Virgin River é uma série distribuída pela Netflix que, diferentemente de tantas outras, não é sobre serial killer, sobre crimes – e esta é a primeira de suas qualidades.
Não conheço – e não deve haver – estudos sérios que mostrem quantos dos hoje quase 8 bilhões de pessoas vivendo neste planeta são serial killers, criminosos, bandidos, foras-da-lei. Nem dá para saber com exatidão quantos dos filmes e/ou séries produzidos a cada ano são sobre os serial killers, criminosos, bandidos, foras-da-lei – mas dá para dizer, sem dúvida, que há mais filmes e/ou séries sobre a pequenina parte da humanidade que é bandida do que sobre a imensa maior parte que é gente que jamais matou, roubou, sequestrou, chantageou.
Assim, a primeira qualidade de Virgin River é que esta é uma série sobre as pessoas “normais”, as pessoas comuns. Common people. Ordinary people. Neguinho que nem eu ou você.
Essa coisa que as grandes produções de Hollywood têm cada vez mais ignorado, para mostrar super-heróis.
A série, indo contra a corrente, conta a história de Melinda Monroe, Mel, uma enfermeira extremamente competente, bem sucedida de Los Angeles, de uns 35, 38 anos e portanto no auge da carreira, que aceita uma proposta de trabalho e se muda para Virgin River, uma cidadezinha pequenina, praticamente isolada, no meio de uma floresta, longe de tudo, longe deste insensato mundo, no Norte da Califórnia.
É evidente que não é nada, mas nada usual uma profissional competente, no auge da força, da juventude, que já ganhou uma boa experiência, deixar um bom emprego num hospital de ponta de uma grande cidade, no caso a segunda maior metrópole dos Estados Unidos, para se enfiar num lugarejo provinciano. Assim, é natural que o espectador pense que Mel deve ter tido algum problema para tomar essa decisão.
E é claro que teve.
Os dez episódios da primeira série de Virgin River vão então mostrando para o espectador o dia-a-dia de Mel após chegar à cidadezinha, os duros problemas que enfrenta por ter que trabalhar com o único médico do lugar que não vai nada com a cara dela, as pessoas que ela fica conhecendo, inclusive, é claro, um mocinho bonito, simpático, charmoso. Pouco a pouco, através de flashbacks que vão se infiltrando na ação do presente, vamos sabendo dos acontecimentos do passado recente que fizeram com que a moça tomasse a decisão de trocar a metrópole pelo lugarejo afastado de tudo do mundo.
É uma série sobre a vida o amor a morte. Não é um thriller – mas um pouquinho de suspense, ou no mínimo o cuidado para deixar o espectador curioso são sempre bem-vindos. Só no décimo e último episódio vem a peça que faltava do quebra-cabeça para explicar por que Mel trocou Los Angeles por Virgin River.
Uma série com atores experientes, mas nenhum astro
É uma série sem grandes astros, sem nomes muito famosos – mas os atores são todos experientes, e estão bem, de uma maneira geral.
Para o papel central, os produtores escolheram Alexandra Breckenridge. Jamais tinha ouvido falar, mas e daí? É uma moça muito bonita, interessante – não poderia ser diferente, porque todos os dez episódios giram em torno dela, o tempo todo.
Alexandra Breckenridge nasceu no Estado de Connecticut, ali junto de Nova York, em 1982 – estava portanto com 37 quando a série foi lançada, em dezembro de 2019. Começou a carreira em 1998, aos 16 anos, e já reúne 60 títulos no currículo, boa parte deles séries de TV.
Quem faz o papel do mocinho, Jack Sheridan, o dono do melhor (ou único bom) bar da cidade é Martin Henderson, ator nascido na Nova Zelândia, em 1974, uns 42 títulos no currículo, inclusive a série Grey’s Anatomy, em que faz o papel do dr. Nathan Riggs.
Tim Matheson faz Doc Mullins, o médico que trata de todos os habitantes de Virgin River. E Annette O’Toole interpreta Hope McCrea, a prefeita do lugar, que, quando não está discutindo com Doc Mullins, está se metendo na vida de cada um dos cidadãos. A rigor, muitos dos personagens da série se metem na vida dos outros, já que, como em todas os lugarejos bem pequenos, todo mundo conhece todo mundo.
