Quem, diabo, afinal das contas, é aquele sujeito que se senta todo dia na mesma mesa no fundo do bar-lanchonete-restaurante, e que a toda hora é procurado por pessoas que precisam demais de um milagre em suas vidas, e estão dispostas a fazer o que o cara mandar para conseguir o objetivo?
É o tipo da questão que dá vontade de a gente exprimir com um palavrão. What the fuck is this guy? Que porra, que cazzo é esse cara?
O cara não tem nome. Quer dizer, o nome do sujeito não aparece, não é citado hora nenhuma do filme, The Place, produção italiana de 2017, dirigida por Paolo Genevose, ele também autor do roteiro, ao lado de Isabella Aguilar.
Não é um roteiro original: é uma adaptação para a Itália, para o ambiente de um bar romano de nome em inglês, The Place, da história de uma série de TV americana, The Booth at the End, a cabine no fundo, lançada em 2011. A série, escrita por Christopher Kubasik, teve 10 episódios de 30 minutos cada – e é uma interessante prova de não é apenas Hollywood que refilma histórias criadas pelo cinema italiano, francês, japonês, brasileiro, coreano.
Não, não é apenas Hollywood que refilma. Italianos também refilmam histórias originais americanas, assim como alemães refilmam histórias originais espanholas, apenas para citar o exemplo recente de Segredos de Natal/Zeit der Geheimnisse, inspirada em Natal em 3 x 4/Días de Navidad. Ou como brasileiros e colombianos refilmam histórias originais argentinas, como Corazón de León (2013), que virou um Corazón de León na Colômbia (2015) e Um Amor à Altura (2016) no Brasil. Só para dar um par de exemplos, porque a lista seria imensa.
É um planeta globalizado – e faz tempo. Todo mundo copia todo mundo, todo mundo se inspira em todo mundo, todo mundo refilma todo mundo.
Sim, isso aí do parágrafo acima é uma verdade indiscutível, um truísmo. Difícil mesmo é saber quem, diabo, cazzo, é esse cara que não tem nome, que na relação de personagens, o cast of characters, da série original aparece apenas como The Man, e nos créditos finais do filme italiano aparece como L’uomo, o papel de Valerio Mastandrea.
Quem é esse sujeito que a velha senhora Marcella (Giulia Lazzarini) procura para reaver o marido, perdido para o Alzheimer – e que, para conseguir o que quer, está disposta a montar uma bomba e colocá-la para explodir em um bar num sábado à noite?
Quem é essa cara que a irmã Chiara (Alba Rohrwacher) procura porque de repente deixou de sentir a existência de Deus, e quer voltar a ter Deus em sua vida – mesmo que para isso seja necessário fazer o que homem sugere que ela faça, se engravide?
Seria o homem sem nome o diabo? Um anjo torto, safado, o chato de um querubim, como o da canção do Chico? Um simples charlatão?
Sim, isso: quem sabe um charlatão, um enganador?
Pode ser. Mas ele não pede dinheiro para as pessoas que vão ao fundo do bar-lanchonete-restaurante The Place solicitar que ele consiga aquilo de que elas precisam.
Então, que cazzo é o sujeito? What the fuck is this guy?
Não há um gênero para definir este filme
Creio que não há o nome de um gênero, um rótulo para definir o que este The Place. O IMDb, esse fantástico site enciclopédico que sabe tudo, define o filme de Paolo Genevose como “drama, mistério, thriller” – e é bem verdade, é um drama, um filme de mistério, um thriller. Mas os três gêneros não conseguem exprimir exatamente o que o filme é.
Não existe esse gênero em lugar nenhum, mas eu diria que The Place é uma parábola. Uma história que não pode jamais ser entendida, ou apreciada, se o espectador estiver esperando uma narrativa realista.
The Place, de alguma maneira, tem semelhanças com O Anjo Exterminador (1962), o grande clássico de Luís Buñuel, com Teorema (1968) de Pier Paolo Pasolini, com Os Pássaros (1963) de Alfred Hitchcock, um tanto com o Blow-up (1966) de Michelangelo Antonioni – mas aí fica parecendo que só tem filmaços dos grandes mestres na relação dos filmes que são parábolas. E isso não é verdade.
Há parábolas feitas por realizadores bem menos geniais, como, por exemplo, Uli Edel, que fez O Purgatório (1999), um western-parábola, ou Alex de la Iglesia, que fez O Bar (2017), ou Marco Ferreri, autor de A Comilança (1973).
Acho fascinante que Paolo Genovese, realizador de oito longas antes deste aqui, nenhum deles reconhecido como marcante, venha se juntar a essa lista de autores de filmes-parábolas copiando uma série de TV americana.
Esse tipo de filme em geral se aproxima bastante do que eu chamo de filme papo-cabeça, um gênero, ou subgênero, que é adorado pelos cinéfilos dotados de narizinho arrebitado e que adoram dizer que detestam “cinema americano” e só gostam de “cinema de arte”. Gente como Hal Hartley, Peter Greenaway é o must dos adeptos dos filmes papo-cabeça.
