O Orgulho / Le Brio

4.0 out of 5.0 stars

O Orgulho, no original Le Brio (2017) é antes de tudo, para começo de conversa, um ato de coragem. Para seu quinto longa-metragem como diretor, Yvan Attal – ator consagrado, experiente – escolheu temas difíceis, polêmicos demais: o racismo na França de hoje e o politicamente correto, o dever, a obrigação de ser politicamente correto no ambiente universitário.

Bem no início da história que Yvan Attal criou, com a ajuda de várias outras cabeças, um conceituado – mas polêmico – professor universitário em Paris agride verbalmente uma jovem de origem árabe, muçulmana, diante de centenas de estudantes (e de seus celulares que fotografam e filmam tudo).

É um calhorda, repugnante show de racismo.

Para não ser expulso da faculdade, no entanto, o professor passa a treinar a estudante que ele agrediu para que ela participe de concursos de retórica com outros universitários de todas as regiões da França.

E aí? Pode uma série de boas ações absolver o professor por um ato racista, misógino, classista, supremacista?

Discutir essas questões hoje, no meio desse ambiente em que tudo, absolutamente tudo, cada gesto, cada palavra, tem que ser aprovado pela patrulha do politicamente correto é tão arriscado quando pisar sobre o fio da navalha.

Yvan Attal, cineasta francês nascido em Tel Aviv (em 1965), não teve medo: caminhou no fio da navalha. Na corda bamba.

Fez, com a ajuda de quatro colaboradores na redação do roteiro e dos diálogos, e das belas interpretações de Daniel Auteuil e Camélia Jordana, uma beleza de filme.

Uma beleza de filme que consegue deixar a preocupação com a rigidez do politicamente correto de lado e é uma maravilhosa ode à inteligência, ao estudo, à aprendizagem, ao aperfeiçoamento, à colaboração entre os díspares, à convivência harmoniosa entre os contrários.

Os amigos de Neïla a chamam de “francesinha perfeita”

O filme começa de uma forma tipicamente francesa, de gente intelectualizada francesa, aquela coisa rempli de soi même do povo que se acha o mais civilizado do mundo: apresenta rápidos trechos documentais – imagens de televisão, ou de cinejornais – com grandes personalidades falando da importância das palavras.

O antropólogo e filósofo Claude Lévi-Strauss. O escritor Romain Gary. O grande compositor Jacques Brel. O compositor, cantor e showman Serge Gainsbourg.

Gainsbourg faz aquela coisa que os franceses adoram – épater les bourgeois. Primeiro ele filosofa: “A palavras são o veículo da idéia. A idéia não é o veículo das palavras”. Depois recita, com uma cara de safado, a quadrinha: “Le champagne – brût. Les femmes – putes”.

Eu não sabia, mas o diretor Yvan Attal tem apenas um grau de separação com relação a Serge Gainsbourg: é (ou foi) casado com a filha dele, a ótima Charlotte Gainsbourg, com quem teve três filhos.

São bem rápidas essas apresentações de cenas gravadas com as quatro personalidades da cultura francesa. E então vemos uma jovem morena, cabelos longos, fartos, vestindo calça de moleton, camiseta, agasalho, tênis, ouvindo música em grandes fones de ouvido, num metrô que parte, céu ainda escuro, da periferia rumo à região central de Paris.

Veremos depois que Neïla Salah (Camélia Jordana) mora num subúrbio bem distante, Créteil – distante, mas não miserável, sequer muito pobre. É classe média baixa. O filme não se preocupa em dar muitas explicações sobre suas origens, mas tudo indica que a mãe de Neïla (Nozha Khouadra) sempre trabalhou duro na vida, e conseguiu criar a filha – sem ajuda do marido, que nunca existiu – em condições dignas: moram as duas num apartamento bastante razoável, e a moça pôde estudar. Os amigos, vizinhos – todos descendentes de muçulmanos – a chamam de “francesinha perfeita”.

Dezenas de celulares filmam a agressão a Neïla

Naquela manhã mostrada na primeira sequência do filme, após o intróito com cenas documentais, ela está indo para seu primeiro dia de aula no curso de Direito na Universidade Paris II-Panthéon-Assas.

Chega atrasada ao imenso anfiteatro, com capacidade para umas 200 pessoas, enquanto o professor Pierre Mazard fala àquela multidão de calouros sobre a História do Direito.

A câmara de Yvan Attal e do diretor de fotografia Rémy Chevrin não mostra o professor Mazard (o papel do grande Daniel Auteuil) em close-up, sequer em plano americano: nós o vemos de corpo inteiro, de longe, como os alunos o vêem.

E então o professor Mazard resolve pegar no pé na moça obviamente filha de imigrantes muçulmanos, não vestida apropriadamente para frequentar as aulas daquela universidade que, veremos, é mesmo tida como “de direita”, para ricos.