A dicotomia gente da cidade grande (representada por Mel, recém-chegada de L.A.) e gente da cidade pequena, do interior (todos os demais personagens) está sempre presente em cada um dos dez episódios da série. É um tema gostoso, divertido, além de a rigor importante, e a criadora da série, Sue Tenney, o aproveita bem.
Robyn Carr escreveu mais de 50 livros
Sue Tenney assina como a criadora, uma dos roteiristas e uma dos produtores executivos. Ela se baseou nos livros de Robyn Carr – uma autora de quem eu, do fundo do poço da minha ignorância, jamais ouvira falar.
Robyn Carr, vejo agora, é – meu Deus do céu e também da Terra! – um fantástico fenômeno. Se houvesse um Prêmio Nobel para o escritor mais prolífero, mais prolífico do mundo, o troféu seria dela. A moça escreveu quase 60 livros em um período de 40 anos, de 1980 para cá!
A mulher é um azougue, uma potência, uma loucura. Vários de seus livros chegaram ao número 1 na lista dos mais vendidos do New York Times – 11, segundo informa a Amazon. Só da série Virgin River são 21 romances. A série de livros começou em 2007, quando ela lançou não o primeiro, mas os três primeiros – Virgin River, Shelter Mountain, Whispering Rock.
Robyn Carr teve formação como enfermeira, é claro – exatamente como sua criatura Melinda Monroe. Mas não conseguiu praticar muito a profissão depois de formada, na década de 70 (ela é do tipo que não divulga data de nascimento), porque, casada com um membro da Força Aérea americana, tinha que se mudar constantemente – nascida no gelado Minnesota, ela seguiu o marido em bases aéreas de Texas, Alabama, Florida, Califórnia, Utah, Arizona e Nevada, segundo informa sua página na internet.
A profissão que Robyn Carr não pôde praticar com constância ela botou sua heroína Mel para praticar. No primeiro livro da série, Virgin River, Mel lê na internet, em Los Angeles, o seguinte anúncio de “precisa-se”:
“Precisa-se de parteira/enfermeira formada em Virgin River, população 600 habitantes. Faça a diferente contra um pano de fundo de altíssimas sequóias e rios de águas cristalinas. O emprego incluiu uma cabana, sem cobrança de aluguel.”
Na série feita para a TV, da qual a autora Robyn Carr é uma das produtoras executivas, não se cita a íntegra desse anúncio – mas o espectador vê uma foto da cabana, uma maravilhosa, linda, bem cuidadíssima construção de madeira.
O que se anuncia muitas vezes não tem nada a ver com a realidade: a cabana que Mel encontra, ao chegar a Virgin River, tem pouquíssimo ou quase nada a ver com a da foto. Está como se tivesse sido abandonada havia muitos anos, toda suja, completamente desleixada, por dentro e por fora – um horror.
O primeiro choque de civilizações da jovem Mel
A realidade que Mel encontra ao chegar a Virgin River, nos primeiros minutos do primeiro episódio, é, de fato, um horror. Qualquer pessoa teria metido o rabo entre as pernas e voltado às pressas para o lugar de onde tinha vindo.
A primeira imagem que vemos é de um carro esporte caro, bonito, vermelho vivo, percorrendo uma pequena estrada no meio de uma floresta. Anoitece, e a solitária motorista segue em frente, numa estrada que – dá para perceber perfeitamente – ela desconhecia. À medida que ela avança, a estrada vai ficando com a aparência de mais e mais deserta. Somem as faixas amarelas que dividem as duas mãos de direção. Um gigantesco caminhão vem atrás dela, a toda – e a estradinha é muito estreita. Mel acaba perdendo o controle do carro, que sai da estrada e cai numa valeta.
Ela tenta telefonar para o seguro, mas é claro que não há sinal – não há ERB alguma no meio daquela floresta espessa.
Um minuto e meio apenas de narrativa – e já surge o primeiro flashback. Mel se olha no espelho do carro, e se lembra do dia em que, tendo batido a testa, foi examinada por um jovem médico do hospital em que trabalhava, Mark (Daniel Gillies). O Mark que – rapidamente veremos – ele iria namorar, por quem iria se apaixonar perdidamente e com quem, eventualmente, iria se casar.
