Nenhum superlativo é demais para Laëtitia, a série francesa de autoria de Jean-Xavier de Lestrade exibida em janeiro de 2020 no Sundance Film Festival e, a partir daí, pela HBO Max.
É um trabalho extraordinário, excepcional, fora de jeito, fora de qualquer padrão, mesmo os mais exigentes. Uma obra-prima.
É insuportavelmente, chocantemente, apavorantemente triste.
Eu nunca tinha visto nada igual – e, diacho, eu vejo filmes há uns 60 anos, e vi muitos, muitos.
A série reconstitui, em seis episódios de cerca de 50 minutos, os fatos reais em torno do desaparecimento de uma jovem de 18 anos, Laëtitia Perrais, na região de Loire Atlantique, Oeste da França, na noite de 18 para 19 de janeiro de 2011. Mas vai muito, muito, muito, muito além dos eventos ligados diretamente ao desaparecimento da garota, ao trabalho policial, à localização do corpo e à procura pelo assassino.
A série reconstitui – e, por todas as informações, da forma mais acurada, mais exata possível – muitos dos fatos mais importantes de toda a vida da garota e de sua irmã gêmea Jessica. Faz um retrato da família, do meio em que as duas meninas nasceram e cresceram. Depois faz um retrato do assassino – focalizando sua família, sua adolescência.
É cinema da maior qualidade, narrativa envolvente, apaixonante – mas é também um grande painel, um estudo sociológico.
É impressionante demais da conta.
(Na foto, as atrizes Sophie Breyer, que faz Jessica, e Marie Colomb, que fz Laëtitia.)
A moto caída no chão, perto do portão de casa
O roteiro de Laëtitia é assinado por Antoine Lacomblez e pelo próprio diretor Jean-Xavier de Lestrade. Nos créditos, é dito, como os franceses gostam de fazer, que eles são os autores de “roteiro, adaptação e diálogos”. Acrescenta-se que a base é o livro “Laëtitia ou la Fin des Hommes”, de Ivan Jablonka.
de Lestrade, sujeito formado em Jornalismo e Direito – fiquei sabendo depois que vi esta série admirável – é um especialista nesse tipo de obra, que tem um quê de grande reportagem com uma visão ampla do quadro social. Falo dele mais adiante.
Aqui, queria começar dizendo que o roteiro da série tem aquele cuidado de destacar para o leitor o quando e onde, no início de cada nova sequência, de cada situação inédita. E de Lestrade optou por literalmente destacar essas informações: elas aparecem em letras garrafais, que ocupam a maior parte da tela. O local e a data, o local e a data – e mais alguma informação que ajude o leitor a se situar na história da vida de Laëtitia e Jessica, tipo “as gêmeas com 3 anos”, “as gêmeas com 12 anos”.
A série abre com uma espécie de intróito, logo após o anúncio, como se fosse necessário, ou para não deixar dúvida alguma, de que “Esta história é uma ficção tirada de fatos reais”. Vemos uma garota em uma pequena moto, uma scooter, à noite, por uma estrada em região de casas um pouco afastadas de um vilarejo. Claro, é Laëtitia – o papel de Marie Colomb. É tarde da noite; ela desce da scooter, vai empurrando a máquina em direção à casa para fazer o mínimo de barulho possível. Vai para a cozinha, pega água na geladeira – e um adulto que chega sorrateiro acende a luz. Vemos o rosto surpreso, quase apavorado da adolescente flagrada em algo proibido, e ouvimos a voz de um homem maduro com aquelas cobranças: – “Sabe que horas são? Onde você estava?”
Corta, e Laëtitia entra em seu quarto chorando muito, bastante alterada. Tira o casaco, pega um caderno com jeito de diário e escreve: “Olhe em torno de você e veja que não sou a única que mente”.
Passaram-se apenas três dos 50 minutos do primeiro episódio, e começam os créditos iniciais, bem rápidos e muitíssimo bem elaborados, preciosos. Após os créditos, surge o grande letreiro: “Três meses mais tarde”, e logo em seguida o primeiro dos muitos e muitos letreiros que nos informarão o onde e o quando. “Quarta-feira 19 de janeiro de 2011 7h15”. Assim, sem pontuação, sem vírgulas.
