Nosso Fiel Traidor / Our Kind of Traitor

3.0 out of 5.0 stars

Our Kind of Traitor, no Brasil Nosso Fiel Traidor, co-produção Inglaterra-França de 2016, é um filme inquietante, perturbador – como em geral são todos os baseados em histórias de John le Carré. Traça um retrato pavoroso, podre, da Rússia pós fim do comunismo – mas não deixa barato com o seu próprio país, a Inglaterra, o Reino Unido.

É um filme sobre o imenso poder das máfias russas – e sobre como elas e sua dinheirama suja gigantesca, inesgotável, são capazes de corromper altas autoridades do Executivo e do Legislativo da mais tradicional, sólida e estável democracia do mundo.

Também como na maioria das histórias criadas pelo grande escritor, são expostas as brigas, as intrigas entre os diversos órgãos do governo britânico, em especial, claro, na área de segurança, inteligência, espionagem. Como acontece desde O Espião Que Veio do Frio (o livro é de 1963, o filme, de 1965), desde Chamada para um Morto/The Deadly Affair (livro de 1961, filme de 1967), há os agentes sérios, dedicados, às vezes abertamente workaholics, que trabalham na linha de frente, nas piores condições, e, de outro lado, os chefes, burocratas que não saem dos gabinetes, que fazem o jogo dos interesses políticos deste ou daquele grupo, que se dedicam à politicagem.

David John Moore Cornwell, como foi registrado, em 1931, sabe muito bem do que fala. É sempre bom lembrar que, durante os anos 1950 e 1960, trabalhou tanto no MI5 quanto no MI6. O primeiro é o Security Service, ou Military Intelligence, Section 5, a agência que cuida de contra-inteligência e segurança doméstica. O segundo é o Secret Intelligente Service, a agência que cuida de recolher no exterior informações importantes para a segurança do Reino Unido – algo bem próximo do que é nos Estados Unidos a CIA, a agência central de inteligência.

Our Kind of Traitor foi o 22º romance de John le Carré. Foi lançado em 2010 na Grã-Bretanha e em 2012 no Brasil, pela Record. O veterano escritor foi produtor executivo do filme, e os produtores Simon Cornwell e Stephen Cornwell são filhos dele.

O roteiro é de Hossein Amini e a direção de Susanna White.

Hossein Amini, nascido no Irã e radicado desde criança na Inglaterra, foi o autor do roteiro de Paixão Proibida/Jude (1996), uma adaptação do maravilhoso Judas, o Obscuro de Thomas Hardy, dirigida pelo ótimo Michael Winterbottom, e do interessante Conspiração Xangai/Shangai (2010).

A diretora Susanna Winter, que eu desconhecia completamente, começou a carreira em 1985; tem larga experiência em séries de TV – dirigiu adaptações de grandes clássicos, como Bleak House, de Charles Dickens, e Jane Eyre, de Charlotte Brontë, e já recebeu duas indicações ao Emmy de melhor direção.

Bem no início, uma família é executada

O filme começa com algumas sequências que só serão explicadas para o espectador bem mais adiante. Enquanto vão rolando, bem calmamente, os créditos iniciais, vemos um bailarino (Carlos Acosta) se apresentando num belíssimo teatro clássico. São tomadas magistrais; parece um sonho – o bailarino como que voa, em câmara lenta. Numa ação mostrada paralelamente, um homem de meia idade e cabelos longos entrega um envelope para um homem mais jovem, com casaco sobre o smoking e chapéu de pele para proteger do frio intenso. Volta o bailarino. Voltam os dois homens, que se abraçam, com expressões graves, pesadas. Em um camarote no teatro, vemos uma linda jovem acompanhada de uma senhora mais velha, evidentemente a mãe dela. Em um grande salão que parece de um palácio, um grupo de homens vestidos de smoking senta-se ao redor de uma longa mesa; o homem mais jovem das tomadas anteriores está assinando uma série de documentos, sob o olhar de um outro homem jovem, que evidentemente é o sujeito mais importante daquela reunião. Termina a apresentação do balé. Surge na tela a informação: “Moscou”. O rapaz importante – veremos que ele é conhecido como O Príncipe (Grigoriy Dobrygin, na foto acima) faz um pequeno discurso a respeito de uma arma, um revólver que parece uma jóia e pertenceu a seu pai. Ele entrega a arma, dentro de uma bela caixa, ao homem que acabava de assinar os diversos papéis – veremos que ele se chama Misha (Rasha Bukvic). Todos saem da sala, O Príncipe e Misha à frente, os demais homens atrás deles. Atravessam outros salões, e aproximam-se das duas mulheres que havíamos visto no camarote do teatro; Misha as apresenta para O Príncipe: Olga, a esposa, e Anna, a filha (respectivamente Dolya Gavanski e Maria Fomina).

