Morte às Seis da Tarde / Plagi Breslau

Nota: ★★☆☆

Morte às Seis da Tarde, uma produção polonesa de 2018, é um fantástico, gigantesco, absurdo amontoado de exageros.

É um thriller, um filme sobre assassinatos em série – e é propositadamente agressivo, em todos os sentidos. Propositada e exageradamente agressivo. É um exagero de violência explícita, com muitas tomadas chocantes, horrorosas, de pedaços de corpo humano, caixa craniana sendo cortada, corpo sendo brutalmente despedaçado, esse tipo de coisa.

As duas personagens centrais, duas mulheres, são desagradáveis, exageradamente antipáticas, agressivas, brutais, um horror. Foi para mim (e seguramente será para muitos espectadores) um choque ver fotos das duas atrizes que as interpretam, Malgorzata Kozuchowska e Daria Widawska, sem estarem caracterizadas para interpretar suas personagens no filme: são, as duas, mulheres bonitas. No filme, parecem feias, muito feias: houve todo um trabalho das equipes de maquiagem e cabeleireiros para enfear as atrizes – algo quase comparável ao que foi feito, só para dar um exemplo, com Charlize Theron em Monster: Desejo Assassino (2003).

O criminoso, a pessoa que mata cinco seres humanos com os maiores requintes de brutalidade que se pode imaginar, sempre e exatamente às 6 horas da tarde, como indica o título brasileiro, é daquele tipo que só existe na ficção – perfeito, que sabe de tudo, que antevê tudo, que pode tudo. Um absoluto gênio, um ser sobre-humano, um semideus.

É o exagero do exagero do exagero.

(Nesse ponto, o filme faz lembrar muito a primeira temporada da série A Ponte/Bron/Broen, 2011-2019, caprichadíssima co-produção Suécia-Dinamarca.)

Pior ainda do que tudo o que foi dito acima: é daqueles filmes que defendem um ponto de vista abjeto, tosco, moralmente condenável, aquela coisa das cavernas, o oposto da civilização – a justiça pelas próprias mãos, a Lei do Talião, o olho-por-olho, dente-por-dente.

É tudo por tudo um horror.

Pois é. Só que – diacho! – é extremamente, estupidamente, exageradamente bem feito. É cinema criado com um imenso talento.

O trabalho de câmara deste filme que defende a Lei das Selvas é de uma competência de fazer a gente babar.

Um tempinho depois que o filme terminou, e eu tentava deglutir aquela carga imensa de violência explícita e moral torta, errada, me peguei pensando que a virtuosidade daquela câmara fazia lembrar o melhor do melhor do jovem Claude Lelouch.

Diacho!

Um início estranho, desconcertante

Os exibidores brasileiros (o filme está, ou pelo menos esteve, disponível na Netflix) inventaram um título interessante, Morte às Seis da Tarde. Mas é como a jabuticaba, essa coisa que só existe no Brasil. No resto do mundo, os exibidores seguiram o título original, Plagi Breslau: nos Estados Unidos e no Reino Unido, é The Plagues of Breslau. Na França, Le Fléau de Breslau. Na Espanha, Las Plagas de Breslavia. Em Portugal fugiram um pouco do original – mas pouco: A Maldição de Breslávia.

Breslau – aprendi depois de ver o filme – é a palavra das línguas alemã e inglesa para Wroclaw, cidade do Oeste da Polônia, da região da Baixa Silésia, em que se passa a história – Breslávia em português.

O filme começa com uma sequência estranha, desconcertante.

Uma mulher está no assento do motorista de um carro, estacionado numa rua. Três rapazes vêm caminhando pela rua, vêem a mulher, fazem uma brincadeira besta, machista com ela: – “Ei, querida! Está a fim de uma farra?”

Quando chegam mais perto dela, um dos garotos, mais atrevido, abre a porta esquerda do carro, e diz: – “Fiz uma pergunta”.

A câmara parece estar colocada no assento do carona, à direita da mulher. Ela olha fixamente para a frente – não altera absolutamente um músculo sequer do corpo, permanece rígida, imóvel. O rapaz atrevido, abusado, olha para baixo, a câmara faz um movimento um pouco para baixo – e o espectador vê, ao mesmo tempo que o rapaz, que ela segura um revólver nas mãos.

O garotão babaca se retrai, fecha novamente a porta do carro, diz alguma coisa que as legendas traduziram por “Foi mal” – e os três se distanciam do carro.