Neïla ainda não conseguiu um lugar para se sentar quando o professor começa:

– “Senhorita, por favor. Você é…”

Neïla, pega de surpresa: – “Uma aluna do primeiro ano.”

Mazard: – “Você não entendeu. Perguntei seu nome.”

Neïla, de pé, no meio da escada central do anfiteatro: – “Neïla Salah”.

Mazard: – “E seu prenome?”

Neïla, surpresa, sim, mas calejada pela vida para não parecer servil, jamais, responde com firmeza: – “Prenome Neïla, sobrenome Salah. Ficou claro?”

Ouve-se um murmúrio de comentários de surpresa e de aprovação à novata que ousa enfrentar o mestre. Aplausos.

Mazard: – “Acho interessante. Você reage agressivamente perante a incompreensão. Julgando por seu sentido de civilidade, pontualidade e elegância, vejo que decidiu, no primeiro dia da universidade, honrar a instituição e seus professores. Isto é uma sala de aula, não de educação física, e você está atrasada.”

Neïla: – “Sim.”

Mazard: – “Sim, senhor. (Pausa.) Você chega no meio da aula e não tem nada a dizer?”

Neïla: – “Desculpe.”

Mazard: – “Isso é uma ordem?”

Neïla: – “O quê?”

Mazard (imitando a voz dela) – “O quê?

Neïla: – “Não estou entendendo.”

Mazard: – “Percebo que você não está entendendo. Em francês, dizemos: ‘Sinto muito pelo atraso’.”

Neïla: – “Está falando sério?”

Mazard: – “Se eu estou falando sério?”

Neïla: – “Eu me atrasei 5 minutos. Por que está pegando no meu pé?”

Mazard: – “E lá vem o bom e velho complexo de perseguição.”

A discussão está sendo filmada em dezenas e dezenas de celulares.

Ouvem-se diversas vozes falando baixo, protestando. Alguns alunos falam alto:

– “Isso é racismo!”

– “O senhor não tem esse direito!”

A França dá muita importância aos debate entre universitários

Grégoire Viviani (Nicolas Vaude), o jovem que é superior hierárquico do professor Mazard, conversa com ele em seu gabinete.

Não entendi exatamente a função desse Grégoire; é chamado de “presidente” da universidade, mas ele mesmo faz referência ao reitor, a entidade máxima. Imagino que seja algo como o coordenador da cadeira do professor Mazard.

Fica muito evidente que Mazard tem nome, fama, reputação, certamente títulos, e Grégoire o admira, o respeita. Mas, naquela conversa, logo após a sequência da confrontação com a caloura de origem árabe, diz para Mazard que daquela vez ele exagerou. Tipo: pô, meu, extrapolou feio. E a gente fazendo o maior esforço para tirar da universidade a fama de direitista, elitista.

Daquela vez não tem jeito, Grégoire diz para Mazard: o caso irá para a comissão de ética da faculdade.

E então ele faz a sugestão: Mazard poderia, para limpar a barra, treinar aquela moça para o concurso de retórica. Treiná-la bem, a ponto de ela chegar ao menos a uma segunda rodada.

Le Brio está aí com cerca de 15 minutos, talvez 20, de seus 95 de duração.

Yvan Attal e seus colaboradores na criação do roteiro e dos diálogos, e mais as belas atuações de Daniel Auteil e Camélia Jordana, já colocaram as fichas na mesa. A base da trama, do filme, já está toda aí.

Que eu saiba, não temos no Brasil nada parecido com essa coisa de concursos de retórica (em francês, a palavra usada é “éloquence”, eloquência). Pelo que o filme mostra, é algo muito importante na França. Há rodadas em todas as cidades importantes em que há faculdades; todo o ambiente universitário do país dá atenção ao concurso. Como numa Copa do Mundo, a coisa vai se afunilando; há oitavas de final, quartas de final, semifinais.

Um belo filme americano – também sobre racismo – mostra debates semelhantes em faculdades dos Estados Unidos. O grande Denzel Washington foi o realizador e o ator principal: O Grande Desafio/The Great Debaters (2007), foi seu segundo filme como diretor.

O filme americano tem alguma semelhança com este aqui. Os dois demonstram, com brilhantismo, que saber debater, saber usar as palavras, é uma maravilhosa arma para combater o racismo, o supremacismo.

E agora, neste momento em que escrevi os dois parágrafos acima, me lembrei de uma maravilhosa crônica escrita por Henrique Pongetti na revista Manchete, no início dos anos 1960, na época em que Sidney Poitier ganhou o Oscar de melhor ator – por Uma Voz nas Sombras/Lillies of the Field (1963), de Ralph Nelson. O primeiro ator de pele negra a ganhar o prêmio. Eu era garoto, entrando na adolescência, mas jamais esqueci o texto. Dizia que fulano de tal, um grande lutador de boxe americano que havia sido campeão mundial (seria Joe Louis? acho que sim), seguramente estaria com uma certa inveja de Sidney Poitier, porque ele havia derrubado um preconceito sem ter que usar os punhos.

