A Mulher Proibida / Forbidden

2.0 out of 5.0 stars

No terceiro dos quatro filmes que fez sob a direção de Frank Capra, Barbara Stanwyck interpreta a personagem mais improvável, mais incompreensível, mais absurda das gloriosas carreiras de ambos. A Lulu Smith de A Mulher Proibida/Forbidden, de 1932, abre mão de tudo, absolutamente tudo na vida para o bem do homem que ama. Anula todas as vontades, anula-se.

Mais do que uma mulher apaixonada, mais que uma mulher proibida, essa Lulu é uma masoquista. Ou pior ainda: de tanto se anular, vira uma não-pessoa, uma não-mulher.

De repente me ocorre que essa Lulu criada por Capra e Barbara Stanwyck, esses dois grandes artistas, faz lembrar aquele “campônio” de “Coração de mãe”, de Vicente Celestino, uma das mais ridículas letras da música brasileira de todos os tempos, aquela assim: “Disse o campônio à sua amada; ‘Minha idolatrada, diga o que queres. Por ti vou roubar, vou matar, tua ordem espero, por ti não importa matar ou morrer’.”

Lulu não chega a pegar o coração ainda pulsante da mãe, como faz o campônio da letra idiota, mas, tirando isso, faz de tudo pelo homem por quem se apaixona louca, desesperada, perdidamente. O sujeito que desperta essa paixão tão grande quanto idiota é um advogado com ambições politicas, um tal Bob Grover (o papel de Adolphe Menjou).

Lulu, a mulher que vira capacho para ser pisoteada pela vida e pelo seu homem, é especialmente chocante se pensarmos na quantidade de papéis de mulheres fortes, independentes, muitas vezes provocativas, à frente de seu tempo, que a grande atriz interpretou.

Só para ficar nos filmes que o diretor e a atriz fizeram juntos: em A Flor dos Meus Sonhos/Ladies of Leisure (1930), Barbara Stanwyck interpreta Kay, uma “garota de festa” contratada como modelo por um rico artista – e os dois acabam de se apaixonando. Em A Mulher Miraculosa/The Miracle Woman (1932), ela faz Florence, uma jovem que tem excepcionais dons de oratória e conhecimento das Sagradas Escrituras; um malandrão a transforma numa evangelista de grande fama e fortuna, mas usando métodos mentirosos, safados, para atrair seu rebanho; com o tempo, Florence vai se arrependendo por ter se vendido para o Mal.

Depois desses três filmes feitos entre 1930 e 1932, o diretor e a atriz voltariam a se encontrar em 1941: em Adorável Vagabundo/Meet John Doe, Barbara Stanwyck faz Ann Mitchell, uma jornalista talentosa, ambiciosa, que inventa um personagem fictício, o João Ninguém do título original, um típico americano médio inconformado com o estado geral das coisas no país, e em seguida encontra um pobre coitado (o papel de Gary Cooper, que dá o título brasileiro do filme) para personificar a criatura que ela havia inventado. Em Adorável Vagabundo, a mulher faz o homem.

Neste Forbidden, a mulher também faz o homem – mas, para isso, ela se aniquila completamente.

Há uma única rápida referência à Depressão

Essa Lulu Smith interpretada por uma Barbara Stanwyck de 24 aninhos é, quando a ação começa, uma bibliotecária toda certinha, que jamais havia se atrasado para o trabalho. De repente, do nada, resolve partir para uma aventura. Retira do banco todo o dinheiro que havia poupado até então, exatos US$ 1.242,68, para gastar numa viagem, em luxuoso e gigantesco navio, a Havana, “a terra do romance”, conforme promete um cartaz que a câmara do diretor de fotografia Joseph Walker mostra para ela (e para o espectador, é claro).

Dois detalhes antes de seguir em frente. O primeiro é que o IMDb fez as contas: a poupança que Lulu havia feito, US$1.242,68, equivaleria, em valores atualizados para 2015, a US$ 21,500.00. E o segundo, mais interessante e importante: quando Lulu diz para o caixa que quer sacar tudo, zerar a conta, ele pergunta: – “Você não vai investir em ações, não é?”

