La Forêt, produção francesa de 2017, é tudo o que uma série policial – um thriller, ou polar, como se diz lá – pode pretender ser. A trama é muitíssimo bem engedrada, absorvente, fascinante; os atores, embora desconhecidos internacionalmente, têm interpretações impecáveis, e é tudo bem realizado, em cada aspecto técnico.
E tem uma qualidade que outras séries exibidas pela Netflix também têm: não é longa. São seis episódios, apenas, de cerca de 50 minutos cada. Ideal para ser visto ao longo de uma semana, pelos espectadores mais tranquilos. Ou em dois dias, por espectadores mais impacientes, ou fissurados, como é o nosso caso.
O elemento inicial da trama é o desaparecimento de uma garota, uma adolescente de 16 anos, Jennifer (Isis Guillaume, na foto abaixo). A investigação policial vai revelar fatos absolutamente surpreendentes – e apavorantes – a respeito dela e de suas colegas e maiores amigas, Maya (Martha Canga Antonio) e Océane (Inès Bailly) – mas isso só irá aparecer a partir do terceiro dos seis episódios da minissérie.
Toda a parte propriamente policial da trama é importante, fundamental – mas a série também vai fundo na relação entre pais e filhos, e de uma maneira excepcional.
La Forêt é mezzo série policial, mezzo série sobre vida em família.
Com todas as questões que envolvem pais e filhos adolescentes. A absoluta necessidade de haver comunicação, conversa, muita conversa, confiança – e a dificuldade absurda que os pais têm, em boa parte das vezes, de conversar com os filhos, de confiar nos filhos, e estes nos pais.
Os perigos que rondam os adolescentes, o tempo todo, 24 horas por dia, sete dias por semana – agravados pela atual facilidade de comunicação dos jovens com o mundo, pelas redes sociais. São demais os perigos desta vida, o tempo todo – mas, para aqueles seres pequenos, frágeis, entre os 12, 13, e os 18, 19 anos, parece que há uma concentração de perigos, um imenso congestionamento de perigos de que pouquíssimos conseguem escapar incólumes.
A ação se passa em uma cidadezinha junto de uma floresta – e isso é incomum
A ação se passa quase inteiramente em uma pequena cidade da região das Ardennes, no Nordeste da França, perto da fronteira com a Bélgica – o local onde houve algumas das mais sangrentas batalhas da Segunda Guerra Mundial. O nome da cidade não é mencionado explicitamente – são citadas algumas da região, Rethel, Charleville.
É uma região lindíssima, com florestas densas, um grande parque nacional – e isso faz de La Forêt um policial, thriller, polar diferente da maioria. As histórias de mistério são, em geral, na maior parte das vezes, essencialmente urbanas.
Aqui, não – muito ao contrário. A cidadezinha onde se passa a história – linda, uma gracinha, uma tetéia – é pequenina, acanhada. Todos se conhecem – e, bem perto do vilarejo, há a floresta que dá nome à série.
E aí é necessário registrar: a série, que é apresentada como uma original Netflix, teve no Brasil o título de O Bosque. Ridículo. Bosque é coisa pequena. O que existe ali pertinho da cidade que é o centro da trama é uma floresta.
O diretor dos seis episódios, Julius Berg, e seu diretor de fotografia, Maximiliaan Dierickx, não se fizeram de rogado: volta e meia há estupendas tomadas aéreas da floresta, assim como, nas séries urbanas, há tomadas aéreas da selva de pedra, as grandes avenidas, os arranha-céus.
A criadora da série, Delinda Jacobs, que assina sozinha o roteiro de todos os seis episódios, abriu La Forêt com absoluta maestria. O primeiro episódio é sensacional. Como só vim escrever esta anotação umas duas semanas depois que vimos a série, quis rever o primeiro episódio – e a revisão, depois de conhecer os personagens que vão sendo apresentados aos borbotões ao espectador, me deixou extasiado.
Nas primeiras sequências, conhecemos a família da policial Virginie e depois Éve
As primeiras imagens são de uma jovem andando pela floresta, com expressão angustiada – Jennifer, como veremos em seguida.
Veremos também que aquelas primeiras imagens de Jennifer caminhando angustiada na floresta são um flash forward: aquilo acontece mais tarde, depois das sequências que veremos ao longo dos 15 minutos iniciais – extraordinários – daquele primeiro episódio.