Os créditos ainda estão rolando, bem suavemente.

Um maravilhoso travelling com a câmara num helicóptero ou um drone mostra um campo coberto de neve. Em um carro solitário numa estrada que corta o campo estão Misha, a mulher e a filha. Olga fala ao celular com as filhinhas mais novas, gêmeas, depois passa o telefone para que Anna converse com as irmãs. Um pouco adiante na estrada, um homem vestido como policial pára o carro. Parece que vai pedir os documentos, mas ergue uma pequena metralhadora e executa Misha e Olga. Volta-se para o banco de trás e olha para Anna, que abre a porta e sai correndo pelo campo coberto de neve espessa. O homem primeiro pega a caixa com o revólver-jóia que O Príncipe havia dado para Misha e em seguida vai atrás da moça, carregando seu casaco de pele. É capaz de dizer, com um evidente sadismo: – “Você esqueceu seu casaco” – antes de atirar.

A câmara mostra Anna deitada na neve, os belos olhos claros abertos, um filete de sangue escorrendo na neve.

É sobre essa imagem que terminam os créditos iniciais, com a informação “Directed by Susanna White”.

Susanna White dirige sem qualquer toque especialmente feminino. Martin Scorsese poderia perfeitamente assinar a abertura bela – e violenta, apavorante – deste filme.

Estamos com 6 minutos dos 108 de Our Kind of Traitor.

Stellan Skarsgård interpreta o russo Dima maravilhosamente

Corta, e um letreiro, como aquele que havia indicado Moscou, mostra que estamos em Marrakesh. Na cama de um quarto de hotel de Marrakesh, Perry (o papel de Ewan McGregor) está fazendo carinho em sua mulher, Gail (Naomie Harris). Mas Gail não está com vontade; ela se levanta, se veste.

Diálogos vão nos demonstrar, mais tarde, que Perry e Gail, juntos havia dez anos, tiveram uma crise no casamento. Muito provavelmente Perry, professor de Literatura numa universidade de Londres, comeu uma aluna, Gail descobriu. A viagem ao Marrocos era uma tentativa de superarem a crise, voltarem a ficar bem – mas Gail ainda estava muito magoada.

Um detalhe: no livro, o casal viaja para Antigua, no Caribe. Pelo que me lembro (li o livro em 2012), o roteirista Hossein Amini foi bastante fiel ao original – até porque o autor John le Carré, como já foi dito, foi produtor executivo do filme. Mas, por algum motivo, resolveu-se mudar de Antígua para o Marrocos o lugar para onde Perry e Gail viajam – e onde ficam conhecendo Dima, aquele homem de meia idade, cabelos longos, que havíamos visto bem rapidamente entregando um envelope para Misha.

Dima é interpretado (e muito bem interpretado) por Stellan Skarsgård (na foto abaixo), o grande ator sueco de, entre tantos outros, Mamma Mia! (2008), Amistad (1997), Gênio Indomável (1997) e da minissérie Chernobyl (2019).