Era 1932 – o país estava afundado na Grande Depressão, após a quebra da Bolsa de Nova York em 1929. Muitos dos grandes filmes de Frank Capra foram feitos durante a Depressão, e expressam a atmosfera daquela que foi uma das mais terríveis épocas da História dos Estados Unidos. No entanto, essa frase do caixa do banco para Lulu, em referência à quebra da Bolsa, é a única menção que se faz neste Forbidden àquele período negro de desemprego, privação, miséria, fome.

Durante todo o resto do tempo, é como se o país não estivesse afundado naquele negror que parecia sem fim. Mary observou isso logo que o filme terminou: é como se o filme não tivesse sido feito apenas no terceiro ano após a quebra da Bolsa.

Conhecem-se no navio, se apaixonam em Havana

Há alguma graça nas sequências em que Lulu e Bob se conhecem a bordo do grande navio que os leva para “Havana, a terra do romance”. É um trecho do filme, ainda bem no seu início, em que a verve cômica de Frank Capra brilha. Lulu parece ser a única mulher que está sozinha naquele naviozão. Em uma noite lá, a única mulher solitária no restaurante não aguenta mais a tristeza e volta para a cabine antes mesmo de ser servida. Deitado na cama está um sujeito em traje de gala, bastante bebinho. Havia confundido o número de sua própria cabine, 99, com o dela, 66.

Começam a conversar, vão se curtindo.

Em Havana, jogam nos cassinos, jantam em belos restaurantes. E de repente estão cavalgando numa praia deserta.

A sequência em que Lulu e Bob cavalgam numa belíssima praia deserta, à luz do luar, é impressionante – e a mais falada deste filme “menor” da fase de Capra pré Aconteceu Naquela Noite, a comédia romântica de 1934 que ganhou os cinco Oscars das categoriais mais importantes, filme, direção, atriz, ator e roteiro, foi um tremendíssimo sucesso de público e estabeleceu o diretor como um dos maiores de Hollywood e do mundo.

Além de fazer filmes cheios de significado, de calor humano, de odes à solidariedade, à amizade, que transmitiam esperança naqueles tempos tão desesperançados, Francesco Rosario Capra foi um gênio capaz de criar cenas de magnífica beleza plástica, mesmo na fase inicial, com orçamentos bastante limitados.

Foi fundamental para isso o talento de Joseph Walker (1892-1985), diretor de fotografia de quase 150 títulos, entre eles diversos, diversos filmes de Capra, 4 indicações ao Oscar, inclusive Do Mundo Nada se Leva/You Can’t Take it With You (1938), uma das obras-primas do grande realizador.

A beleza da sequência do casal cavalgando na praia à luz da lua é impressionante – mas há ali mais que apenas o estupor visual.

A sequência era mais longa, originalmente. Além das tomadas gerais, em que vemos bem de longe os dois cavalos correndo na praia iluminada pelo luar, havia também tomadas mais próximas, em que era possível ver os rostos de Barbara Stanwyck e Adolphe Menjou. A sequência acabou sofrendo cortes; a que está disponível hoje tanto no YouTube quanto no DVD lançado no Brasil na caixa Frank Capra pela Obras Primas, M.D.R.V., com imagem e som de ótima qualidade, tem apenas as tomadas gerais.

Como bem diz o IMDb na página de Trivia sobre o filme, aquelas tomadas poderiam perfeitamente ter sido feitas com dublês. Não havia necessidade alguma de fazê-las com os atores. No entanto, foram, sim, gravadas com eles – e, num determinado momento lá, Barbara Stanwyck teve uma queda feia do cavalo, que ainda a golpeou. Sofreu ali uma lesão no cóccix que iria causar desconforto ao longo do resto de sua vida. E, diacho, Barbara Stanwyck teve vida longa: morreria em 1990, aos 82 anos de idade.

Lulu, a heroína, só faz besteira na vida

Um homem e uma mulher cavalgam na praia deserta à luz do luar.

