Jardim do Pecado/Garden of Evil, que Henry Hathaway lançou em 1954, é um western de produção A, com diversos elementos interessantes, de qualidade, de valor. Pena que, na soma de tudo, no conjunto da obra, não chegue a ser um bom filme.
Um curioso caso em que as partes são melhores que o todo. Porque as partes são de fato boas, como pretendo indicar aqui.
* O diretor e o elenco.
Henry Hathaway (1898-1985|) era um daqueles diretores seguros, firmes, que trafegava com a maior naturalidade por todos os gêneros – como Howard Hawks e John Huston. Entre 1950 e 1955 – só para pegar o período em que este Jardim do Pecado foi feito –, Hathaway dirigiu drama de guerra (A Raposa do Deserto), comédia de guerra (Agora Estamos na Marinha), aventura capa-e-espada (O Príncipe Valente), drama policial (Torrentes de Paixão), policial noir (Missão Perigosa em Trieste), drama sobre automobilismo (Caminhos Sem Volta), aventura de época (A Rosa Negra).
E, sim, dirigiu bons westerns. É dele, por exemplo, Bravura Indômita/True Grit (1969), com John Wayne, que os irmãos Coen refilmariam em 2010.
Jean Tulard diz dele em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores: “Os historiadores do cinema se recusam muitas vezes a colocá-lo no panteão dos grandes hollywoodianos. Sem raxão. Não apenas começou aos dez anos de idade, como ator em filmes de Allan Dwan, como assinou um número considerável de obras importantes.”
Os três principais papéis foram para Gary Cooper, Susan Hayward e Richard Widmark. Os três dispensam qualquer tipo de apresentação, é claro, mas só gostaria de lembrar que Susan Hayward, bela e maravilhosa atriz de carreira curta (morreu de câncer com apenas 57 anos, em 1975), cinco indicações ao Oscar e vencedora em uma delas, também fez de tudo – e este aqui não foi seu único western. Ela estrelou também Paixão Selvagem/Canyon Passage (1946), O Correio do Inferno/Rawhide (1951), Marcados pela Vingança/The Revengers (1972).
A equipe de casting era tão competente – ou sortuda, ou as duas coisas – que, para interpretar a cantora de cantina que aparece na longa sequência fundamental do início do filme, a escolhida foi Rita Moreno. Sim, Rita Moreno, a porto-riquenha que ganhou o Oscar de atriz coadjuvante por sua maravilhosa interpretação de Anita em West Side Story (1961) e tem uma filmografia de 150 títulos.
Cenários esplendorosos, belíssima fotografia
* A fotografia.
Merecia samba: Jardim do Pecado, teu cenário é uma beleza.
As paisagens que a produção encontrou para que nela cavalgassem os personagens do filme são de uma beleza estonteante, literalmente de tirar o fôlego. São montanhas altíssimas, belíssimas. Despenhadeiros profundos. Florestas quase tão densas quanto as tropicais.
Eram os primeiros anos da tela ampla, comprida, retangular, com que Hollywood tentava fazer frente à grande rival que acabava de chegar com tudo, a televisão. Contra a tela pequena, quase quadrada e à época preto-e-branco da TV, os estúdios investiam na tela grande e nas cores.
O CinemaScope, como se chamava o formato de tela patenteado pela 20th Century Fox (a Paramount usava o nome VistaVision, por exemplo), não era nada apropriado para dramas íntimos, histórias de família, histórias de amor. Mas era perfeito para filmes de planos gerais – épicos baseados em histórias bíblicas, filmes de guerra, westerns.
O CinemaScope, a tela grande, que hoje chamamos de widescreen, depois que os aparelhos de TV seguiram o cinema e trocaram o quase quadrado pelo retangular, parece ter sido feito para o western e suas grandes paisagens.
A fotografia de Jardim do Pecado – assinada por Milton Krasner e Jorge Stahl Jr. – é absolutamente espetacular.
Há um cuidado extremo em cada enquadramento de plano geral em que, lá num pedacinho da tela, cavalgam os personagens da história.
Coisa para deixar cinéfilo babando.
O filme foi totalmente rodado no México. Parte foi em estúdio na Cidade do México, e as externas foram feitas no Estado de Michoacán, a Oeste da capital do país. Aprendo agora na Wikipedia que “a topogafia de Michoacán é uma das mais acidentadas de México e faz parte do eixo neovulcânico, uma região com muitos vulcões”, com montanhas que chegam 3.840 de altitude.