De forma semelhante aos filmes papo-cabeça, os filmes parábola são capazes de agradar muito ou desagradar profundamente. Depende de muitas variáveis, além das qualidades intrínsecas, específicas de cada um – depende de cada espectador, depende do estado de espírito em que ele está no momento em que vê o filme.
Há milhares e milhares e milhares de pessoas que gostam demais de filmes e detestam Blow-up, por exemplo. Meu amigo José Luís Fino é um deles.
Não há problema algum em detestar Blow-up, filme que me fez babar quando eu era adolescente, e me fez babar de novo ao rever há pouco, já velhinho. Não há problema algum em detestar filmes papo-cabeça, ou amar filmes papo-cabeça, ou filmes parábolas.
Mary, que tem um gosto bastante parecido com o meu (ou não estaríamos vendo filmes juntos há 30 anos), não gostou nada deste The Place. Achou chato, tudo muito repetitivo, muito igual o tempo todo – talvez funcionasse como um média-metragem, mas como um filme de mais de uma hora e meia é um saco, disse ela. E, diabo, desde o início a gente sabe que o tal homem, no final..,. Bem, mas aí, neste momento, terminar a frase seria um spoiler.
Bem. Creio que já deixei um tanto claro do que se trata a coisa.
Para obter o que querem, aceitam cometer crimes
Sete pessoas vão ao The Place sentar-se na mesa do fundo ocupada pelo homem sem nome para pedir a ele o milagre que esperam, o desejo profundo que têm na vida. Sete pessoas – e há ainda uma outra personagem importante, Angela, funcionária do bar-lanchonete-restaurante, provavelmente a gerente, que, ao longo dos vários dias em que se passa a ação, ao longo dos 105 minutos do filme, por várias vezes se dirige àquele cliente assíduo esquisito, estranho.
Angela (o papel da bela e competente Sabrina Ferilli, na foto acima) me pareceu a mais simpática de todos os personagens. De alguma maneira, ela não pertence ao mundo da parábola – ela é do mundo real, é uma pessoa como o eventual leitor e eu mesmo.
As sete pessoas que se apresentam diante do Homem, l’Uomo, The Men, aparentemente não se conhecem, não têm relação umas com as outras. Ao longo da narrativa, veremos que há, sim, ligações entre eles – ou pré-existentes, ou criadas pela intervenção do sujeito que ninguém sabe que cazzo é na tal da vida.
Estas são as sete pessoas, na ordem de entrada em cena:
1 – O policial. Não me lembro de que seu nome tenha sido pronunciado alguma vez, mas parece que se chama Odoacre, e é o papel de Roco Papaleo. O policial quer reaver uma quantidade de dinheiro que foi roubada. O Homem diz que, se ele bater violentamente em uma pessoa, conseguirá reaver a grana.
2 – La Signora Marcella, a já citada senhora idosa, o papel de Giulia Lazzarini. Como foi dito, a Signora Marcella aceitou a tarefa de montar uma bomba para, em troca, ver seu marido salvo do Alzheimer. Na primeira vez em que a vemos no The Place, diante do Homem, há um diálogo marcante:
Ela: – “Você obriga todo mundo que vem aqui a fazer coisas más?”
Ele: – “Não. Só alguns.”
O Homem também faz, no meio da conversa com ela, uma pergunta importantíssima: – “Ainda quer fazer isso?”
3 – Este tem nome: Luigi (o papel, creio, de Vinicio Marchioni). É um jovem pai, aí na faixa dos 30 e muitos, 40 anos, cujo filho está hospitalizado, com um câncer. Ele aceita fazer um acordo com o Homem: para que seu filho seja salvo, matará uma criança.
4 – A quarta personagem a se sentar diante do Homem no fundo do The Place é a jovem freira, a irmã Chiara (o papel de Alba Rohrwacher, na foto acima), que foi citada lá acima.
O início do diálogo é interessante:
Ela: – “Como poso saber que o senhor não é o diabo?”
Ele: – “Você não terá como saber.”
O acordo que o Homem oferece à doce irmã Chiara é revoltante, absurdo, nojento como lançar uma bomba, espancar um homem, matar uma criança: ela terá que contrariar seus votos e dar à luz.
Como outros dos clientes do Homem, ela fica em dúvida – mas acaba aceitando o acordo. Entregar-se a um homem, ter um filho – para, em troca, voltar a sentir Deus.
5 – A quinta personagem me pareceu a mais improvável, implausível – e nada simpática. Chamsa-se Martina, e é interpretada por Silvia D’Amico. É uma jovenzinha atraente, mas que é sempre abandonada pelos namorados, e quer ser bela, quer ter um rosto belo. O acordo que faz com o Homem exige que ela cometa um roubo.
6 – O sexto é um mecânico, o dono de uma mecânica, que, creio, sem ter certeza, se chama Ettore, e é o papel de Marco Giallini. Ele quer algo bem mais simples do que a maioria dos outros. Quer comer a moça que aparece nos calendários que enfeitam as paredes de sua oficina. O acordo é que ele conseguirá o que deseja, desde que proteja uma menininha. E o Homem dá para ele o nome e o endereço da criança que Luigi terá que matar para que seu filho escape da morte pelo câncer.