Meio século antes de Roberto e Erasmo Carlos, durante aquela fase de canções de motel, assinarem “Cavalgada”, Frank Capra usou a imagem da cavalgada como uma metáfora de trepada.

Foi Mary que me chamou à atenção para a metáfora óbvia. Confesso que não tinha, naquele momento, percebido isso. Estava, creio, pensando em que obviamente Bob era casado, que isso seria revelado logo – e imaginando o que raios Frank Capra estava querendo dizer com aquela história.

Sim, é óbvio. A cena da cavalgada é para mostrar que os dois ianques treparam em Havana, “a terra do romance”. E, sim, é obvio: Bob – conforme se revela quando nossos heróis regressam aos bons e velhos Estados Unidos da América – era casado.

Quando finalmente admite a verdade óbvia para Lulu, ele apresenta aquela desculpa: a mulher dele é inválida. Ficou inválida quando ele irresponsavelmente bateu seu carro – e ele se sente responsável por ela, e não conseguirá nunca deixá-la.

Inválida mesmo é a trama deste filme fraco de um dos maiores realizadores da História do cinema mundial. Veremos depois que Helen, a mulher de Bob (interpretada por Dorothy Peterson), não é inválida coisa alguma. Na primeira sequência em que ela aparece, usa uma bengala – mas caminha bem demais.

A partir daí, Lulu, nossa heroína, só fará besteira na vida.

Sai do emprego, para que não saibam que ela está grávida. Esconde de Bob a gravidez, tem a filha sem poder apresentar nome do pai – uma condição vexaminosa, naquela época. Quando Bob, insistente, persistente, consegue localizá-la, não tem forças para manter-se longe dele. E aí vai adiante perdendo cada vez mais qualquer tipo de dignidade, de qualidade, de vida. Abre mão da filha. Depois chegará a abrir mão das migalhas de amor que restavam para ela – até finalmente cometer um crime pesadíssimo. Tudo para que Bob possa prosseguir sua ascendente carreira política.

“Eu deveria ter ficado na cama”, disse Capra

É uma história absolutamente pré-Código. Seria a partir de 1934 que os estúdios passariam a obedecer firmemente ao Código Hays, o conjunto de leis de autocensura que proibia, entre muitas outras coisas, as relações extraconjugais, como a de Lulu e Bob, e, evidentemente, os filhos de mãe-solteira.

Mas o fato de ser pré-Código não impede que seja uma história furiosamente idiota, que não leva a lugar algum, a nenhuma boa moral, ao contrário da imensa maioria dos filmes do realizador.

E o autor da bobagem é o próprio Capra.

Que eu saiba, Capra não foi o autor de muitas das histórias, dos argumentos de seus filmes. Filmou tramas dos outros, em geral roteirizadas pelos outros.

Aqui, especificamente, revelou-se o autor de uma história lamentável.

Ele mesmo reconheceu isso, e, em sua autobiografia, dedicou a Forbidden apenas uns poucos parágrafos, nos quais se diz arrependido por ter feito o filme. “Eu deveria ter ficado na cama”, escreveu.

O livro The Columbia Story começa o verbete sobre o filme assim:

“Quando Barbara Stanwyck pediu US$ 50.000 para aparecer em Forbidden (depois que Helen Hayes recusou o papel), Harry Cohn se recusou. Stanwyck, por sua vez, se recusou a fazer o filme, e o caso foi parar na Justiça. Cohn venceu – mas capitulou. Stanwyck ganhou mais dinheiro, e o mundo ganhou mais um novelão.”

Soap opera. Novela. Aqui, acho que novelão é a palavra perfeita.

O livro sobre os filmes da Columbia diz então que Frank Capra dirigiu e o roteiro escrito por Jo Swerling pegou emprestado alguns pontos do romance Back Street, de Fannie Hurst. Em seguida ele faz uma longa sinopse do dramalhão.

