Talvez a característica mais absolutamente impressionante de Bombshell, no Brasil O Escândalo, co-produção Estados Unidos-Canadá de 2019, seja a sua atualidade. O filme retrata fatos reais acontecidos em 2016! Outro dia mesmo!
E que fatos reais!
Bombshell reconstitui fatos recentíssimos, que foram notícia importante, de imenso impacto, nos Estados Unidos e portanto em boa parte do mundo. Os acontecimentos envolvem personalidades conhecidíssimas da política e da mídia – Donald Trump, Rudolph Giuliani, Rupert Murdoch.
Os personagens centrais não são tão conhecidos assim fora dos Estados Unidos, mas, lá, são tão famosos quanto grandes astros do cinema: são nomes que aparecem diariamente em uma das grandes redes de TV, a Fox News, a principal concorrente da CNN como rede de notícias 24 horas por dia.
A personagem que mais tempo aparece na tela, ao longo dos 109 rápidos mas extremamente intensos minutos que dura o filme, chama-se Megyn Kelly, e vem na pele de uma Charlize Theron que muitas vezes parece menos com Charlize Theron do que com a personagem que ela representa, uma veterana âncora da Fox News que ousou, num dos primeiros debates entre os então pré-candidatos ao posto de candidato do Partido Republicano à presidência da República, em 2016, confrontar Donald Trump com um pergunta dura, firme, direta, sobre suas declarações machistas, misóginas, absurdas, nojentas.
Outra âncora experiente da Fox News, outra dos personagens centrais do filme, se chama Gretchen Carlson, e é interpretada por Nicole Kidman.
O terceiro dos grandes nomes da Fox News é Roger Ailes, uma personalidade importantíssima tanto do jornalismo quanto da política americana. O sujeito é apresentado no filme como tendo criado o tipo de debate político que vigora na TV americana desde o confronto John Fitzgerald Kennedy x Richard Milhous Nixon, em 1960. Como tendo sido consultor de Ronald Reagan, Bush pai, Bush filho – todos os candidatos a presidente pelo Partido Republicano nas últimas seis décadas.
E que, além disso, foi – pura e simplesmente – o sujeito que criou a Fox News, hoje uma das maiores jóias do império do magnata australiano Rupert Murdoch, o canal de notícias que representa o pensamento conservador dos Estados Unidos, o canal que é o porta-voz não oficial do Partido Republicano.
O canal de notícias a que Donald Trump assiste – o único que ele respeita. Bem, respeita mais ou menos.
Vou fazer uma tentativa de traduzir para os termos de Brasil.
Seria mais ou menos assim: Megyn Kelly e Gretchen Carlson, os papéis das belíssimas bombshells Charlize Theron e Nicole Kidman, respectivamente, estão para a TV dos Estados Unidos mais ou menos assim como Fátima Bernardes e Ana Maria Braga (ou talvez Maria Beltrão, Renata LoPrete, ou Marília Gabriela).
E Roger Ailes seria assim uma mistura de (gente, é só uma coisa aproximativa, tá?) Duda Mendonça com Walter Clark com Boni.
Ele é interpretado pelo ótimo John Lithgow, que conheci, décadas atrás, como o jovem diretor de teatro, ambicioso, metido, Lucas Sargeant, que acaba ocupando o lugar do protagonista Joe Gideon-Roy Scheider, o alter-ego do diretor Bob Fosse, em All That Jazz. Em 2019, aos 74 anos, John Lithgow sujeitou-se a um duro tratamento pela equipe de maquiagem para ficar parecido com Roger Ailes – da mesma maneira com que, em 2016, havia se transformado em um perfeito Winston Churchill na primeira temporada de The Crown.
Três mulheres lindérrimas e um chefão
A escolha da palavra bombshell para o título do filme me impressionou. É uma sacada absolutamente brilhante.
A primeira acepção de ”bombshell” no dicionário de que gosto especialmente, o Dictionary of English Language and Culture da Longman, se traduz como “uma grande e em geral desagradável surpresa” – e vem com um exemplo para deixar ainda mais claro: “a notícia do divórcio deles veio como uma bombshell para nós”. A segunda acepção vem acompanhada por “old fash”, forma curta de old fashioned, antigo, antiquado: “uma mulher extremamente atraente (especialmente na frase a blonde bombshell”, uma bombshell loura).