Está bem escuro ainda, às 7h15 de um dia de janeiro, pleno inverno. Jessica (o papel de Sophie Breyer) caminha pelo grande gramado que separa a casa do portão. Ao chegar à estrada, vê algo que o espectador ainda não viu, e começa a chamar pela irmã: “Laëtitia! Laëtitia!”
A scooter de Laëtitia estava caída junto da estrada, a bem poucos metros do portão de sua casa.
Jessica tinha sua mochila às costas, estava saindo para a escola – veremos que ela fazia um curso técnico relacionado a gastronomia. Ela volta para dentro de casa, e, na cozinha, pede a ajuda do homem de meia idade que está preparando café. Depois de ouvir o relato da garota sobre a scooter caída lá fora, ele tenta tranquilizar Jessica: – “Nós vamos achar sua irmã!”
Por aparentar já ter passado dos 60 anos, o homem parece mais o avô das duas gêmeas de 18 anos do que o pai. Veremos logo em seguida que ele é Gilles Patron (Sam Karmann), o pai adotivo de Laëtitia e Jessica. Gilles e sua mulher Michelle (Clotilde Mollet) haviam adotado as garotas quando elas estavam com 13 anos de idade.
Fatos reais: os Patron assumiram a guarda das gêmeas em 2005. Laëtitia desapareceu em janeiro de 2011 – e as garotas estavam, então, com 18 anos, 19 incompletos. Haviam passado seis anos com os Patron até Laëtitia desaparecer. (Na foto abaixo, Laëtitia.)
Reportagem + pesquisa sociológica + cinema
Antoine Lacomblez e Jean-Xavier de Lestrade escreveram um roteiro cheio de flashbacks. A base da narrativa é a partir daquela manhã de 19 de janeiro de 2011 em que, ao sair de manhãzinha para tocar a vida, Jessica viu a scooter de Laëtitia caída no chão – e a partir daí começaria uma grande busca pela garota desaparecida. A base da narrativa, o “hoje”, a época da ação é a partir do desaparecimento de Laëtitia – mas a todo momento há uma volta ao passado, a épocas diferentes do passado.
Cada volta no tempo, cada flashback tem seu motivo específico, está relacionado com algo falado ou mostrado nas sequências passadas no “hoje”, ou seja, 2011. É tudo muito bem feito, é tudo muito bem amarrado – e os letreiros que identificam claramente as datas e os locais ajudam demais o espectador, não permitem que ele se perca em momento algum.
Tudo bem, tudo bem, mas nada disso é novidade – poderia argumentar o eventual leitor que ainda não viu a série. Tudo isso já foi usado em um porrilhão de filmes e/ou séries. Abre no momento em que há o fato fundamental – no caso, o desaparecimento da garota que dá nome à série. Bota lá os flashbacks, e coisa e tal, e vai indo em frente, e faz o suspense pra saber quem foi que sequestrou a protagonista, o que aconteceu com ela, e por aí vai…
Verdade, verdade. Muitos outros filmes e/ou séries já usaram uma estrutura narrativa semelhante.
Mas poucos, pouquíssimos foram tão fundo, e tão a sério, quanto esta Laëtitia aqui.
Laëtitia é o ponto de encontro da mais séria pesquisa sociológica a respeito de um caso real com a mais série reportagem investigativa com o melhor da narrativa cinematográfica.
Diacho. Acho que a frase aí acima é boa – mas não sei ela consegue passar para o eventual leitor a carga, o peso que eu pretendi botar nela.
Neste momento em que escrevo, neste exato momento agora, me lembrei de A Sangue Frio, de Truman Capote.