É uma interessante escolha. Para diversos papéis de russos – O Príncipe, Misha, Olga, Anna – foram escolhidos atores russos, que falam entre si em russo. Produção caprichada, o filme foi rodado nos locais em que a ação se passa: em Londres, em Marrakesh, em Berna, em Paris. A exceção foi a Rússia: as cenas passadas na Rússia não foram filmadas lá, e sim na vizinha Finlândia.

Então, numa produção assim, de ótimo nível, poderiam ter escolhido um ator russo para o papel do russo Dima. Mas a verdade é que o filme não perdeu nada com isso. Até ao contrário: de fato, Stellan Skarsgård está excelente no papel.

Aproveito para notar um outro detalhe: foi também uma decisão interessante dos realizadores do filme terem escolhido Naomie Harris, a atriz de 007 – Operação Skyfall (2012), Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016) e Beleza Oculta (2016), para o papel de Gail. Pelo que me lembro, no livro Gail não é negra. Seguramente os realizadores quiseram realçar a existência, na Inglaterra de hoje, de casamentos de pessoas com cores de pele diferentes – o que é uma coisa maravilhosa, abençoada.

Dima quer revelar segredos de uma máfia russa

Perry e Gail se encontram com Dima num restaurante chique, carésimo de Marrakesh. Gail é uma advogada muito bem sucedida e Perry é professor universitário; são classe média, e não ricos, de maneira alguma. Fazem uma extravagância escolhendo aquele restaurante – e Perry olha bastante assustado os preços dos vinhos na carta.

Dima está numa mesa próxima, junto com um grupo de russos que falam alto e cantam e bebem como se o lugar fosse um boteco vagabundo de Moscou.

Até aqui relatei muito detalhadamente os eventos, e não vejo problema nisso, porque são apenas os momentos iniciais do filme; agora vou dar uma acelerada.

Dima, sujeito expansivo, falastrão, envolvente, carismático, e do tipo que não admite uma resposta negativa quando faz convites, envolve o casal inglês de maneira avassaladora – e não o larga. No segundo ou terceiro dia de convivência intensa, em meio a uma biliardária festa para o aniversário de sua filha Natasha (Alicia von Rittberg), ele abre o jogo para um estupefato Perry. Conta que controla o dinheiro para um grande vory – que ele mesmo define como uma espécie de máfia, mas com honra:

– “Eu tinha um amigo, Misha, que trabalhava para mim. Quando o vory virou internacional, eles nos mandaram para a Europa. Nós lavamos dinheiro, fizemos todos ficarem muito ricos. Mas isso foi com nosso velho Príncipe. Ele era um homem de honra, como eu, como Misha. Mas agora o filho dele é o novo Príncipe, e é o traidor dos traidores. Ele vendeu o vory ao Estado; fez um acordo com o Kremlim. Quando a máfia limpa a sua ficha, ela se torna legal e todos ganham dinheiro.”

Conta que as duas gêmeas que estão ali vivendo com ele são filhas de Misha:

– “O novo Príncipe convidou Misha, sua esposa e sua filha mais velha para irem visitá-lo em Moscou, fez com que ele assinasse as contas que controlava, e então mandou matá-los. Eu sou como Misha. Sou uma ameaça ao Príncipe. Sou uma ameaça ao Kremlim. Eu sei de onde vem o dinheiro. Eles vão me matar, e vão matar minha família também, se você não me ajudar.”

Estupefato, atônito, sem compreender absolutamente nada daquilo, Perry pergunta o que ele pode fazer por Dima – e o operador financeiro da máfia russa, que se define como o maior lavador de dinheiro do planeta, diz que Perry deve entregar ao MI6 um pen-drive, com montanhas de informações sobre as operações financeiras do grupo. Em troca, ele quer asilo para sua família e para ele mesmo; uma vez em solo britânico, revelaria muito mais.

Estamos com 25 minutos de filme.

