(Disponível na Netflix em março de 2022.)
A personagem central deste A Arte de Amar, produção polonesa de 2017, é absolutamente, maravilhosamente, loucamente fascinante. Sua vida parece a invenção mais desvairada de um autor de folhetins fantásticos, imaginativos, inacreditáveis. Pois é: fica ainda mais delicioso ver o filme sabendo que essa Michalina Wislocka existiu mesmo, e o que vemos na tela é uma história real.
James Baldwin uma vez escreveu – acho que em Giovanni’s Room, seu romance de 1956, que era o mais infeliz dos homens, porque era, ao mesmo tempo, preto, homossexual e norte-americano.
Dá para dizer, com base na frase do grande escritor, que Michalina Wislocka foi a mais estranha, a mais imprevista, a mais surpreendente das mulheres, porque era, ao mesmo tempo, sexóloga, feliz, livre leve e solta e polonesa na Polônia da ditadura comunista – uma mulher libertária em uma ditadura machista, repressora, chefiada por homens reprimidos, caretas e infelizes.
É para fazer as mulheres felizes, camaradas!
Se você colocar o título original do filme – Sztuka kochania. Historia Michaliny Wislockiej – no tradutor do Google terá “Arte do amor. A história de Michalina Wislocka”.
Sztuka Kochania no original. The Art of Loving, que, na edição em língua inglesa, recebeu um complemento, A Practical Guide to Marital Bliss, uma guia prático para a bênção conjugal. Sztuka Kochania, arte do amor, arte de amar, era o título do livro que Michalina Wislocka passou anos escrevendo, e lutou bravamente, incansavelmente, loucamente para publicar – tendo diante de si a oposição ferrenha dos burocratas do Partido entrincheirados no Ministério da Cultura, dos burocratas do Partido entrincheirados no Departamento de Censura da Polônia comunista. Ou, em outras palavras, a oposição virulenta da ditadura.
Michalina Anna Wislocka, nascida em 1921 e morta em 2005, aos 83 anos, era médica, ginecologista, fez trocentos partos e cuidou de trocentos casos de mulheres que haviam feito abortos sem os devidos cuidados médicos. Poderia ter se transformado numa lutadora pelo direito do aborto com dignidade. Não se tornou, de forma alguma, uma combatente do aborto – mas resolveu usar sua grande experiência com o corpo feminino para ensinar às mulheres como ter mais prazer com o sexo.
Fez isso com todas as pacientes que foram aos consultórios em que trabalhou – mas passou a querer atingir um número muito maior de mulheres com seu livro.
Bem no início do filme, vemos Michalina datilografando numa máquina de escrever uma frase de que ela parece estar gostando especialmente. Magdalena Boczarska, a ótima atriz que interpreta a ginecologista e sexóloga (e tem uma impressionante semelhança física com ela, como a gente pode ver nas fotos de Michalina) sorri de prazer enquanto datilografa – e a diretora Maria Sadowska, numa simples e bela sacada, reproduz em letras grandes, na tela, as letras que vão sendo datilografadas:
“Todos sonham em ter um grande papel na vida. Uma audiência cheia de admiração. Contudo, uma audiência que nos dê um senso de segurança e valor só pode ser criada por um ser humano amoroso que caminhe ao nosso lado.”
Ao concluir a frase, Michalina-Magdalena Boczarska abre um sorriso e batuca de pura felicidade no alto da máquina de escrever. É bem provável que ela achasse que esse tipo de abordagem pudesse ter um efeito positivo junto às instâncias do governo que decidiam o que podia e o que não podia ser publicado na Polônia – e é nesse momento que terminam os créditos iniciais, com o nome do filme na tela.
É para fazer as mulheres felizes, camaradas!
Não adiantou.
Bons argumentos não adiantam nada contra a ignorância, a obtusidade.
Mulher ter prazer é pornografia, pecado
O filme vai nos mostrando que umas poucas cópias do manuscrito do livro Sztuka Kochania, a arte do amor, começavam a circular clandestinamente em Varsóvia – e as mulheres que liam adoravam, ficavam maravilhadas. Tereska (Jasmina Polak), uma jovem editora de uma revista feminina, que vemos conversando em um café com Michalina numa das primeiras sequências do filme, diz entusiasmada para a médica que tinha ficado apaixonada pelo que havia lido – e garante que passará a lutar ao lado dela para conseguir que o livro seja editado.
Para os burocratas do Partido, no entanto, aquilo era pornografia pura. Lixo.
