador aguentaria.
Creio que, em Les Créatures, Agnès Varda se permitiu experimentar um pouco. Partia de uma trama que já era uma ousadia, uma mistura de real com ficção – e então se permitiu experiências formais como aquela coisa da insistência em paisagens distanciadas da narrativa, tomadas de peixes, de caranguejos, com aqueles violinos estridentes.
Fui conferir nas minhas velhíssimas anotações: eu havia visto Les Créatures duas vezes, antes desta agora. Na primeira vez eu tinha 17 anos – vi em Curitiba, onde passei dois anos, entre Belo Horizonte e São Paulo. Vi logo depois de Tempo de Guerra/Les Carabiniers, de Godard e Roberto Rossellini, e em seguida veria O Pequeno Soldado/Le Peti Soldat, também de Godard, e Cléo das 5 às 7, o grande filme da própria Agnès Varda que tem uma participação especial – deliciosa – de Godard e sua então mulher e musa Anna Karina.
Veria Les Créatures de novo aos 18 anos, já morando em São Paulo – e, diabo, logo depois de A Guerra Acabou/La Guerre est Finie de Alain Resnais, e em seguida veria Giulieta dos Espíritos/Giulieta degli Spiriti, de Federico Fellini, e Histórias Extraordinárias/Histoires Extraordinaires, o filme de episódios dirigidos por Fellini, Louis Malle e Roger Vadim.
Eu era um garoto que amava os Beatles, os Rolling Stones e os grandes realizadores do cinema.
Não consigo me lembrar, é claro, do que senti ao ver As Criaturas aos 17 e 18 anos, mas seguramente devo ter adorado. Os garotos adoram uma novidade, um experimento. Devo ter achado aqueles caranguejos uma grande sacada.
Ao rever o filme agora, achei essas experiências formais da Varda, essa coisa dos caranguejos, dos violinos estridentes, da conversa com o cavalo, isso tudo uma grande bobagem. E até compreendo que Mary tenha desistido do filme e ido fazer algo que achasse mais interessante. Mas não consigo deixar de gostar do filme. Gostei demais de revê-lo agora, nós dois já velhinhos – o filme e eu.
Não tenho vergonha em dizer, no entanto, que prefiro os filmes dessa extraordinária realizadora em que ela nos conta belas histórias com imagens belas e uma narrativa simples, tranquila, escorreita, direta. Sim, prefiro Cléo das 5 às 7, As Duas Faces da Felicidade (de 1962 e 1965, antes, portanto, deste Les Créatures), Duas Mulheres, Dois Destinos/Une Chante, l’Autre Pas (de 1977).
Entre um bom filme cheio de experiências e um bom filme sóbrio, direto e reto, prefiro sempre o segundo. Entre Jean-Luc Godard e François Truffaut, sou Truffaut e dou um milhão de lambuja.
Anotação em janeiro de 2022
As Criaturas/Les Créatures
De Agnès Varda, França-Suécia, 1966
Com Michel Piccoli (Edgar Piccoli),
Catherine Deneuve (Mylène, sua jovem mulher)
e Eva Dahlbeck (Michelle Quellec, a dona do hotel), Marie-France Mignal (Viviane Quellec, a irmã de Michelle), Britta Pettersson (Lucie de Montyon), Ursula Kubler (Vamp), Jeanne Allard (Henriette), Joëlle Gozzi (Suzon), Bernard Lajarrige (o doutor Desteau, amante de Michelle), Lucien Bodard (Monsieur Ducasse, o engenheiro dos gadgets), Pierre Danny (Max Picot, o vendedor bandidinho), Louis Falavigna (Pierre Roland, o cúmplice de Max), Nino Castelnuovo (Jean Modet, o eletricista que namora Viviane), Jacques Charrier (René de Montyon), Robert Ganachaud (Simon, o jovem garçom do hotel), Marie-Thérèse Gervier (Danny), Alain Roy (Quellec, o pai de Michelle e Viviane)
Argumento e roteiro Agnès Varda
Fotografia Willy Kurant, William Lubtchansky e Jean Orjollet
Música Pierre Barbaud; com composições de Henry Purcell
Montagem Janine Verneau
Direção de arte Claude Pignot
Produção Mag Bodard, Parc Films.
P&B, 92 min (1h32)
R, ***
Título em Portugal: Páginas Íntimas.
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