Assim, depois daquelas tomadas iniciais, voltamos um pouquinho no tempo. É manhã de um dia útil, e a família Musso está na cozinha para o café da manhã. A mãe, Virginie (Suzanne Clément, na foto abaixo), mulher aí de uns 40 e poucos anos, está em seu uniforme de gendarme, policial – é sargento da delegacia de polícia da cidadezinha. O marido, Vincent (Frédéric Diefenthal, também na foto abaixo), se mostra carinhoso com a mulher. O filho Tristan (Maxime Rennaux), cabeludinho, aí de uns 12 anos, está na dele. Virginie chama a filha Maya, que está atrasada – e vemos Maya no banheiro, trancada, lavando com afinco a mão, numa atitude meio estranha, meio suspeita.
Maya – sinal dos tempos, da realidade da Europa desta segunda década do terceiro milênio – tem a pele negra. É filha adotiva do casal Musso, o que por si só já é uma demonstração de que são gente boa.
Marido e mulher comentam que naquele dia está chegando para assumir a chefia da delegacia um novo capitão, um sujeito que vem de fora, desconhecido. Virginie diz esperar que ele não seja um imbecil.
Corta, e vemos uma bela jovem loura se levantando da cama em que há um homem deitado. Veremos que se chama Éve Mendel, e é professora de francês da escola da cidadezinha, o colégio Saint-Étienne – e a atriz que a interpreta, Alexia Barlier, é de fato bela, embora de uma beleza bem pouco Barbie, bem fora dos padrões tradicionais.
Claro que a essa altura, inicinho do primeiro episódio, o espectador não sabe, mas Éve será uma das personagens centrais da trama. E é uma personagem fascinante.
Éve se veste. O sujeito na cama diz que voltará àquela cidade daí a um mês, poderiam se rever. Éve diz apenas para ele fechar a casa quando sair – e ela mesma sai de sua casa, pega a biclicleta e pedala até a escola.
Em uma única e bem rápida sequência, a autora Delinda Jacobs nos mostra que Éve é dada a trepadas eventuais, até com cara que está de passagem pela cidadezinha.
O novo chefe de polícia e Virginie se estranham de cara, à primeira vista
Depois da família Musso e de Éve, temos uma sequência diante do colégio Saint-Étienne. Mães e pais deixam seus filhos na escola. Virginie, usando um jipe da gendarmerie, deixa ali Maya e Tristan. Aproveita para dar um oi para duas amigas que acabaram de deixar seus filhos, e estão olhando para a carne nova que chega ao pedaço – o capitão Gaspard Decker (Samuel Labarthe), que vem chefiar a delegacia de polícia da cidade.
O capitão Decker, divorciado, tem uma filha, Lola (Mélusine Loveniers), que terá seu primeiro dia no novo colégio da cidade para onde enviaram seu pai.
Um outro sujeito que deixa a filha ouve dela uma referência a bebida, ao fato de o pai beber demais. A filha é Océane, a garota que compõe com Jennifer e Maya o trio de amigas inseparáveis – uma moça grande, desenvolvida demais para seus 16 anos. Ele é Thierry Rouget (Patrick Ridremont), o sujeito de ficha-suja do vilarejo. Já havia sido condenado e preso; tinha cumprido a pena, pagado sua dívida à sociedade, mas as pessoas têm extrema dificuldade em permitir uma segunda chance a condenados. E Thierry – que, como o novo chefe de polícia da cidade, cria sozinho a filha adolescente – bebe demais, e faz muita besteira na vida.
A policial Virginie vai falar com Thierry; diz que ele não deveria estar dirigindo depois de ter bebido tanto.
E, em seguida, Virginie se dirige até o carro do seu novo chefe. Apresenta-se para ele – e o capital Decker pergunta se ela aplicou o teste do bafômetro naquele homem. Virginie diz que não, porque ele é um bom sujeito, ela é amiga dele. Decker a repreende.
Fica absolutamente claro para o espectador – após rápidas, mas certeiras pinceladas – que o capitão Decker é rígido, sério, cuidadoso. Um bom policial. E que o sargento Virginie protege amigos; como conhece muito bem todo mundo na cidade, ficou mais amiga, mais vizinha, do que propriamente uma policial atenta.
O espectador vê, nos primeiros minutos da série, que as garotas escondem segredos
Jennifer, antes de chegar ao colégio para mais um dia de aula, faz ligações no celular. Parece muito preocupada, chateada, angustiada. O espectador a vê dizendo para a secretária eletrônica do celular de alguém: – “Já liguei várias vezes. Me ligue de volta, ou vou contar tudo.”
Jennifer, portanto, sabe de algo que é segredo, que não deveria ser divulgado. Que, se for divulgado, prejudicará a pessoa com quem ela tentava falar.
Já dentro da escola, Éve, a professora, percebe que Jennifer está tensa, obviamente com algum problema. Tenta falar com ela, ouvir dela o que está havendo, mas a garota não responde.
Veremos que Éve é daquele tipo de professora jovem que consegue ter a confiança dos alunos, consegue fazer com que os adolescentes contem para ela coisas que não contam para os pais.