Há um momento em que um desses burocratas, um dos muitos com quem Michalina se encontra para defender a publicação do livro, diz para ela uma frase emblemática:
– “Onde você pensa que está? Em Nova York?”
Mais tarde, quando é convidada para atender a mulheres em um balneário no interior, Michalina é confrontada pelo irritadíssimo diretor do lugar. Ele diz que aquele é um balneário de respeito, familiar – que é um absurdo que ela distribua camisinhas para jovens. E resume:
– “Você pensa que está em Varsóvia?”
Belo achado dos autores do roteiro: no interior, argumenta-se que ali é muito diferente da capital. Na capital, argumenta-se que ali é muito diferente da capital do mundo capitalista, da sociedade decadente.
Na grande Polônia comunista, não se pode falar em satisfação com o sexo, ensinar como as mulheres podem ter mais prazer e serem mais felizes com o sexo. Isso é pornografia. É pecado!
A Polônia, sabe-se, é um país profundamente religioso, profundamente cristão. O catolicismo é fortíssimo na Polônia – não foi por acaso, de forma alguma, que o primeiro papa não italiano in saecula saeculorum tenha se chamado Karol Józef Wojtyła, nascido em Wadowice, perto de Cracóvia.
O filme mostra que alguns dos burocratas do comunismo que dizem não ao livro de Michalina usam a Igreja coimo um dos argumentos contra a publicação. A Igreja, a grande inimiga do Partido, do regime.
Não dá para saber, é claro, se aconteceu de fato, ou se os autores do roteiro se utilizaram de uma licença poética, mas é fascinante ver que Michalina, diante dos repetidos nãos da burocracia estatal, resolveu recorrer a um bispo da Santa Madre.
Depois de examinar o manuscrito, o bispo explica para ela o óbvio: a Igreja não tem como lutar pela publicação do livro. Mas dá uma dica: ela poderá encontrar o apoio de que precisa no terceiro poder, o que vem depois do Estado e da Igreja – a imprensa.
O filme mostra que havia profissionais corajosos na imprensa da Polônia da ditadura comunista.
Um roteiro escrito a dez mãos
Os créditos iniciais mostram que o roteiro é de autoria de Krzysztof Rak. Vejo que esse senhor tem 15 filmes na sua filmografia como produtor e seis títulos como roteirista. Aparece como “produtor criativo” de Rojst, uma excelente série de 2018, que parte de um duplo assassinato, de um figurão ligado ao Partido e uma prostituta, para mostrar o horror da vida sob uma ditadura. O fato de Krzysztof Rak ter sido um dos realizadores da série Rojst e de ter feito o roteiro deste A Arte de Amar demonstra que o cara tem talento.
Não trabalhou sozinho, no entanto. Segundo o IMDb, quatro pessoas não creditadas colaboraram no roteiro – Krzysztof Bernas, Blazej Dzikowski, Dominika Hilszczanska e Violetta Ozminkowski,
O roteiro optou por fugir da ordem cronológica como o diabo foge da cruz. A narrativa vai e volta no tempo – e volta para períodos diferentes de tempo. Para facilitar a vida do espectador, letreiros indicam, no início das sequências, o quando e o onde. Começa em Varsóvia, em 1972, quando Michalina estava concluindo seu livro e começando o que viria a ser sua longa, longa, longa luta para publicá-lo. Depois volta para várias épocas do passado – e avança para o futuro. Pelo que gravei, os fatos mais distantes no passado são os de 1939, o primeiro ano da Segunda Guerra Mundial, que começou exatamente com a invasão da Polônia pelas tropas nazistas, em 1º de setembro. E avança-se até 1978, creio.
Um período longo, portanto, de 39 anos. Em 1939, Michalina estava com 18 anos; em 1978, com 57. Muitos filmes optam por ter duas atrizes para representar uma personagem que ao longo da trama envelhece tanto. São bem mais raros os que que preferem envelhecer os atores – e aí me lembro de Assim Caminha a Humanidade/Giant (1956), de George Stevens, em que vemos Rock Hudson. Elizabeth Taylor e James Dean ao longo de um período de um quarto de século, como diz, num belo diálogo, ao final do filme, a personagem representada por Liz, aquela inesquecível Leslie Benedict, e de Pequeno Grande Homem/Little Big Man (1960), de Arthur Penn, em que Dustin Hoffman é mostrado primeiro como um jovem e depois como um velhinho de 100 anos de idade.