Pessoas antagônicas que aprendem uma com a outra

Yvan Attal, seus co-roteristas e mais os dois belos atores criaram dois tipos fascinantes.

A Neïla Salah que Camélia Jordana interpreta não é perfeitinha – assim como o professor Mazard não é um absoluto troglodita, um Bolsonaro (esse nome ainda vai virar adjetivo).

Neïla não é uma moça de modos suaves, polidos. Para não parecer servil, tornou-se um tanto arrogante. Como é esperta, inteligente, e também aplicada, esforçada, ficou talvez mais segura de si do que o normal – é um tanto arrogante, tosca, bruta.

Nada absurdo, nada horroroso – mas também nada perfeitinho, nada róseo demais, a mocinha maravilhosa, certinha.

O professor Mazard, por sua vez, não é exatamente um racista filho da mãe, um supremacista, um sujeito que odeia os não-brancos. Provavelmente nem vota na fascistóide Frente Nacional primeiro de Jean-Marie Le Pen, depois de Marine Le Pen. É – como diz, com toda propriedade, a própria Neïla, depois de conhecê-lo bem – um sujeito que não está preparado para viver nos dias de hoje. É um ser do século XIX perdido no meio do maravilhoso mundo novo do século XXI. É um solitário, incapaz de amar, de ter amigos, que reage contra o mundo com uma agressividade idiota.

De um lado, um intelectual pomposo. Do outro, uma descendente de muçulmanos de nariz arrebitado.

O filme é sobre o encontro dessas duas pessoas díspares, antagônicas, quase antípodas – e a maravilha que é duas pessoas díspares, antagônicas, quase antípodas se aproximarem, aprenderem uma com a outra, se aprimorarem graças à outra.

O cinema – essa arte que, como dizia o grande Roger Ebert, nos torna pessoas melhores – já mostrou vários casos assim.

O indiano imigrante, instrutor de direção, e a wasp rica, em Assumindo a Direção (2014), da catalã Isabel Coixet.

O pintor rico, famoso (por coincidência interpretado pelo mesmo Daniel Auteuil) e o seu antigo colega de escola, um jardineiro, em Conversas com Meu Jardineiro (2012), de Jean Becker.

O homem inculto, meio bronco, e a nonagenária educada, culta, em Minhas Tardes Com Margueritte (2010), também de Jean Becker.

O artista rico, de algum renome, já velho, absolutamente sem vontade alguma de continuar vivendo, e uma garotinha de 15 anos, bonita, cheia de energia, mas vivendo em um lar despedaçado, com um enteado canalha, em Sejam Muito Bem-Vindos (2012), mais uma vez de Jean Becker.

O professor universitário americano cinzento, solitário, um tanto ríspido, e o casal de imigrantes, ele sírio, ela senegalesa, que acontece de irromper na vida dele, em O Visitante (2007), de Tom McCarthy.

Há muitos outros. Todos eles belos filmes.

Ganharam agora a companhia deste esplendoroso O Orgulho.

O Orgulho mostra que Roger Ebert tinha razão: o cinema nos torna pessoas melhores.

O cinema, na verdade, é melhor que a vida.

Anotação em outubro de 2018

O Orgulho/Le Brio

De Yvan Attal, França-Bélgica, 2017

Daniel Auteuil (Pierre Mazard), Camélia Jordana (Neïla Salah)

e Yasin Houicha (Mounir, o namorado de Neïla), Nozha Khouadra (a mãe de Neïla), Nicolas Vaude (Grégoire Viviani, o presidente da Universidade), Jean-Baptiste Lafarge (Benjamin de Segonzac), Virgil Leclaire (Keufran), Zohra Benali (a avó de Neïla), Damien Zanoli (Jean Proutot), Jean-Philippe Puymartin (o presidente dos concursos)

e, em trechos de cinejornais e programas de TV, Jacques Brel, Serge Gainsbourg. Romain Gary, Claude Lévi-Strauss, François Mitterrand

Roteiro Victor Saint Macary e Yaël Langmann & Yvan Attal & Noé Debré

Idéia original Victor Saint Macary

Adaptação e diálogos Yvan Attal, Noé Debré, Victor Saint Macary, Yaël Langmann. Com a colaboração de Bryan Marciano

Fotografia Rémy Chevrin

Música Michael Brook

Montagem Célia Lafitdupont

Casting Gigi Akoka

Produção Chapter 2, Moonshaker, Pathé, France 2 Cinéma, CN6 Productions

Cor, 1h35 (95 min)

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