Jennifer abre o seu armário da escola, espanta-se com o que vê. Sai da escola, pega sua bicicleta, e sai.
Éve tenta segui-la, falar com ela, mas Jennifer some.
Um senhor de óculos, de terno, observa seu carro parado no estacionamento da escola, percebe que a lanterna dianteira está quebrada. É o diretor do colégio, Gilles Lopez (Nicolás Marié).
Maya e Océane conversam em uma sequência bem rápida, bem curta. Océanne diz: “Ela fez. Por que não esperou por nós?”
Mais um segredo. Não temos ainda 15 minutos de ação, e as adolescentes já demonstraram para o espectador que há ali ao menos dois segredos.
Já é tarde de noite quando toca o celular de Éve, na casa dela. Éve percebe que é Jennifer, ouve ruídos de floresta – mas Jennifer não fala nada. A professora fica tentando ligar de volta para a aluna, mas ela não atende. E então Éve decide ir à delegacia, contar que Jennifer ligou da floresta e parecia estar em perigo.
O capitão Decker a ouve. A sargento Virginie o chama de lado e diz que aquela moça, Éve, é estranha, esquisita – não deve ser levada em consideração.
Sério, compenetrado, rígido – e já com um pé atrás diante da sargento Virginie, que começa a considerar que é um tanto relapsa –, o capitão Decker leva a sério o que a professora Éve conta. Considera que algo realmente grave pode ter acontecido àquela garota Jennifer.
Daí a pouco chegam à delegacia os pais da adolescente – Éve havia ligado para eles. A mãe diz que Jennifer havia dito que iria dormir na casa de Maya, ou seja, na casa de Virginie. Esta diz que fazia uma semana que não via a amiga da filha.
Atenção: embora de forma um pouco velada, a seguir há spoilers
Gastei uma infinidade de parágrafos para relatar apenas os minutos iniciais do primeiro dos seis episódios de La Forêt. E não me arrependo disso, porque o começo da série é realmente muito bem amarrado, muito bem engedrado. Não há como não querer saber tudo o que vem a seguir.
A seguir virá coisa demais, é óbvio. Quem não viu a série não deveria ler o que vem agora, deveria parar ou então pular para o próximo intertítulo.
Virá, na história, um apavorante esquema de pornografia e uma absurda, chocante embora nada fantasiosa, trama de ousadia de adolescentes sem limites morais.
E um caso delicadíssimo de infidelidade conjugal.
Virá também toda uma história de crimes do passado – garotas que, muitos anos antes da época em que se passa ação, haviam desaparecido na mesma floresta, e nunca mais haviam sido encontradas.
Revela-se também – e contar isso não chega a ser spoiler – que Éve foi encontrada na floresta quando era garotinha de uns 4 anos de idade, incapaz de falar, de se comunicar. Não se tinha notícia de quem era ela, quem eram seus pais. Parecia ter sido criada entre os animais da floresta. Foi adotada pelo médico da cidade, Abraham Mendel (Christian Crahay), que cuidou dela com carinho, levou-a para ser tratada em um bom hospital psiquiátrico.
Graças à dedicação do pai, Éve havia passado de garota abandonada na floresta, um ser selvagem, a uma jovem mulher sensível, uma boa professora de francês, amiga e próxima dos alunos.
La Forêt tem várias coisas em comum com a série inglesa Safe
Por uma grande coincidência (ou não – sei lá), pouco depois de La Forêt vimos Safe, que também é apresentada como sendo uma “série original Netflix”. É impressionante como as duas séries têm pontos em comum. A começar do fato de que Safe é “An original Neflix series” e La Forêt é “Une série originale Neflix” – esta aqui feita na França, a outra feita ali pertinho, do outro lado do Canal da Mancha.
Cada uma das duas tem seis episódios de cerca de 50 minutos. Cada uma é uma mistura de história policial com drama familiar, que trata de relações entre pais e seus filhos adolescentes. Em cada uma das duas uma adolescente de 16 anos desaparece: numa delas quem some é Jenny, na outra é Jennifer. Em cada uma das duas os acontecimentos de hoje, dos dias em que se passa ação, têm muito a ver com fatos antigos, do passado – a relação com o passado é fundamental, básica.
Tão parecidas em tantas características, as duas séries têm, é claro, é óbvio, pontos em que uma se afasta radicalmente da outra.
A inglesa foi escrita por um autor americano – e tem várias coisas que demonstram que há aí um grande desconforto. Um americano contando uma história que acontece no interior da Inglaterra parece um índio sioux no Royal Albert Hall – ou um Donald Trump entre os cristais do Palácio de Buckingham.