Um filme inquietante, perturbador, e muito bom

De volta à Inglaterra, Perry e o espectador ficarão conhecendo o outro personagem central da história, o agente Hector do M16, um sujeito absolutamente dedicado ao trabalho. Hector descobrirá que um ex-chefe seu, que depois enveredou pela política e tornou-se membro do Parlamento, um tal Aubrey Longrigg, está envolvido no esquema de lavagem de dinheiro do novo Príncipe. Como esse Longrigg (Jeremy Northam, num papel importante mas que aparece muito pouco tempo na tela) é o maior desafeto que tem na vida, Hector passará a ficar obcecado com o assunto, e fará tudo – dentro e fora do que permitem os códigos do governo – para fazer com Dima obtenha o asilo e conte tudo o que sabe.

Hector é interpretado por Damian Lewis (na foto abaixo), o bom ator inglês que interpretou o sargento Nicholas Brody na série Homeland.

É um belo filme. Inquietante, perturbador, sim, e muito bom – em parte até por isso mesmo.

A trama é fascinante – mas talvez enrolada demais. Uma trama sobre crimes financeiros, lavagem de dinheiro, seguramente é menos atraente do que aquela coisa mais simples dos tempos da Guerra Fria, o “Mundo Livre” contra a “Cortina de Ferro”. Isso seguramente deve ajudar a explicar por que o filme foi um fracasso na bilheteria – rendeu, em todo o mundo, cerca US$ 10 milhões, segundo o site especializado Box Office Mojo.

Sem dúvida alguma o roteirista Hossein Amini fez um excelente trabalho ao adaptar o livro de John Le Carré para o cinema. Quando li o livro, já quase sete anos atrás, não me encantei muito com ele. Anotei que o achei pouco interessante, pouco empolgante, pouco envolvente. “Sobretudo – escrevi –, ele insiste muito naquele retrato da coisa cinzenta que é o Serviço Secreto, as lutas internas dentro do Serviço e do Serviço com o resto da burocracia governamental.”

Não me lembrava de ter tido essa avaliação negativa do livro. Na verdade, não me lembrava, quando começamos a ver o filme, de ter lido o romance de título idêntico! Só quando o casal de ingleses é envolvido por aquele russo impressionante, que gasta fortunas de dinheiro sem nem piscar, foi que caiu a ficha de que sim, eu conhecia a história. Assim que o filme acabou fui atrás das anotações que faço quando termino de ler um livro, e achei tudo lá. É que sempre digo: o provérbio latino “verba volant, scripta manent” poderia ser traduzido como “se não anotou, dançou”

Interessante, isso: não achei o livro empolgante, envolvente – mas gostei muito da trama do filme! Que loucura!

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Anotação em fevereiro de 2019

Nosso Fiel Traidor/Our Kind of Traitor

De Susanna White, Inglaterra-França, 2016

Com Ewan McGregor (Perry), Stellan Skarsgård (Dima), Damian Lewis (Hector, o agente do MI6), Naomie Harris (Gail Perkins, a mulher de Perry), Jeremy Northam (Aubrey Longrigg, o ex-chefe no MI6), Mark Gatiss Billy (Matlock, o funcionário do Ministério), Khalid Abdalla (Luke, o colega de Perry), Saskia Reeves (Tamara, a mulher de Dima), Alicia von Rittberg (Natasha, a filha mais velha de Dima), Alec Utgoff (Niki), Mark Stanley (Ollie), Grigoriy Dobrygin (o Príncipe), Marek Oravec (Andrei), Velibor Topic (Emilio Del Oro), Jana Perez (Maria, a moça na festa), Carlos Acosta (o bailarino da abertura), Rasha Bukvic (Misha), Dolya Gavanski (Olga, a mulher de Misha), Maria Fomina (Anna, a filha de Misha)

Roteiro Hossein Amini

Baseado no romance de John le Carré

Fotografia Anthony Dod Mantle

Música Marcelo Zarvos

Montagem Lucia Zucchetti e Tariq Anwar

Desenho de produção Sarah Greenwood

Casting Lucy Bevan

Produçao The Ink Factory, Film 4, StudioCanal, Anton Capital Entertainment, Amazon Prime Video, Potboiler Productions.

Cor, 108 min (1h48)

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