Back Street, o romance dramalhão de Fannie Hurst (1889-1968), havia sido lançado em 1931. Seria filmado três vezes: em 1932, com Irene Dunne e John Boles, em 1941, com Margaret Sullavan e Charles Boyer, e em 1961, com Susan Hayward e John Gavin. Todos eles mantiveram o título do livro, Back Street. No Brasil a primeira versão teve o título alternativo de Marido Alheio; a segunda foi Corações Humanos e a terceira, que vi quando adolescente bem garoto, aqui se chamou Esquina do Pecado.) Tem, de fato, essa coisa de um casal que se apaixona, e trepa… para depois a mulher descobrir que ele é casado.

Depois de contar bastante da trama, o livro da Columbia diz: “Um filme para fazer chorar e ensopar três lenços, ele é salvo por Barbara Stanwyck, com sua atuação tocante, e pela fotografia sensacional de Joseph Walker. Foi o filme mais fraco de Capra como diretor, embora uma cena de amor entre Stanwyck e Menjou, usando máscaras, fosse ao mesmo tempo tocante e efetiva.”

Quando o realizador é grande, mesmo um filme menor tem seus momentos. Essa sequência a que The Columbia Story se refere é de fato marcante. É logo depois que os dois voltam de Havana. Estão vivendo aquele momento mágico de começo de paixão. Bob surge na casa de Lulu no Dia das Bruxas, usando uma grande máscara de uma figura nariguda; Lulu havia preparado um jantar especial para os dois. De repente, à menção da palavra “casamento!”, Bob desmorona – e é aí que conta para ela que é casado.

“Nem parece lacrimoso. Parece apenas meio louco.”

O Guide des Films de Jean Tulard dá 2 estrelas em 4 a Amour Défendu, amor proibido: “Este melodrama, um tanto lacrimoso, é dominado pela dupla Stanwyck-Menjou, de quem não se deixa de apreciar o imenso talento. Eles sustentam um roteiro um pouco pesado, mas que nos sensibiliza pela comicidade de seu encontro, por sua sinceridade, assim como por algumas belas cenas feitas no estilo dos primeiros filmes sonoros do realizador. A notar uma das primeiras aparições de Ralph Bellamy.”

Pauline Kael fez um verbete longo sobre Forbidden: “Filmes sobre mulheres que sacrificam tudo pelos amantes casados ou bebês ilegítimos davam grandes bilheterias nas décadas de 20 e 30, mas em geral eram fabricados por mestres da arte do dramalhão, como em Back Street, Madame X, a Ré Misteriosa, Stella Dallas, Mãe Redentora, O Pecado de Madelon Claudet. O diretor, Frank Capra, escreveu ele próprio esta história, e simplesmente não leva jeito. A heroína é de uma abnegação incrível num período de 20 anos, e apesar da surpreendente atuação singela e direta de Barbara Stanwyck, a maior parte do filme carece de vida.”

E ela conclui sua apreciação assim: “Capra não se demora nas cenas tristes; o filme segue em frente com tanta eficiência que nem parece lacrimoso. Parece apenas meio louco.”

Sou obrigado a concordar com Dame Kael. Parece meio louco. E a concordar com o próprio Capra: ele devia ter ficado na cama no dia em que resolveu fazer este filme.

Anotação em maio de 2020

A Mulher Proibida/Forbidden

De Frank Capra, EUA, 1932.

Com Barbara Stanwyck  (Lulu Smith), Adolphe Menjou (Robert Grover), Ralph Bellamy (Al Holland)

e Dorothy Peterson (Helen, a mulher de Robert), Thomas Jefferson (Wilkinson), Myrna Fresholt (Roberta bebê), Charlotte Henry (Roberta aos 8 anos), Oliver Eckhardt (Briggs),

História de Frank Capra

Adaptação Jo Swerling

Fotografia Joseph Walker

Montagem Maurice Wright

Produção Harry Cohn, Columbia Pictures. DVD Obras Primas, M.D.R.V.

P&B, 85 min

**

Título na França: Amour Défendu. Une Vie Secrète. Em Portugal: O Seu Grande Amor.

Disponível em DVD.

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