Veado, veadérrimo, chique, acostumado aos mais finos lugares de Manhattan, o centro do capitalismo mundial, Truman Capote numa bela manhã leu uma notícia no New York Times sobre o caso de dois homens que invadiram uma fazenda no Kansas e assassinaram brutalmente uma família inteira. E aí o escritor dândi foi com a grande amiga Harper Lee pro interiorzão do Kansas para ouvir tudo, mas tudo, absolutamente tudo sobre o caso. Conta-se que Capote fez treinamento sério, duro, de memorização, de conseguir memorizar palavra por palavra de um depoimento, para depois transcrevê-lo o mais ipsis litteris possível – para poder conversar com os dois assassinos na prisão, sem que eles ficassem intimidados com a visão de um gravador.
A Sangue Frio, o livro publicado em 1966, talvez seja a reportagem mais brilhante que já foi escrita, em todos os tempos, em qualquer lugar.
Laëtitia talvez seja o filme e/ou série mais brilhante a respeito de uma história real que jamais foi realizado, em todos os tempos, em qualquer lugar.
Eu adverti lá no alto: este aqui será um texto com superlativos. (Na foto abaixo, Jessica.)
Pai violento, que batia na mãe e a estuprava
A série acompanha passo a passo o trabalho da polícia, como se faz nos filmes e/ou séries policiais – e o que se mostra é que a polícia da região do departamento de Loire Atlantique fez um trabalho excelente, desde o primeiro momento. Assim que Gilles Patron, o pai adotivo, comunicou o desaparecimento de Laëtitia e mostrou a scooter da garota derrubada no chão, com sinais de que havia levado uma batida, a polícia tratou a queixa com a maior seriedade, e iniciou uma busca cuidadosa por toda a região. Dezenas e dezenas de policiais, com o auxílio de cães farejadores e até de helicópteros, se dedicaram às buscas.
Um dos personagens que mais se destaca ao longo dos seis episódios é o policial graduado que chefia as investigações, Frantz Touchais (o papel de Yannick Choirat, na foto abaixo).
Mas o fundamental é que a série nunca se concentra apenas no trabalho da polícia. Não. A investigação policial é importante, sim, e é bem mostrada, repito – mas, paralelamente a ela, a série vai fundo nas circunstâncias da vida das duas gêmeas, desde sempre, desde que eram criancinhas.
Há flashbacks para as diversas etapas da vida delas – e o trabalho que os realizadores executaram para mostrá-las é monumental. Três duplas de crianças interpretam as gêmeas = aos 4 anos de idade, aos 6 anos e aos 13. Fora, é claro, as duas jovens que fazem Laëtitia e Jessica aos 19 anos, Marie Colomb e Sophie Breyer, respectivamente, como já foi dito.
Laëtitia e Jessica foram filhas de um casal bem pobre e, muito pior que isso, miseravelmente, gigantescamente infeliz. O pai, Franck (Kévin Azaïs), era um sujeito de comportamento absolutamente instável, e dado à violência, que espancava e estuprava a mulher, Sylvie (Chloé André).
Sylvie – a série mostra isso em sequências impressionantes, tristíssimas – bem que tentou se libertar do marido agressor. Mas Franck ia atrás dela, sempre. Em uma ocasião, espancou-a, estuprou-a – enquanto as duas filhas, garotinhas de 3 ou 4 anos, não me lembro agora, ouviam os barulhos, os ruídos, o choro da mãe. A cena em que Sylvie perambula pela rua ensanguentada, as roupas rasgadas, após uma sessão de tortura e estupro, é de fazer chorar uma estátua de pedra.
E aí entrou em ação o serviço estatal de proteção e assistência aos pobres, desvalidos, deserdados da sorte. Não me lembro se aquela foi a primeira vez, ou os esquemas de assistência governamentais já haviam agido antes – mas, a partir dessa ocasião do estupro de Sylvie pelo marido, esses esquemas não abandonaram mais as garotas Laëtitia e Jessica.
Surge aí uma figura que será importante na narrativa, a assistente social Béatrice Prieur (o papel de Alix Poisson, bela e boa atriz). Assim como na parte policial a série destaca o delegado Frantz Touchais, na parte, digamos, mais social, sociológica, Béatrice é mostrada como uma profissional séria, dedicada, competente. Ela acompanhou todo o crescimento das meninas, desde ali os quatro anos de idade até a época do desaparecimento de Laëtitia, e depois.