Um homem gordão, absolutamente bêbado, cambaleante, caminha na direção em que o carro está estacionado. Quando está chegando perto do carro, a mulher abre um pouco a porta. O bêbado se encosta por um segundo no carro, e continua a caminhar, agora se afastando do carro.

A câmara continua focalizando a mulher de perfil, do lado direito dela, do lado do assento do carona. A mulher começa a chorar. Chora convulsivamente. E aí corta.

Só bem no finalzinho deste Plagi Breslau, The Plagues of Breslau, Las Plagas de Breslavia o espectador ficará sabendo o que estava acontecendo ali, porque chorou tanto aquela mulher – Helena Rus, inspetora da polícia de Breslávia (o papel de Malgorzata Kozuchowska, nas fotos acima e abaixo). Uma policial tão absolutamente competente quanto antipática, desagradável, enjoada, uma chata de galocha.

    Crimes com requintes de absoluta brutalidade

Na sequência seguinte, a inspetora Helena Rus está indo para o local em que foi encontrado um homem assassinado com terríveis, apavorantes, exagerados requintes de crueldade. O primeiro do que virá a ser uma série de assassinatos assim.

O corpo é encontrado numa região de comércio popular da cidade, cheia de lojas e lanchonetes, dezenas e dezenas e dezena de transeuntes indo de um lado para o outro.

Helena chega ao local em que um objeto estranhíssimo foi encontrado acompanhada por dois colegas, seu parceiro Bronson (Tomasz Oswiecinski), e um mais jovem, Felo (Jacek Beler). Bate o olho naquilo e em um segundo sabe o que é: é couro de vaca – de uma determinada raça de gado. O couro foi costurado com algo pesado dentro. Ela manda os colegas tomarem diversas providências – cercar o local, tirar as pessoas aglomeradas ali, garantir a integridade da cena do crime, enfim – e em seguida abre, ali mesmo, na rua, aquele monte de couro para ver o que há dentro.

Um corpo, é claro.

Na parte inferior da barriga do morto, está escrita, em maiúsculas, a palavra polonesa que significa “degenerado”.

A médica legista da polícia de Breslávia (o papel de Iwona Bielska) explica que as letras da palavra foram gravadas no corpo do homem – da mesma maneira com que se marca gado – quando ele ainda estava vivo. E que o couro da vaca foi fechado e costurado também enquanto a vítima vivia. Deixado sob o sol, o couro encolheu – até matar o sujeito.

O comandante da Polícia recebe um comunicado: as autoridades de Varsóvia estão enviando para Breslávia uma detetive de primeiríssimo time, experiente, extraordinária, para trabalhar junto com Helena e sua equipe.

Iwona Bogacka (o papel de Daria Widawska, na foto abaixo) se apresenta para Helena na estação ferroviária de Breslávia pouco depois de ter sido cometido o segundo crime na cidade, exatamente às 18h – e, como o anterior, um crime cometido de maneira especialmente cruel. Dois cavalos de raça haviam saído correndo a toda do local em que viviam, cada um para um lado, estraçalhando o corpo de um homem ao qual estavam amarrados por cordas. Na barriga do morto estava escrito “ladrão”.

Um dos cavalos havia sido parado pela própria Helena – que, antes de entrar para a polícia, havia estudado para ser veterinária e sabia bem como lidar com animais. Branson, o parceiro de Helena, havia localizado o outro – mas havia sido atacado pelo cavalo, que pisara na cabeça do policial.

Branson é levado em estado desesperador para um hospital.

A recém-chegada Iwona Bogacka pede para ir ao local de onde os cavalos haviam partido. Já vai chegando lá e demonstrando um conhecimento absurdo, inconcebível, sobre todos os assuntos possíveis – inclusive episódios da história da Polônia no século XVIII.

– “O criminoso encheu dois sacos de pólvora e os fechou com cuidado”, ela diz para Helena e os demais policiais, assim que chega ao hipódromo. “Depois os pendurou no teto, a uns 50 centímetros de cada janela. Cada saco com pólvora tinha um dispositivo de detonação simples ligado a ele. Um celular.”

Enquanto Iwona vai falando, vamos vendo em rápidas tomadas o criminoso – cujo rosto, obviamente, não está visível – armando os dispositivos. Exatamente como está sendo descrito. As tomadas são exibidas simultaneamente às que mostram os policiais ali no local.