Granada explosiva, na tradução mais literal e óbvia; surpresa estarrecedora, no sentido figurado.
Gostosérrima, na acepção mais antiga, mas de que todo mundo de língua inglesa se lembra, imagino…
Não é à toa que os realizadores do filme escolheram duas atrizes lindas e louras para os papéis centrais das âncoras da Fox News Megyn Kelly e Gretchen Carlson.
As personagens que elas interpretam, pessoas da vida real, são lindas e louras – e o fato de serem lindas e louras foi fundamental para que elas se dessem bem na Fox News.
O Escândalo/Bombshell tem um imenso número de personagens. O diretor Jay Roach ajuda o espectador colocando letreiros com o nome e o cargo de cada novo personagem que surge na tela. É uma ajuda muitíssimo bem-vinda.
São dezenas e dezenas de personagens – mas, ao lado de Megyn Kelly, Gretchen Carlson e Roger Ailes, a personagem mais importante do filme se chama Kayla Pospisil, e é interpretada por uma outra bombshell, Margot Robbie, essa moça nascida em 1990, o ano em que minha filha então adolescente passou algumas semanas estudando inglês em Cambridge.
Os cartazes do filme mostram as três bombshells, as três louras lindas, de tirar o fôlego, de fechar o comércio – Charlize, Nicole, Margot, nos papéis de Megyn Kelly, Gretchen Carlson e Kayla Pospisil.
Quando o filme está ali pela metade, há uma sequência fantástica, impressionante, em que as três estão juntas no elevador do prédio de Manhattan em que funcionam a Fox News e outros órgãos do conglomerado de mídia do magnata Rupert Murdoch.
É uma sequência bela, impressionante. Daquelas boladas para que a imagem seja usada no trailer do filme, nas fotos emblemáticas – mas que ao mesmo tempo têm grande força dramática.
Megyn Kelly e Gretchen Carlson se conhecem, é claro – são, ambas, veteranas âncoras da Fox News. Mas nunca foram amigas, nunca foram próximas. Bem ao contrário: não deve haver mundo mais tremendamente competitivo que o das grandes redes de TV.
E então Megyn e Gretchen não se cumprimentam – se ignoram.
A garotinha Kayla sabe perfeitamente quem são as duas; ela é uma iniciante, uma aprendiz, uma foca, e as outras são mestras, veteranas.
Estão indo todas no elevador até o segundo andar – o andar em que fica a sala de Roger Ailes, o manda-chuva, o diretor-geral, o inventor da Fox News.
Gretchen vê que a garotinha Kayla vai em direção à sala da secretária de Roger – e entende perfeitamente o que está acontecendo.
O filme vai adiando a hora de dizer a que veio
O roteiro de O Escândalo/Bombshell é assinado por Charles Randolph, e não se informa – isso é importante – que ele se baseia em algum livro.
O filme demonstra preocupação em explicar direitinho do que se trata, afinal. Logo de cara, ele nos mostra um letreiro que diz o seguinte:
“Este filme é uma dramatização inspirada em eventos reais. Alguns dos nomes foram mudados e algumas cenas, diálogos e personagens foram criados com finalidade dramática. Todos os personagens retratados neste filme são representados por atores, exceto quando foram usados filmes de arquivo.”
“Archival footage.” Essa é uma daquelas danadas de expressões do Inglês que não têm uma tradução direta e reta em Português. Significa cenas reais, sequências feitas para a TV, cinejornal ou documentários.
O filme mostra cenas em que aparece Donald Trump – cenas gravadas pela TV, em que o próprio idiota-em-chefe aparece, e não um ator fazendo o papel dele. Ele mesmo, em cenas reais.
Já Rudolph Giuliani, o ex-prefeito de Nova York, amigo e advogado de Trump, é interpretado por um ator, Richard Kind. Rupert Murdoch é interpretado – nas sequências finais do filme – por Malcolm McDowell, o fantástico ator inglês nascido em 1943, que tem mais de 270 títulos em sua filmografia, e em 1971 fez o líder da gangue ultraviolenta em A Laranja Mecânica de Stanley Kubrick.
Extremamente bem feito, o roteiro de Charles Randolph adia o quanto pode o momento em que o filme revela a que, afinal de contas, ele vem.
Vai adiando, adiando.
Vamos vendo aquelas histórias interessantes que misturam política e jornalismo, jornalismo e política.