A diretora Maria Sadowska e os produtores optaram por mostrar Michalina Wisłocka sempre na pele da mesma atriz, essa interessantíssima Magdalena Boczarska. Acho que foi uma ótima decisão – até porque há de fato uma fantástica semelhança física entre a personagem real e a atriz que a interpreta.
Magdalena Boczarska nasceu em Cracóvia, a segunda maior cidade da Polônia, em 1978. Estava, portanto, com 39 anos quando o filme foi lançado, em 2017. Começou a carreira em 2001, e de lá para cá trabalhou em 60 filmes e/ou séries de TV. Embora eu sempre goste de ver filmes poloneses, só reconheço um outro da filmografia dela – Partida Fria/The Coldest Game (2019), uma co-produção Polônia-EUA muito interessante, dirigida por Lukasz Kosmicki.
A diretora Maria Sadowska é da mesma geração de Magdalena Boczarska – a geração que estava na adolescência quando o comunismo ruiu feito um castelo de cartas em 1991. Nasceu em 1976, em Varsóvia, de uma família de artistas – a mãe é cantora e o pai, compositor. Este A Arte de Amar aqui foi seu terceiro longa-metragem como diretora.
Relacionamentos arrebatadores – mas tumultuados
Nas idas e vindas através do tempo, A Arte de Amar destaca dois relacionamentos da vida de Michalina Wislocka – muito provavelmente os dois mais importantes, mais profundos, mais fundamentais de sua vida.
O primeiro deles foi uma longa história de amor a três, essa coisa que não tem como dar certo, nem que a vaca tussa muito. Michalina e sua maior amiga de juventude, Wanda (o papel da bela Justyna Wasilewska), dividiram ao longo de anos o mesmo homem, Stach (Piotr Adamczyk). Ele se casou no papel com Michalina – mas os três viviam juntos, e ambas as mulheres ficaram grávidas dele ao mesmo tempo.
Não tem como dar certo, nem que a vaca tussa muito. François Truffaut mostrou isso em seu Jules et Jim (1962), este A Arte de Amar mostra mais uma vez.
O segundo relacionamento fundamental da vida da mulher que ensinou a milhares de mulheres como ter mais prazer com o sexo foi com um homem casado, que ela ficou conhecendo já madura, naquele balneário do interior que foi citado mais acima.
Pelo que o filme mostra, Michalina Wisłocka não conheceu o amor em paz. Foram dois relacionamentos arrebatadores – e conturbados, nunca mansos, tranquilos. Mas ela foi sempre uma mulher feliz, livre leve solta.
As ditaduras – este belo filme mostra isso também – não gostam de pessoas felizes, livres leves soltas. Mulher, então, nem pensar.
Anotação em março de 2022
A Arte de Amar/Sztuka kochania. Historia Michaliny Wislockiej
De Maria Sadowska, Polônia, 2017
Com Magdalena Boczarska (dra. Michalina Wislocka)
e Piotr Adamczyk (Stach, o marido de Michalina), Justyna Wasilewska (Wanda, a grande amiga de Michalina), Eryk Lubos (Jurek, o amante de Michalina), Jasmina Polak (Tereska, a jovem editora), Borys Szyc (Krystian, chefe da empresa editora), Katarzyna Kwiatkowska (editora-chefe da revista feminina), Tomasz Kot (Zbigniew Religa, jornalista), Kamila Kaminska (a mulher do aborto), Karolina Gruszka (Karolina, paciente), Danuta Stenka (a mulher do general), Arkadiusz Jakubik (Eugeniusz, membro do comitê central), Wojciech Mecwaldowski (membro do comitê central que não fala), Artur Barcis (censor), Iwona Bielska (a mãe de Stach), Dorota Kolak (a mãe de Michalina), Jerzy Gudejko (sexólogo), Ewa Konstancja Bulhak (mulher da milícia), Martin Rath (oficial alemão), Aleksandra Justa (recepcionista), Slawomir Holland (padre), Anita Jancia (Elzbieta, a mulher de Jurek)
Roteiro Krzysztof Rak
(Com a colaboração, não creditada, de Krzysztof Bernas, Blazej Dzikowski, Dominika Hilszczanska, Violetta Ozminkowski)
Fotografia Michal Sobocinski
Música Radzimir Debski
Montagem Jaroslaw Kaminski
Casting Marta Kownacka
Direção de arte Wojciech Zogala
Figurinos Ewa Gronowska
Produção Krzysztof Terej, Agora S.A., Orange S.A., TVN S.A., Watchout Studio, Plast Service Pack, Polski Instytut Sztuki Filmowej.
Cor, 121 min (2h01); na Netflix, 1h55;
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