Sylvie, a mãe, não teve condições de ficar com as meninas. Abatida, destroçada, passou longo período internada em instituição para doentes mentais. E a assistente social Béatrice esteve junto das gêmeas ao longo de todo esse processo, que incluiu o afastamento do pai da convivência diária com elas, e a escolha de pais adotivos. Os Patron, Gilles e Michelle, não foram os primeiros. Como já foi dito, esse casal adotou Laëtitia e Jessica em 2005, quando as garotas já eram adolescentes de 15 anos.
Sem esquemas de proteção aos pobres é a lei da selva
Por uma dessas coincidências da vida, vimos Laëtitia poucos dias depois de ver Maid, outra série extraordinária, estupenda, que também fala de violência doméstica, abuso, homens brutais, mulheres indefesas que sofrem mais do que seria humanamente possível suportar.
Nem é tanta coincidência assim termos visto uma atrás da outra. As duas séries são contemporâneas: Laëtitia é de 2020, Maid é de 2021. Coincidência – ou não – é o fato de termos duas séries lançadas na mesma época, contando histórias reais, passadas em países ricos, que mostram a mesma realidade: violência doméstica, abuso, homens brutais, mulheres indefesas.
Em Maid, o pai da protagonista batia na mulher. O marido da protagonista era igualmente violento no trato da jovem esposa – a única diferença era que a violência ainda não havia se traduzido em porrada física. E os dois, pai e marido, eram apenas alguns de tantos e tantos e tantos de homens violentos que submetiam suas mulheres a uma vida de horror.
Isso no país mais rico que já houve ao longo de toda a História da humanidade – e no meio não de minorias, descendentes de escravos ou de imigrantes indesejados, mas entre os brancos, anglo-saxões, protestantes.
Neste Laëtitia, há ainda mais horrores. Meu Deus do céu e também da Terra, mas quantos, quantos, quantos horrores.
A americana Maid e a francesa Laëtitia, as duas baseadas em fatos e pessoas reais, escancaram como é absolutamente necessária a existência de um esquema de assistência e proteção aos pobres, desvalidos. Como é fundamental a presença de organismos do Estado para apoiar quem mais precisa. A defesa do Estado mínimo, que não gaste dinheiro com esquemas de proteção dos mais pobres, feita pelos partidos mais à direita, é a defesa da lei da selva.
A garota americana Alex interpretada por Margaret Qualley come o pão que o diabo amassou, sofre mais que escravo remador nas galés romanas – mas encontra apoio, ajuda, em abrigo para mulheres vítimas de violência doméstica e nos diversos programas governamentais voltados para os mais pobres. E, depois de muito, mas muito sofrimento, consegue se erguer, sair do buraco, ter uma vida digna.
As garotas francesas Laëtitia de Marie Colomb e Jessica de Sophie Breyer também encontram apoio, ajuda, nos serviços de assistência social. Depois de adotadas pelos Patron, parece que vão ter, como teve a americana Alex, uma chance de uma vida melhor. Jessica estuda, Laëtitia trabalha como garçonete num restaurante, parece ir bem no trabalho.
O destino reservado às duas meninas, no entanto, não é bom como foi para Alex. Muitíssimo ao contrário.
(Na foto abaixo, Alix Poisson, que faz a assistente socil Béatrice Prieur.)
O caso teve imensa repercussão, virou tema político
O caso policial em si não demora a ser resolvido. A equipe chefiada pelo delegado Frantz interroga rapidamente todas as pessoas que conviviam com Laëtitia, os amigos, os namorados, os colegas de trabalho. Reconstitui, com base nas informações de testemunhas e no rastreamento do celular dela, todos os seus movimentos na noite do dia 18 de janeiro, antes do desaparecimento.
Não acho, de forma alguma, que seja spoiler relatar aqui que o assassino é identificado ainda no segundo dos seis episódios da série. Nem revelar que a série mostra episódios da adolescência dele, que permitem que se tenha uma idéia das origens do seu profundo desajustamento mental, comportamental.