É uma série de TV, e então os realizadores tomaram especial cuidado para demonstrar para os espectadores que aquilo ali é flashback, é uma lembrança que Mel está tendo. Os flashbacks que aparecem nestes primeiros 10 episódios de Virgin River são fotografados com uma iluminação intensa, para não deixar dúvida alguma de que são flashbacks.
Um raio de luz ilumina o rosto de Mel, parada em seu belo carro numa estradinha perdida no meio do nada: é uma lanterna. Alguém apareceu, numa velhíssima caminhonete, naquela estrada pouco movimentada. Pode parecer uma grande sorte da moça – veremos logo que será um grande azar.
Rola assim o primeiro diálogo entre a urbanóide da metrópole e o capiau do interior bravo, um senhorzinho de uns 70 e tantos anos:
Ele: – “Você precisa sair do carro.”
Ela: – “O quê?”
Ele: – “Você precisa sair do carro. Ele está preso numa vala.
Ela: – “O quê? (Ela sai do carro.) Ah, não acredito.’
Ele: – “Você teve sorte de não arrebentar esse carrinho ridículo numa árvore.”
(O carro dela é um BMW.)
Ela: – “Obrigado por ter parado. Eu vou ligar para o guincho.”
Ele: – “Olhe ao redor. Está no meio do mato, não tem sinal aqui.”
Ela: – “Droga!
Ele: – “Ligo pro Bert quando chegarmos à cidade. Se ele não estiver muito ocupado, arruma o carro ainda esta semana.”
A bela moça urbanóide não se move, uma expressão de susto e estranhamento no rosto. O capiau do interior bravo fala alto, já com sua porta da caminhonete velhíssima aberta: – “Você vai vir ou não?”
Começa tudo ruim para Mel. Mas vai piorar muito
Surge uma imagem de cartão postal, de National Geographic: uma paisagem deslumbrante, belas montanhas, o sol nascendo atrás de uma delas, um vale planinho e, no meio dele, um suave, serpenteante rio, o Virgin River que dá título à cidadezinha de 600 habitantes, aos livros de Robyn Carr e à série de TV. Grandão na tela, sobre a paisagem, o título – Virgin River.
E, depois dessa imagem diurna com o título, voltamos à noite inicial. A velha caminhonete está na estrada escuríssima, enquanto vão rolando os créditos iniciais, os principais nomes da equipe.
Ela: – “O senhor poderia me deixar na cabana dos McCrea? Fica em Virgin River, tenho o endereço aqui.”
Ele: – “Todo mundo da região sabe onde fica a cabana dos McCrea.”
Ela: – “A julgar pela foto, é linda.”
Um momento de terrível, desagradável silêncio.
A jovem e bela enfermeira da metrópole estende uma nota para o senhorzinho que a socorreu.
Ele: – “Por aqui, nós não cobramos por ser educados. Nós apenas somos educados.”
De onde raios Mel Monroe tirou que tinha que dar gorjeta para um senhorzinho que deu carona a ela?
Mal, mal. Mas vai piorar.
Ela: – “Certo. Desculpe. Obrigada.”
Ele (depois de um tempinho): – “Pronto. Chegamos.”
Ela (olhando para a cabana com toda aquela aparência de desleixo e em seguida olhando para a foto impressa numa folha A4): – “Ah, não!”
Desce da caminhonete, dá a volta nela, fica próxima do motorista, mostra a foto para ele.
Ele: – “Alguém enganou você bonito. Jamais reserve lugar de férias pela internet. É sempre golpe.”
Ela: – “Não estou de férias. Vim trabalhar. Sou a nova enfermeira. Na verdade, sou também parteira. Vou trabalhar com o dr. Mullins. Fiquei sabendo que só tem ele na clínica. Está ficando pesado para ele.”
Ele: – “É mesmo?”
Ela: – “Ele tem uns 70 anos, e ainda trabalha o dia inteiro.”
Ele: – “Milagre ele ainda estar vivo. Então o velho doutor contratou você, é?”
Ela: – “Na verdade, foi a Hope McCrea. Desculpe. Não sei seu nome. Sou Melinda Monroe, me chamam de Mel.”
Ele: – “Sou Vernon. As pessoas me chamam de Doc Mullins. Só para constar, moça, tenho 72 anos.”
E dá a partida no carro.
O doutor Mullins, Doc Mullins, vai se demonstrar um velhinho chato, pentelho, autoritário, cheio de confiança – e receberá a enfermeira contratada pela prefeita para ajudá-lo com a mais absoluta má vontade que você já viu num filme ou série de TV.