7 – E, finalmente, temos o cego – que, creio, só creio, sem certeza, se chame Fulvio e seja interpretado por Alessandro Borghi. O cego, é claro, quer passar a ver. Ele passará a ver, diz o Homem – desde que estupre uma mulher.
Parábolas são parábolas, uai! Histórias com moral
Uma freira que tem que ter relações sexuais para poder ter um filho. Um cego que tem que estuprar uma mulher.
Um pai que tem que matar uma criança. Um sujeito que tem que proteger aquela criança, ser seu anjo da guarda.
Logo se vê que o policial tem uma vontade imensa: ter o amor do filho que nunca gostou dele. E logo se vê que Martina, a moça atraente que se acha feia e quer ser linda, começa a namorar um rapaz chamado Alex (o papel de Silvio Muccino) – e Alex, evidentemente, é o filho do policial.
Alguns já se conheciam. Os que não se conheciam são aproximados uns dos outros pelo Homem.
Que cazzo é esse Homem, afinal?
E é aí que está: os filmes-parábolas não têm nada a ver com a lógica normal, com a realidade tal qual a vemos. Parábolas são parábolas, uai!
Não adianta nada perguntar quem é o diabo do Homem. Não adianta nada usar a nossa necessidade de objetividade para tentar entender por que raios aquelas pessoas vão até o Homem em busca da realização de seus sonhos, seus milagres.
É tudo parábola. É tudo simbologia.
De uma certa maneira, é como nos livros sagrados das religiões todas.
“In illo tempore”, diziam os padres nas missas do Convento dos Dominicanos, no alto da Rua do Ouro, na Serra, quando eu era garoto em Belo Horizonte, e as missas ainda eram rezadas em Latim. Naquele tempo, dizia Jesus a seus apóstolos – e lá vinha uma parábola. Uma história em que tudo é simbólico – aquilo que se fala não é a realidade real dos fatos, são imagens. Uma forma de querer contar uma história que tem uma moral. Uma espécie de fábula. Parábola, fábula, simbologia.
“No princípio criou Deus o céu e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. E disse Deus: Haja luz; e houve luz.”
Jamais compreendi por que há tanta briga entre criacionistas e cientistas. Meu Deus do céu, a Bíblia é parábola, fábula, simbologia – a frase “No princípio criou Deus o céu e a terra” é só uma forma simbólica de dizer: pois é, houve o big bang.
O Homem não exige nada de seus “clientes”
A questão é: mas o que cazzo esse diabo dessa parábola do Homem do fundo do bar significa?
Hummm…
Cada pessoa interpreta cada parábola do jeito que quiser. Há quem interprete o Corão como o recado de Alá para matar quem não é muçulmano. Há quem entenda que o Velho Testamento autoriza a Lei do Talião, o olho por olho dente por dente. E por aí vai.
Eu, euzinho, fiquei com a impressão de que o rapaz Paolo Genevose e sua co-roteirista Isabella Aguilar quiseram falar do livre arbítrio.
A vida é uma coleção de momentos em que a gente tem que fazer escolhas. A cada momento, cada um de nós pode fazer sua escolha. A cada escolha que a gente faz, a gente paga por ela.
Podemos fazer todo tipo de escolha errada. É dada a nós essa capacidade.
O Homem não obriga nenhum dos seus clientes a fazer isso para conseguir aquilo. Ele põe nas mãos de cada um a opção. “Se puoi fare.” Pode-se fazer, ele diz – mas logo acrescenta que o cliente não é obrigado. Pode topar o acordo que ele propõe, ou pode perfeitamente não topar.
Livre arbítrio.
Gostei bastante da parábola de The Place. Gostaria de procurar o original americano, a série The Booth at the End.
De resto, só faço questão de registrar uma certa estranheza, ou decepção comigo mesmo. De todos esses atores aí, eu só conhecia Alba Rohrwacher e Silvio Muccino.
Diacho! Gostaria de ver mais filmes italianos.
Anotação em março de 2020
Oportunistas/The Place
De Paolo Genevose, Itália, 2017
Com Valerio Mastandrea (o homem misterioso)
e Sabrina Ferilli (Angela, a gerente do bar), Marco Giallini (Ettore), Alessandro Borghi (Fulvio), Silvio Muccino (Alex, o filho do policial), Alba Rohrwacher (irmã Chiara, a freira), Vittoria Puccini (Azzurra), Silvia D’Amico (Martina, a que se acha feia), Rocco Papaleo (Odoacre), Giulia Lazzarini (dona Marcella, a senhora idosa), Vinicio Marchioni (Gigi, o do filho doente)
Roteiro Paolo Genovese e Isabella Aguilar
Baseado na série de TV The Booth at the End, escrita por Christopher Kubasik
Fotografia Fabrizio Lucci
Música Maurizio Filardo
Montagem Consuelo Catucci
Casting Barbara Giordani
Produção
Cor, 105 min (1h45)
***
Um comentário para “Oportunistas / The Place”