Megyn Kelly peita o candidato a candidato Donald Trump. Num dos primeiros debates entre os pré-candidatos republicanos, ela exibe em rede nacional algumas das expressões machistas, chauvinistas, nojentas usadas por ele sobre as mulheres.
Roger dá bronca nela, chama-a de feminista – mas ela diz que não é feminista, é advogada de formação.
Trump passa a tuitar nervosamente, seguidamente, contra a âncora que o contestou, justamente na Fox, a emissora conservadora, de direita, republicana.
Era, repito, 2016, quatro anos atrás, apenas – três anos antes de o filme ser feito. (Este texto foi escrito em 2020.)
Só quando o filme está ali pelo meio dos seus 109 minutos é que Gretchen Carlson visita uma dupla de advogados para estudar com eles como ela poderia fazer para ir à Justiça contra Roger Ailes por assédio sexual.
(Gretchen Carlson, claro, é a da direita. A da esquerda é ela na pele de Nicole Kidman.)
Achava-se que ninguém iria depor contra o chefão
O absolutamente fantástico na história real mostrada no filme é que, quando Gretchen Carlson entrou na Justiça contra Roger Ailes, tudo indicava que ela perderia.
Ninguém mais, na Fox News, ousaria testemunhar contra o chefão.
Até porque, se pretendesse testemunhar, perderia o emprego – e uma pessoa demitida pela Fox News, aquela emissora de direita, republicana até a medula, dificilmente encontraria emprego em alguma outra empresa da mídia americana.
Imagine o eventual leitor algo um tanto assim: uma jornalista que havia sido âncora de um programa do SBT denuncia Silvio Santos como um predador sexual.
Quem teria a coragem de apoiar aquela maluca?
Gretchen Carlson entrou na Justiça contra Roger Ailes em 2016. Foi – o filme realça isso muito bem – um choque, um terremoto, um tsunami. Muito mais que um escândalo, a palavra escolhida para o título brasileiro, e também para o português.
Toda a imprensa americana noticiou fartamente o tema.
E é fundamental realçar que a denúncia contra Roger Ailes veio antes das que foram feitas em 2017 contra Harvey Weinstein, e em seguida contra Kevin Spacey, e mais um monte de gente, naquela coisa que ficou conhecida como MeToo.
Nessa onda de MeToo houve tantas denúncias de assédio, mas tantas, mas tantas, mas tantas, que cheguei a ficar enjoado do tema. Confesso – sem sentir vergonha – que fiquei imaginando se muitas daquelas denúncias não seriam infundadas, ou no mínimo exageradas…
O Escândalo/Bombshell mostra com tanta força, tanta clareza, o absurdo que era o comportamento do todo-poderoso Roger Ailes com as belas mulheres da Fox News que o espectador sente revolta, nojo, ódio daquilo.
Depois do filme, fiquei arrependido por ter torcido o nariz para as denúncias da época em que explodiram as acusações do MeToo.
Um registro necessário: a trajetória profissional de Roger Ailes, a fundação da Fox News, em 1995, são contadas também em uma série, A Voz Mais Forte – O Escãndalo de Roger Ailes, no original The Loudest Voice, de 2019, sete episódios de cerca de 50 minutos cada. Roger Ailes é interpretado por Russell Crowe, que ganhou o Globo de Ouro de melhor ator em minissérie ou filme para TV.
(Charlize Theron à esquerda, Megyn Kelly à direita.)
Um diretor que saiu de comédias bobas para belos dramas
O modo com que Roger Ailes parte para o assédio é mostrado no filme com Kayla Pospisil, a garotinha jovem, cheia de vontade de crescer na profissão – o papel, como já foi dito, da lindíssima Margot Robbie.
Kayla Pospisil é a única personagem do filme que não existiu na vida real. É o que se chama de compósito – uma personagem fictícia criada a partir de elementos de duas ou mais pessoas reais. Algo perfeitamente aceitável, admissível, correto, numa, como diz o filme, “dramatização inspirada em eventos reais”. “Alguns dos nomes foram mudados e algumas cenas, diálogos e personagens foram criados com finalidade dramática”, os realizadores avisam.
Para filmar a sequência terrível, dolorosa, em que Roger Ailes pede para que a jovem Kayla levante a saia, para que ele possa ver suas coxas (“A TV é uma mídia visual”, diz ele, como justificativa), o diretor Jay Roach dispôs várias câmaras em diferentes locais, para capturar a ação da atriz ao mesmo tempo – e evitar, desta maneira, que Margot Robbie tivesse que refazer a cena.