Harlan Coben, o americano criador da série inglesa, é autor de uma penca de livros que se passam em Nova Jersey e Nova York. Já havia feito uma outra série de TV, mas essa não é exatamente a praia dele.
A série francesa passada na França foi escrita por uma francesa que já escreveu várias outras séries. Parece dominar perfeitamente o ofício.
Não se trata, é claro, de competição – mas a verdade dos fatos é que La Forêt dá de 7 a 1 em sua prima Safe.
A frase “uma série original Netflix” é falsa. Ao menos em alguns casos
Prima? Seriam primas, as duas séries, pelo fato de serem apresentadas como originais Netflix?
A verdade é que não sei o que significa a expressão “Uma série original Netflix”.
La Forêt foi uma realização das produtoras Carma Films, Nexus Factory, uMedia e RTBF. Foi exibida primeiro na Bélgica, entre 30 de maio e 14 de junho de 2017, no canal La Une. Só depois passou na França, no canal France 3, a partir de 21 de novembro de 2017 – e, em seguida, passou a ser exibida pela Netflix ao redor do mundo. A cada início de episódio se lê “Une série originale Netflix”.
Ou seja: tudo indica que a Netflix não teve nada a ver com a produção de La Forêt. Simplesmente pagou pelo direito de exibi-la
O que leva a crer que a frase “uma série original Netflix” é falsa – ou, no mínimo, pode ser falsa em alguns casos.
As indicações são de que a série fez bastante sucesso na França. O AlloCiné, o site que tem tudo sobre os filmes franceses, chamou-a de “série événement” – série acontecimento. E conta que, devido ao sucesso, chegou-se a especular se haveria uma segunda temporada. “Ah, não”, descartou, com firmeza, o diretor Julius Berg; “Não haverá temporada 2. A história acabou. Foi um acordo com a (emissora) France 3 que faríamos uma verdadeira minissérie. Tentamos fazer de tal forma que ela tivesse o melhor resultado possível.”
Os realizadores conseguiram. A série é o melhor resultado possível.
Anotação em julho de 2018
O Bosque/La Forêt
De Delinda Jacobs, criadora, roteirista, França, 2017
Direção Julius Berg
Com Suzanne Clément (Virginie Musso, sargento de polícia, mãe de Maya), Samuel Labarthe (Gaspard Decker, capitão de polícia), Alexia Barlier (Ève Mendel, a professor de francês), Frédéric Diefenthal (Vincent Musso, o marido de Virginie, pai de Maya), Patrick Ridremont (Thierry Rouget, o pai de Océane), Nicolas Marié (Gilles Lopez, o diretor da escola), Martha Canga Antonio (Maya Musso, a filha adotiva de Virginie e Vincent), François Neycken (Julien), Gilles Vandeweerd (Philippe), Mélusine Loveniers (Lola Decker, a filha do capitão Gaspard), Christian Crahay (Abraham Mendel, o pai adotivo de Éve), Inès Bailly (Océane Rouget, amiga de Jennifer e Maya), Isis Guillaume (Jennifer Lenoir, a garota que desaparece), Gaëtan Lejeune (Manoa, o ermitão da floresta), Maxime Rennaux (Tristan Musso, o filho de Virgine e Vincent), Jade Boulanger (Ève Mendel criança), Laetitia Reva (Madfame Lenoir, mãe de Jennifer), Serge Larivière (o legista)
Argumento e roteiro Delinda Jacobs
Fotografia Maximiliaan Dierickx
Musica Étienne Forget
Montagem Jean-Daniel Fernandez-Qundez e Aïn Varet
Casting Stéphane Finot
Produção Carma Films, Nexus Factory, uMedia, RTBF;
Cor, cerca de 300 min
***1/2
Depois de ler este seu comentário tão positivo fui a correr ver a série na Netflix.
Confesso que gostei muito, acabei de a ver há minutos. Eu sou dos espectadores mais tranquilos como se vê.
Fiquei a pensar que adolescência=idiotice; eu já por lá passei mas não me lembro e estou a generalizar.
Se facto esta série dá uma sova na Safe que já passou na Netflix e não me deixou saudades.
Então Sérgio concordo com todos os superlativos relacionados à essa série e também o comparativo com “Safe”, dadas as devidas proporções, que possui uma história semelhante, mas que é desenvolvida de uma maneira mais completa e sem deixar furos. Tudo, exceto o nome, é brilhante e muito bem estruturado, todas as pontas soltas são respondidas de um jeito que surpreende e até a pequena participação de alguns garotos que sabem de algo e escondem com receio de serem pegos demonstra que tudo foi feito no minimo detalhe.
Tem uma série chamada Tabula Rasa que também foi pouco falada e é muito interessante em todos os sentidos.