“ Em frente a cada janela, ele colocou dois cavalos de corrida, com as cabeças voltadas para a rua”, Iwona prossegue. “Duas cordas saíam de seus arreios até o meio da sala. Essas cordas foram usadas para prender as pernas e os braços da vítima. Para terminar, ele ligou para os dois celulares ao mesmo tempo, o que fez os cavalos dispararem.”

Diante do corpo retalhado, uma lição de História

Nessa hora parei o filme e reclamei com a Mary – como se fosse culpa dela – que não tinha qualquer sentido uma detetive, por melhor que fosse, chegar a todas essas conclusões apenas ao dar uma olhadinha no local de onde tinham saído os cavalos – cada um carregando um pedaço de um corpo.

Especificamente nesse detalhe aí errei feio. Mais adiante, há uma perfeita explicação racional para essa fala que transcrevi logo acima.

A forma com que foi composta essa Iwona Bogacka é impressionante. A primeira impressão que o espectador tem dela é de que é uma mulher muito feia, gorda, desengonçada, com alguns trejeitos que tornam sua aparência física ainda pior.

Logo na segunda sequência em que ela aparece vem essa preleção dela sobre como o crime com o uso de cavalos de corrida foi organizado – e a gente começa a achar que, afinal, ela é uma detetive de excepcional competência, de deixar no chinelo todos os Sherlock Holmes e Hercule Poirot da vida.

Na terceira sequência em que Iwona aparece, acontece o seguinte:

Iwona e Helena descem do carro desta última. Estão sendo aguardadas pela repórter de TV e seu cameraman que o espectador já havia conhecido desde o início, no lugar em que é encontrada a primeira vítima. A repórter, bela e jovem, se chama Agnieszka (o papel de Maria Dejmek).

Helena sugere que elas ignorem a repórter. Iwona vai até a dupla e exige que o cameraman entregue o CD. Um segundo depois, dá um brutal golpe que faz o sujeito cair no chão remoendo-se de dor, enquanto, com um gesto rápido, ela retira da câmara o CD em que as imagens estavam sendo gravadas.

Logo em seguida, na quarta sequência em que aparece, Iwona está com Helena e o promotor público que vem acompanhando os casos, um sujeito apresentado como um absoluto babaca (o papel de Andrzej Grabowski), diante da maca em que estão os restos – divididos em duas partes – do homem em cuja barriga foi escrito “ladrão”.

Iwona pergunta a que horas exatamente a vítima foi despedaçada pelos cavalos, e Helena responde “logo depois das 18h”. E quando a primeira vítima foi encontrada? “Logo depois das 18.” O babaca do promotor público pergunta o que isso tem a ver.

Iwona joga na cara do promotor que ele não conhece nada da história de sua cidade. E ensina para o promotor, para Helena, para o espectador:

– “Já ouviu falar da Semana das Pragas? Frederico, o Grande, conquistou a Baixa Silésia em 1741. Ele queria que Breslávia se tornasse uma metrópole européia.”

Enquanto aquela mulher feia, desagradável, cheia de tiques, vai falando, a câmara do diretor Patryk Vega e seu diretor de fotografia

Miroslaw Brozek, colocada bem no alto, fazem um plongée daquelas três pessoas em torno da maca em que está o corpo dilacerado da segunda vítima. Não havia bastado ter mostrado um pedaço do corpo, depois o outro pedaço, depois ter mostrado o momento em que o corpo foi dividido em dois; o diretor Patryk Vega – ele também o autor do roteiro original do filme, juntamente com Sylwia Koperska-Mrozinska – insiste em nos mostrar a imagem pavorosa.

É o exagero do exagero da explicitude de visões pavorosas, horrorosas, nauseantes.

E a feia, antipática e violenta Iwona prossegue na sua lição de História:

– “Mas ele (Frederico, o Grande) sabia que isso só seria possível se a cidade fosse limpa de suas piores pragas. Degeneração, roubo (ela vai marcando o número das pragas com os dedos da mão direita), suborno, calúnia. opressão e mentira. Ele criou a Semana das Pragas. Todos os dias, às 18 horas, o carrasco da Breslávia torturava publicamente e matava uma pessoa considerada culpada de um desses crimes. Os degenerados morriam às segundas, os ladrões às terças-feiras, e assim por diante.”

O promotor público babaca faz umas contas com a ajuda dos dedos e pergunta: – “Então mais cinco pessoas vão morrer esta semana?”

Close-up no rosto feio, desagradável, de Iwona: – “Quatro. Domingo é feriado.”

Estamos, neste momento, chegando aos 30 dos 93 minutos do filme.