* A trilha sonora.
Este aqui foi o único western que teve o privilégio de contar com uma trilha sonora escrita por Bernard Herrmann, o maravilhoso maestro que musicou Cidadão Kane e Soberba, de Orson Welles, Um Corpo Que Cai, Psicose e vários outros de Alfred Hitchcock, Fahrenheit 451 e A Noiva Estava de Preto, de François Truffaut, Taxi Driver, de Martin Scorsese.
Dois homens absolutamente díspares
* Bons personagens.
São muito interessantes os principais personagens da história.
Hooker (o papel de Gary Cooper) e Fiske (o de Richard Widmark) são dois americanos que vão para o México em meados do século XIX atrás de ouro. Embora convivam amistosamente, são absolutamente díspares, quase antípodas.
Fiske é um jogador, um especialista nas cartas – como Bat Masterson, Doc Holiday, Maverick, para lembrar outros grandes jogadores de histórias passadas no Velho Oeste. Como esses outros citados aí, é um janota: está sempre vestido no que se considerava ser o modelito elegante – ou no que Hollywood convencionou que era o modelito elegante no Oeste americano do século XIX.
Já Hooker se veste com roupas absolutamente normais, do dia a dia: calça de brim, camisa, botas.
Fiske se mostra um cínico, um gozador, um sujeito que gosta de posar de mulherengo, que não leva nada a sério.
Hooker, bem ao contrário, é um sujeito sério, quase sisudo. Diante das piadinhas do outro, dá um leve sorriso – mas nunca fala nada que não seja de alguma utilidade, resultado de um pensamento.
E parece conhecer tudo, saber fazer tudo. Demonstra ser experiente, calejado, firme, forte, bom de briga e de mira no revólver e na espingarda.
Quando, no começo da narrativa, Fiske pergunta o que ele fazia antes de ser um idiota à procura de ouro, Hooker responde que era um idiota sem ouro.
Só quando o filme se aproxima do final é revelado que, no passado, ele havia sido xerife.
Hooker e Fiske estão bebendo numa cantina de uma cidadezinha chamada Puerto Miguel, enquanto a cantora interpretada por uma Rita Moreno muito jovem e muito magrinha canta – em espanhol, é claro – olhando para eles. Fiske traga um gole do destilado que o homem do bar coloca na mesa deles e faz uma careta horrorosa, diz que aquilo é pior do que ele poderia imaginar; Hooker traga um gole e faz aquela cara bonita de Gary Cooper de sempre.
Estão ali bebendo, jogando conversa fora, diante da cantora, e, quando o filme não tem sequer 10 minutos, entra na cantina uma mulher de presença tão forte quanto bela.
Leah – este é o nome da personagem de Susan Hayward, no auge da beleza de mulher feita, aos 37 anos – diz a todos no bar que precisa de ajuda. Pagará muito bem a quem se dispuser a ajudá-la a salvar a vida de seu marido, que ficou preso quando houve um desmoronamento parcial da mina de ouro que eles possuem.
Topam a empreitada, além de Hooker e Fiske, um mexicano simpático, Vicente Madariaga (Victor Manuel Mendoza) e um americano antipático, Luke Daly (o papel de Cameron Mitchell, figurinha fácil em dezenas de westerns).
* A moral da história.
Jardim do Pecado/Garden of Evil tem uma moral, uma frase de encerramento, que é uma maravilha. Uma daquelas frases em que o roteirista trabalha, trabalha, trabalha, para que seja lembrada sempre, vire antológica:
“I guess if the Earth were made of gold, men would die for a handful of dirt.”
Se a terra fosse feita de ouro, os homens morreriam por um punhado de poeira.
A história não se sustenta, não pára em pé
Bons personagens, bons atores, bom diretor, beleza de cenários e de fotografia, de trilha sonora, de moral da história – mas então por que não é um grande western, um grande filme?
É simples: porque a história não se sustenta. A trama é
inteirinha feita de furos e implausibilidades e absurdos.
É muito furo, muita implausibilidade, muito absurdo – mas, diacho, me deu uma preguiça imensa de falar deles, de enumerá-los, relatá-los.