Fica faltando, durante um bom tempo, no entanto, localizar os restos mortais da garota.
O caso de Laëtitia tinha tido grande repercussão nacional; a gente aqui não ouviu falar dele, mas a série mostra que o desaparecimento da garota, e em seguida a confirmação de que ela havia sido assassinada, foram na França algo comparável aqui a casos como o de Suzane von Richthofen, da garotinha Isabella Nardoni ou do garotinho Henry Borel.
As informações sobre Laëtitia eram notícia diária nos principais jornais da TV francesa – e aqui há um detalhe interessante. A série mostra trechos de reportagens das emissoras de TV, em especial da TF1, a Télévision Française 1 – que foi uma das produtoras da série.
Vemos trechos de matérias que mostram o então presidente da França, Nicolas Sarkozy, falando sobre o caso – e vemos uma sequência da série, da ficção que reconstitui os fatos reais, em que os Patron são recebidos pelo próprio Sarkozy no Palais de l’Élysée, a Casa Branca deles, reunião em um único prédio do Alvorada com o Palácio do Planalto.
Há também uma sequência em que um assessor de Sarkozy recebe, em nome do presidente, o pai das meninas, Franck. Franck foi preso depois daquele episódio de agressão brutal à ex-mulher; mas, depois de cumprir pena, continuou aparecendo na vida das garotas, exigindo direito de visitá-las nas casas de pais adotivos. Tentava agradá-las, quando podia as enche de presentes – mas volta e meia mostrava sua personalidade agressiva, e as assustava.
Eu, que tenho aquela teoria de que pai e mãe só deveriam ter direito a ter filhos depois de passar por concurso público duro, exigente, com provas e exigência de títulos, fiquei achando, ao longo da série toda, que a presença de Franck na vida das meninas mais as prejudicava do que qualquer outra coisa. Se tivesse se afastado completamente, teria ajudado muito. Mas as coisas são como são – e, num momento em que Michelle se refere ao marido Gilles como o papá das adolescentes então recém-chegadas à casa dos Patron, uma delas responde de imediato: – “Mas nós já temos um papá!”
Que tristeza… É tudo uma imensa tristeza.
Sim, mas voltando à coisa da imensa repercussão nacional do caso:
A parte policial, estritamente, a identificação do assassino, essa se resolve rapidamente. Mas fica faltando, como foi dito, encontrar os restos mortais de Laëtitia – e fica no ar a questão de como foi possível que Tony Meilhon, com aquela ficha criminal toda dele, pudesse ter sido solto, e não tivesse um acompanhamento mais de perto pelos agentes de liberdade condicional.
A série acompanha a discussão sobre essa questão, que virou um tema da política nacional francesa. Sarkozy simplesmente saiu acusando como culpados os juízes que cuidaram dos crimes cometidos anteriormente por Tony Meilhon, os agentes do sistema prisional.
Os magistrados de toda a França protestaram nas ruas contra as acusações do presidente.
A série mostra bem o juiz que acompanhou todo o caso do desaparecimento e assassinato de Laëtitia, o juiz Martinot (Cyril Descours), um rapaz jovem, sério, competente, empenhado (que me fez lembrar minha filha, é claro). Martinot reage a uma das acusações genéricas de Sarkozy ao sistema judiciário tachando-o de vagabundo populista de direita.
Um presidente da República que tem atitudes populistas, eleitoreiras, imbecis, sim. Mas, de outro lado, um delegado de polícia, uma assistente social e um juiz competentes, trabalhadores, dedicados, sérios, bem intencionados.
Jean-Xavier de Lestrade pinta um quadro bastante positivo do serviço público francês, através desses três personagens interessantes, interpretados por bons atores, com os quais o espectador naturalmente se simpatiza.
Um monte de bons atores – e um excepcional, fora de série
Bons atores. É impressionante a qualidade de todo o elenco desta série. Impressionante. Todos os atores estão homogeneamente bem, desde as garotas que fazem os papéis centrais, Marie Colomb e Sophie Breyer, ambas experientes, apesar de jovens, até os que aparecem pouco, como, só para dar um exemplo, Stéphanie Chamot, que faz a mãe de Tony Meilhon em duas épocas diferentes de sua vida, bem mais jovem e depois já na meia-idade, em 2011, e aparece apenas em duas ou três sequências de um único episódio.