(As fotos abaixo demonstram: houve um esforço brutal para deixar as atrizes feias no filme.)

Muito talento para defender o Lado Negro da Força

Personagens compostos para serem profundamente antipáticos. Violência extrema, imagens exageradamente pavorosas, nauseantes. Tudo, absolutamente tudo exagerado, o exagero do exagero. Nada parecido com a vida – um filme que obviamente foi feito para ser reconhecido pelos exageros. Um filme que quer concorrer ao primeiro lugar na categoria dos mais exagerados, dos over do over do over dos thrillers.

Sem falar que, ao final, iria se revelar moralmente monstruoso, ao fazer a defesa da Lei do Talião, a defesa da volta às cavernas, o abandono de qualquer tentativa de se procurar uma sociedade civilizada.

Claro que não dava para saber, até o filme chegar aos seus 10, 5 minutos finais, que ele iria defender a justiça pelas próprias mãos, o olho-por-olho dente-por-dente. Mas o fato é que, bem no começo, ali com uns 15 minutos, cheguei a pensar em parar de ver.

Mas o diabo é que é tudo – perdão por repetir – estupidamente bem feito.

O trabalho de câmara – insisto – é nada menos que brilhante, excepcional, genial.

As tomadas de um dos cavalos correndo loucamente no meio do trânsito em uma ponte sobre o rio que corta a cidade de Breslávia são enlouquecedoramente brilhantes.

(Aqui, é preciso registrar que o rio se chama Oder, e é lindíssimo, assim como toda a cidade de Bresláva – que o filme mostra diversas vezes em tomadas aéreas deslumbrantes.)

Ao longo de todo o filme, os movimentos de câmara são de cinéfilo aplaudir de pé como na ópera. Na sequência do clímax, bem quando o filme se aproxima do fim, de uma corrida de motos num estádio olímpico, eu tive de fato vontade de parar o filme, ficar de pé e aplaudir como na ópera.

O IMDb informa que essa sequência foi em parte filmada durante uma corrida de motos real, com 12 mil pessoas no estádio. As cenas da corrida propriamente dita, e da multidão, foram feitas num evento real – e seguramente a elas foram acrescentadas tomadas com os personagens da história. O resultado é muito, mas muito impressionante.

É muito talento. Muito talento. E que pena, que horror – usado para defender o Lado Negro da Força. Não o avanço, a busca do aprimoramento das instituições, da civilização – mas a volta às trevas, às cavernas, à pedra lascada.

Em qualquer lugar do mundo, ver este filme deve deixar o espectador um tanto deprimido. No Brasil em que Jair Bolsonaro representa exatamente a busca das trevas, das cavernas, da pedra lascada, é ainda mais doloroso.

Anotação em maio de 2020

Morte às Seis da Tarde/Plagi Breslau

De Patryk Vega, Polônia, 2018.

Com Malgorzata Kozuchowska (Helena Rus), Daria Widawska (Iwona Bogacka, ou Magda Drewniak)

e Katarzyna Bujakiewicz (Nastka), Andrzej Grabowski (o promotor público), Maria Dejmek (Agnieszka Lenarcik), Ewa Kasprzyk (Alicja Drewniak, a mãe de Magda), Jacek Beler (Felo, policial), Wojciech Kalinowski (comandante Lewandowski), Iwona Bielska (a médica legista), Igor Kujawski (Michalik), Sebastian Stankiewicz (operador), Tomasz Oswiecinski (Jacek ‘Bronson’, o parceiro de Helena), Hubert Maj (primeiro-ministro Edward Jagielski)

Roteiro Patryk Vega e Sylwia Koperska-Mrozinska

Fotografia Miroslaw Brozek

Música Lukasz Targosz

Montagem Tomasz Widarski

Casting Maksymilian Michasiów

Produção Showmax, Vega Investments. Distribuição Netflix.

Cor, 93 min (1h33)

Disponível na Netflix em maio de 2020.

**

Título nos EUA: The Plagues of Breslau. Na França: Le Fléau de Breslau. Na Espanha: Las Plagas de Breslavia. Em Portugal: A Maldição de Breslávia.

Um comentário para “Morte às Seis da Tarde / Plagi Breslau”

  1. Tem razão na sua crítica, o filme realmente é pavoroso.
    Mas está muitíssimo bem feito o que serve como desculpa.
    O trabalho de maquilhagem feito nas actrizes principais é notável.
    E o argumento está muito bem congeminado.
    Não dá vontade de voltara a ver.

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