A informação está no IMDb – que conta também que Margot Robbie não tinha idéia de que palavras também caracterizam assédio sexual. “Um dos trechos que me deixaram chocada, quando li o roteiro pela primeira vez”, disse a atriz em entrevista, “foi que assédio sexual inclui qualquer tipo de avanço não permitido. Sempre pensei que seria necessário haver contato físico para ser considerado ilegal ou errado. Aquilo realmente me chocou.”
A jovem Margot Robbie (na foto acima), as experientes Charlize Theron e Nicole Kidman. Três mulheres lindas – e boas atrizes.
Charlize foi indicada tanto ao Oscar quanto ao Globo de Ouro na categoria de melhor atriz, e Margot teve indicações ao Oscar e ao Globo de Ouro na categoria de atriz coadjuvante.
Interessante é pensar que foram escolhidas para representar aquelas personagens americanérricas duas australianas – Nicole e Margot – e uma sul-africana – Charlize.
Interessantíssimo também é o percurso do diretor Jay Roach, nascido no Novo México em 1957. Começou fazendo comédias – fez três daquelas bobagens com Mike Myers interpretando o agente secreto Austin Powers, Austin Powers: 000, um Agente Nada Discreto (1997), Austin Powers: O Agente ‘Bond’ Cama (1999) e Austin Powers em O Homem do Membro de Ouro (2002). Cometeu também aquelas duas comédias com um Robert De Niro careteiro demais interpretando um pai da noiva zangado, chato de galocha, Entrando numa Fria (200) e Entrando numa Fria Maior Ainda (2004).
A partir de 2008, no entanto, mudou completamente de rumo, de estilo, com Recontagem, uma produção de primeira da HBO sobre os eventos de novembro de 2000, logo após a eleição presidencial em que George W. Bush venceu Al Gore por uma margem apertadíssima, e houve recontagem dos votos na Flórida.
De lá para cá, Jay Roach tem feito filmes sérios, densos, e muito bons, sobre fatos reais. Em 2012, fez Virada no Jogo, sobre a escolha pelo Partido Republicano de Sarah Palin para candidata a vice-presidente em 2008, na eleição vencida pelo democrata Barack Obama. Trumbo – Lista Negra, de 2015, mostrou a vida do grande roteirista Dalton Trumbo nos terríveis anos da caça às bruxas do macarthismo. E Até o Fim, de 2006, reconstitui os primeiros meses de Lyndon B. Johnson na Presidência dos Estados Unidos, após o assassinato de John F. Kennedy, em 1963.
Tem ficado cada vez melhor esse Jay Roach.
Este aqui é um filme que deve ser visto.
Anotação em outubro d 2020
O Escândalo/Bombshell
De Jay Roach, Canadá-EUA, 2019
Charlize Theron (Megyn Kelly),
Nicole Kidman (Gretchen Carlson),
Margot Robbie (Kayla Pospisil),
John Lithgow (Roger Ailes)
e Allison Janney (Susan Estrich, a advogada de Roger), Kate McKinnon (Jess Carr, a democrata amiga de Kayla), Connie Britton (Beth Ailes, a mulher de Roger), Liv Hewson (Lily Balin), Brigette Lundy-Paine (Julia Clarke), Rob Delaney (Gil Norman), Mark Duplass (Doug Brunt), Stephen Root |(Neil Mullin), Robin Weigert (Nancy Smith), Amy Landecker (Dianne Brandi), Mark Moses (Bill Shine), Nazanin Boniadi (Rudi Bakhtiar, uma das assediadas), Ben Lawson (Lachlan Murdoch, filho de Rupert), Josh Lawson (James Murdoch, filho de Rupert), Richard Kind (Rudolph Giuliani)
e, em participação especial, Malcolm McDowell (Rupert Murdoch)
Roteiro Charles Randolph
Fotografia Barry Ackroyd e Chris W. Johnson
Música Theodore Shapiro
Montagem Jon Poll
Casting Allison Jones
Produção Creative Wealth Media Finance, Annapurna Pictures, BRON Studios, Denver and Delilah Productions.
Cor, 109 min (1h49)
Disponível na Amazon Prime Video em outubro de 2020
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