Há também erros, gafes graves, e sobre isso o IMDb fala bastante. Um dos erros mais graves diz respeito aos índios – que passam o tempo todo espreitando a movimentação dos personagens, mas só resolvem atacar quando o filme se aproxima do final, e atacam aos poucos, devagarinho, em vez de fazer um daqueles ataques em massa que vemos em tantos outros westerns.
Transcrevo o que diz o IMDb sobre os índios na página de erros do filme: “O filme se passa no México e os índios são chamados de apaches. No entanto, eles se vestem como os mohawks do Nordeste da América. Além disso, os homens das nações apaches tradicionalmente usam cabelos longos. Neste filme, os índios ‘apaches’ usam corte de cabelo como os dos mohawks.”
Leonard Maltin deu 2.5 estrelas ao filme: “História de aventura tortuosa passada no México por volta de 1850, com trio acompanhando Hayward através de território de bandidos para salvar seu marido. CinemaScoe.”
O adjetivo que Maltin usa para definir a história é “meandering”. Que significa, além de tortuoso, serpenteante, ziguezagueante. É bem isso mesmo. A história – assinada por dois autores, Fred Freiberger e William Tunberg, e roteirizada por Frank Fenton – é de fato tortuosa, ziguezagueante, serpenteante.
Ziguezagueia tanta, serpenteia tanto, que não pára de pé.
Jean Tulard diz que o filme é um êxito excepcional
O Guide de Films de Jean Tulard adorou o filme – e então faço questão de botar aqui todo o verbete.
Mas atenção: a sinopse do Guide tem spoilers à vontade, e conta em detalhes o fim do filme.
“Três aventureiros, Hooker, Fiske e Daly, encalhados numa vila de pescadores mexicana, são abordados por uma jovem mulher, Leah Fuller, que pede que eles a acompanhem através de território indígena para livrar seu marido, preso em uma mina de ouro. É uma viagem cheia de ciladas até o ‘jardim do diabo’ onde se encontra a mina. Ao retornar, Fuller, o guia, e depois Daly são mortos pelos índios. Hooker e Fiske…”
Ah, me recuso a transcrever os detalhes sobre o final que o guia conta.
Eis a avaliação:
“Um êxito excepcional. Sobre um roteiro de grande banalidade, Hathaway soube construir um filme de aventuras de tirar o fôlego (a ameaça indígena que vai ficando mais precisa pouco a pouco; os antagonismos dos fugitivos.) Magníficas interpretações.”
Então tá bom. Quem sou eu pra discutir com mestre Jean Tulard?
Só acho engraçado que tanto ele quanto Leonard Maltin reduzam o quarteto de homens contratado por Leah-Susan Hayward a um trio, deixando de fora o mexicano Vicente. Que o gringo Maltin faça isso, até seria admissível, mas um intelectual francês, que ama tanto nosso pobre Tiers Monde… O que é isso, companheiro?
Anotação em outubro de 2018
Jardim do Pecado/Garden of Evil
De Henry Hathaway, EUA, 1954
Com Gary Cooper (Hooker), Susan Hayward (Leah Fuller), Richard Widmark (Fiske)
e Hugh Marlowe (John Fuller), Cameron Mitchell (Luke Daly), Víctor Manuel Mendoza (Vicente Madariaga), Rita Moreno (a cantora da cantina)
Roteiro Frank Fenton
Baseado em história de Fred Freiberger e William Tunberg
Fotografia Milton Krasner e Jorge Stahl Jr.
Música Bernard Herrmann
Montagem James B. Clark
Produção Charles Brackett, 20th Century Fox
Cor, 100 min (1h40)
**1/2
Título na França: Le Jardin du Diable. Em Portugal: O Jardim do Diabo.
Estou aqui com meu primo Roberto, vendo suas análises .Roberto está encantado, pois adora filmes principalmente os das décadas 40 e 50. Ele tem 81 anos.
PARABÉNS PELO TEXTO ENXUTO E FEITO POR QUEM ENTENDE DE CINEMA. A MINHA COTAÇÃO É ***
Bom faroeste que a gente vê com interesse. O elenco é garantia de bom espetáculo e as falhas de roteiro não chegam a comprometer o resultado final.
Dou uma nota 6. Veja se puder.
A crônica não tem furos. Parabéns.
REVIVER É VIVER ETERNAMENTE
BOM FAROESTE REALMENTE NORTE AMERICANO.