Todos os atores homogeneamente bem – com uma exceção.
Noam Morgensztern (na foto acima), o ator que faz o papel desse Tony Meilhon, é um absurdo, uma coisa fora de jeito. É extraordinário, excepcional.
Nasceu em Toulouse, em 1980 – estava, portanto, com 40 anos em 2020, quando a série foi filmada. Parece mais velho na série, por causa da cara de louco varrido. Formou-se em 2006 no CNSAD, o Conservatoire National Supérieur d’Art Dramatique de Paris. Tem 22 títulos na filmografia – e nela não há gramde obra além deste Laëtitia, me pareceu, em uma olhadinha bem rápida. É um homem do teatro, é ator da Comédie Française. Há um acordo da Comédie Française com os estúdios, as produtoras: nos créditos, o nome de um membro da instituição tem que vir sempre acompanhado com a menção a ela, e então está lá, nos belos créditos iniciais de cada um dos seis episódios de Laëtitia: “Noam Morgensztern, de la Comédie Française”.
Marie Colomb, que faz Laëtitia, começou a carreira em 2014, e em outubro de 2021 tinha 12 títulos no currículo. Sophie Breyer, que faz Jessica, também começou a carreira em 2014, e tinha até o momento em que escrevo 20 títulos no currículo – inclusive a ótima série belga La Trêve. O IMDb não traz outras informações sobre as duas atrizes, que também ainda não têm verbete na Wikipedia em francês.
Esse extraordinário Jean-Xavier de Lestrade é da classe de 1963; estudou Jornalismo e Direito em Paris, como já foi dito. Em 1987, criou uma produtora de TV dedicada ao jornalismo, chamada Tribulations, que vendia trabalho para diversas emissoras. A partir de 1992, passou a fazer documentários que, como diz sua biografia no IMDb, “escrutiniza os mecanismos da sociedade, especialmente seus tabus e sua Justiça”, abordando temas como crimes sexuais, o incesto, a morte, o genocídio em Ruanda, a mortandade de aborígenes na Austrália.
Assassinato numa Manhã de Domingo (2001), seu nono documentário de longa-metragem, ganhou o Oscar da categoria.
Um sujeito chegado a uma atribulação. Pelo jeito, esse de Lestrade não toparia fazer uma versão francesa de Uma Linda Mulher/Pretty Woman. Não deve sequer assistir a comedinhas românticas.
“A boa Justiça é o inverso de um ímpeto de violência”
Não dá para saber, é claro, se isso aconteceu de fato, mas a série mostra que o delegado Frantz Touchais procurou a assistente social Béatrice Prieur várias vezes, para conversar sobre as gêmeas, na tentativa de entender o que se passava na cabeça de Laëtitia, o que se passava na cabeça de Jessica.
Completamente envolvido pelo drama das duas, eu não conseguia me impedir de atrapalhar a vida da Mary e exclamava a cada momento: – “Mas o que que ela tinha na cabeça? Mas por que ela topou sair com esse cara? Mas por que ela não reagiu durante esse tempo todo?”
O delegado Frantz Touchais tentava de todas as maneiras entender o que se passava na cabeça das gêmeas. A assistente social Béatrice Prieur passou anos e anos tentando chegar perto delas, compreender, ouvir, ajudar – mas é impressionante como as duas garotas, cada uma a seu jeito, eram capazes de, com firmeza, se fechar diante dos outros e recusar a ajuda.
A verdade é que não tem como a gente entender o que se passa na cabeça dos outros. Quantos e quantos pais – bons pais, que passariam com louvor naquele concurso ideal, sério, exigente, que deveria ser obrigatório – não conseguem fazer com que os filhos conversem com eles, se abram, se exprimam.
Creio que esta série extraordinária quer deixar isso bem claro: os representantes dos organismos do Estado tentaram ajudar as gêmeas. Fizeram esforço para ajudar – e não conseguiram.