Vai piorar.
Ela entra na tal cabana – e está tudo o mais absoluto horror.
Já está garantido que haverá uma segunda temporada
A imaginação de Robyn Carr não apenas cria personagens, situações, eventos, tramas. Inventa também a geografia.
Não existe no Norte da Califórnia nenhuma cidadezinha chamada Virgin River. Nem rio algum chamado Virgin River. Virgin River até que existe, sim, mas ele nasce no Estado de Utah e, após 262 quilômetros, deságua no Rio Colorado.
Os produtores da série acharam o belíssimo lugar para filmar a fictícia cidade de Virgin River e o fictício Virgin River na British Columbia, no Canadá.
A primeira temporada da série foi distribuída pela Netflix mundo afora no dia 6 de dezembro de 2019. E os realizadores não tiveram nenhuma dúvida de que haverá uma segunda, pelo menos – a se levar em consideração a fama da autora e de seus livros, dá para prever que haverá várias temporadas.
A segunda, pelo menos, está garantida, e a estréia deverá ser em meados de 2020.
É inevitável mesmo que haja uma segunda temporada. O décimo e último episódio faz questão de deixar várias questões em aberto.
Anotação em dezembro de 2019
Virgin River
De Sue Tenney, criadora, roteirista, produtora executiva, EUA, 2019
Diretores Andy Mikita, Gail Harvey, Tim Matheson, Jann Turner, Martin Wood .
Com Alexandra Breckenridge (Melinda Monroe)
e Martin Henderson (Jack Sheridan), Colin Lawrence (Preacher, o cozinheiro do Bar do Jack), Annette O’Toole (Hope McCrea, a prefeita), Tim Matheson (Doc Mullins, o médico da cidade), Lauren Hammersley (Charmaine Roberts, a namorada de Jack), Benjamin Hollingsworth (Dan Brady, o amigo problemático de Jack), Grayson Maxwell Gurnsey (Ricky, o rapaz do bar), Jenny Cooper (Joey Barnes, a irmã de Mel), Lexa Doig (Paige Lassiter, a moça dos doces), Nicola Cavendish (Connie, a dono do armazém), Daniel Gillies (Mark, o marido de Mel), Trevor Lerner (Bert Gordon, o do guincho), Lynda Boyd (Lilly, a fazendeira viúva)
Roteiro Sue Tenney, Patrick Moss, Amy Palmer Robertson, Debra Fordham, Jackson Rock
Baseado nos livros de Robyn Carr
Música Jeff Garber
Montagem Daria Ellerman, Nicole Ratcliffe, Lara Mazur
Casting Errin Lally e Annalese Tilling
Produção Reel World Management, distribuição Netflix.
Cor, cerca de 450 min (7h30)
**1/2
Estou a ver a primeira temporada e estou a gostar muito.
De facto não há por aqui crimes, tiros, assassinos em série, etc..
É uma série bem feita, variada, com surpresas, muito agradável de seguir.
Só uma coisa: Quando no início o médico chama o BMW de Mel ridículo lembrei-me de há vários anos ver o último carro americano na minha cidade (Aveiro). Durante alguns verões apareceu um emigrante que andava num daqueles enormes carros americanos descapotável com um grande chapéu americano. Andava às voltas muito vaidoso.
Ridículo.
Continuando minha viagem ao passado… Um Pecado em Cada Alma! Como não assistir um filme com Glenn Ford e Bárbara Stanwyck?Como esquece-los? Jamil e eu assistimos no Cine Santa Tereza, bem próximo à nossa casa . O Rei e Eu – Me lembro bem. Deborah Kerr. Como esquecê-la?Não me lembrava da historia do filme, so do título, mas fui lendo o seu enredo e tudo me veio à cabeça! Falando dos roteiristas, você falou em Crepúsculo dos Deuses(vi), Sabrina(vi)e Noviça Rebelde (claro que vi)!!! O Rei e Eu ! Meu Deus! Déborah Ker e Yul Brynner! Como esquecer?Quero ver esse filme de novo. Será que você tem?Quando eu for aí, veremos!Adorei minhas leituras de hoje. Nem me lembrei de pandemia. Você me levou de volta aos meus anos juvenís! Bom demais! Te amo!