A fala que mais me impressionou na série é dita pelo jovem juiz Martinot para o pai adotivo Gilles Patron, que fazia uma pregação de que Tony Meilhon nunca deveria ter saído da cadeia. Àquela altura, o espectador já havia visto Gilles Patron defender a pena de morte para os criminosos sexuais – e Gilles Patron é um sujeito que, desde a primeira vez que aparece na tela, não se mostra uma pessoa simpática, de forma alguma. E então o juiz Martinot, com voz baixa, pausada, diz a frase que o cineasta marselhês Robert Guédiguian, um batalhador contra a Lei do Talião, seguramente aplaudiria de pé:
– “A Justiça não é um caso de (atender à) opinião pública. E não tem nada a ver com a vingança. A boa Justiça é o inverso de um ímpeto de violência.”
Tenho certeza de que não é spoiler dizer que Tony Meilhon foi condenado pelo Tribunal de Justiça de Loire-Atlantique à prisão perpétua, acompanhada de uma pena de 22 anos de segurança. Seus advogados recorreram, e em outubro de 2015 o Tribunal de Recurso de Rennes confirmou a condenação à prisão perpétua, com pena de segurança de 22 anos.
Anotação em outubro de 2021
Laëtitia
De Jean-Xavier de Lestrade, diretor, roteirista, França, 2020
Com Marie Colomb (Laëtitia),
Sophie Breyer (Jessica),
Yannick Choirat (Frantz Touchais, o delegado que chefia a investigação), Kévin Azaïs (Franck, o pai das gêmeas), Sam Karmann (Gilles Patron, o pai adotivo), Clotilde Mollet (Michelle Patron, a mãe adotiva), Noam Morgensztern (Tony Meilhon, o assassino), Alix Poisson (Béatrice Prieur, a assistente social), Cyril Descours (o juiz Martinot), Chloé André (Sylvie, a mãe das gêmeas), Luna Carpiaux (Lola, a amiga das gêmeas), François Raison (o procurador Ronsin), Yanis Richard (Kevin, amigo de Laëtitia), Simon Duvivier (Steven), Benjamin Quique (William, amigo de Laëtitia), Alice Daubelcour (Justine, amiga das gêmeas), Adèle Chouba (Christelle, a filha dos Patron), Armand Rayaume (Tony Meilhon aos 12 anos), Stéphanie Chamot (a mãe de Tony Meilhon), Chloé André (Sylvie), Nicolas Bourgasser (Jonathan), Grégory Ghezzi (Béraud), Julien Emirian (Morel), Denis Duval (o tio), Rui-Mickaël Dias (Gerald), Michaël Louchart (Bertin), Chloé Simoneau (a mulher do juiz Martinot), Guillaume Marquet (Loïc Nallet),
e Hanna Crémois (Jessica aos 4 anos), Thais Bombe (Laëtitia aos 4 anos),
Léwine Weber (Jessica aos 6 anos). Milla Dubourdieu (Laëtitia aos 6 anos),
Lila-Rose Gilberti (Jessica aos 13 anos), Cyrille Mairesse (Laëtitia aos 13 anos)
Roteiro, adaptação e diálogos de Antoine Lacomblez e Jean-Xavier de Lestrade
Baseado no livro “Laëtitia ou la Fin des Hommes”, de Ivan Jablonka
Fotografia David Chambille
Música Raf Keunen
Montagem Sophie Brunet
Casting Okinawa Valérie Guerard
Direção de arte Wouter Zoon
Figurinos Nathalie Raoul
Produção Judith Louis , CPB Films, L’Île Clavel,
France Télévisions, BE-FILMS, Radio Télévision Belge Francophone,
Pictanovo, Région Hauts-de-France, TV5 Monde, Radio Télévision Suisse.
Cor, cerca de 300 min (5h)
Disponível no HBO Max.
****
Morte na escadaria (The Staircase) do mesmo diretor é um documentário sensacional, sobre um caso intrincado que continua repercutindo até hoje. Recomento muito