O elenco é espetacular: Warren Beatty, Diane Keaton, Goldie Hawn, Nastassja Kinski, Andie MacDowell. Uma participação especial do veterano Charlton Heston. E ainda um jovenzinho Josh Hartnett em começo de carreira.
Raras vezes se juntou tanta gente boa para fazer um filme tão ruim.
É uma comédia sobre infidelidade conjugal. Os personagens são todos riquíssimos, e passam parte do tempo em seus belíssimos apartamentos em Manhattan e parte em suas belíssimas casas na praia ou no campo. Daí o título original, Town & Country.
Os personagens centrais são Porter Stoddard (o papel de Warren Beatty), um arquiteto famoso, respeitado, podre de rico, e sua mulher Ellie (o papel de Diane Keaton), uma designer igualmente famosa, respeitada, podre de rica. Numa das primeiras sequências do filme, os dois estão celebrando 25 anos de casamento com o casal mais próximo deles, seus amicíssimos Griffin e Mona (os papéis de Garry Shandling e Goldie Hawn) – em Paris. Tinham atravessado o Atlântico especialmente para comemorar a data.
Durante o jantar festivo, Griffin e Mona brindam a Porter e Ellie, o casal mais fiel e mais feliz do mundo.
Feliz, sim. Fiel coisa nenhuma: o espectador já havia visto, na sequência que vem logo antes dessa do jantar em Paris, que Porter é amante de Alex, uma violoncelista de música erudita que vem na pele e na beleza estonteante de Nastassja Kinski.
Mais um pouco e Mona flagra o marido indo para um motel com uma ruiva. O espectador vê mais que Mona: vê que, dentro do quarto do motel, a ruiva tira a peruca ruiva e se revela um homem.
Haverá mais traições. Várias.
É uma comédia idiota, em que tudo é grosso, grosseiro, vulgar
Há comédias inteligentes, há comédias bobas e há comédias idiotas. Este filme aqui é do último tipo – aquele tipo de comédia em que tudo é exagerado, as situações são grotescas, ridículas, absurdas. Não há fineza, sutileza – é tudo grosso, grosseiro, rasteiro, vulgar.
Apenas um exemplo: o protagonista, o personagem de Warren Beatty, vai parar na mansão imensa dos pais de Eugenie, a personagem interpretada por Andie MacDowell, aquela absoluta gracinha. O pai dele é interpretado por Charlton Heston; a mãe, por Marian Seldes. A mãe anda numa cadeira de rodas, e vai batendo nas coisas à sua frente. Eugenie comenta que a mãe não parece bem.
Eis a resposta da senhora mãe dela:
– “Você está certíssima, eu tenho mesmo um problema. (E aponta para o marido.) Ele não faz mais o troço comigo. É. A cenoura mole dele é a raiz de todos os meus problemas. Todos os meus médicos dizem isso. Cada um dos filhos da puta todos.”
Não tenho nada contra comédias bobas – desde que sejam engraçadas. É o caso de alguns dos filmes de Mel Brooks, só para dar um exemplo. O Jovem Frankenstein (1974), por exemplo, é uma comédia boba: muitas das piadas são ginasianas, com a safadeza das piadas de adolescente que está descobrindo o sexo. Mas é bem humoradíssimo, é tudo engraçadérrimo, tudo funciona, e o espectador não pára de rir, de gargalhar, de se divertir.
Comédia idiota… Aí é duro.
Com dez minutos de filme, Town & Country já demonstrou que é um filme ruim, muito ruim. Eu poderia ter desligado e ido fazer coisa melhor, mas eu gosto de filmes, até tenho um site de filmes – e então vi o abacaxi até o fim.
Mas é muito, muito, muito ruim.
E o que é pior ainda: não tem graça alguma. Bem, cada um é cada um – mas eu não consegui dar sequer uma risada, ao longo dos 104 penosos minutos do filme.
O filme faz referências a Elvis, Marilyn, Hemingway e Fitzgerald
Um registro: este é mais um filme americano que faz referência a Marilyn Monroe e a Elvis Presley, dois dos maiores ícones da cultura popular dos EUA.
Lá pelas tantas, rola uma festa a fantasia no Sun Valley, em Idaho, para onde os dois grandes amigos Porter e Griffin vão em busca de dias de calma no isolamento do interior. A funcionária de um armazém onde os dois fazem compras, Auburn (Jenna Elfman, bonitinha), de repente aparece na cabana de Griffin, fantasiada de Marilyn Monroe, e os leva para a festa. Griffin vai de Elvis, e Porter é enfiado numa fantasia de urso.
Um dia ainda faço um levantamento de filmes que citam Elvis. Vai ser uma relação sem fim.
Há três características interessantes neste filme horroroso. Uma delas é a presença de Charlton Heston no elenco. O ator de bela estampa que foi o protagonista de tantas superproduções e tantos filmes importantes dos anos 50 e 60 – Os Dez Mandamentos (1956), Ben-Hur (1959), El Cid (1961), Juramento de Vingança (1965), O Planeta dos Macacos (1968) – depois de velho virou uma espécie de porta-voz/garoto propaganda da NRA, Associação Nacional do Rifle, a nojenta organização que faz o lobby da indústria de armas nos Estados Unidos
Aqui, ele faz um triste arremedo da figura lamentável em que se transformou. Seu personagem, o ricaço de Sun Valley, vai aparecer em duas sequência munido de uma espingarda, dando tiros a torto e a direito.
Triste fim de um sujeito que foi um belo ator.
A segunda característica que achei interessante é que os roteiristas Michael Laughlin e Buck Henry (este contratado para dar uma melhorada no que o primeiro havia escrito) deram um jeito de enfiar, no meio desta comédia bem bocó, referências a Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald. Hemingway é bastante citado porque o pai de Eugenie, o milionário interpretado por Charlton Heston, teria sido amigo do escritor, lá atrás, no passado.
E lá pelas tantas se diz que, numa época em que Ellie ficou doente, de cama, Porter leu para ela Suave é a Noite. O casal é proprietário de um raro exemplar da primeira edição do livro, de 1934.
A citação dos dois escritores que foram contemporâneos, amigos e depois gentis inimigos é assim uma espécie de pérola no meio da comida para porcos.
Warren Beatty foi uma das grandes paixões da vida de Diane Keaton
E, finalmente, é interessante ver Warren Beatty e Goldie Hawn trabalhando juntos, assim como ver Warren Beatty e Diane Keaton trabalhando juntos.
Town & Country é de 2001, e começa com o casal interpretado por Beatty e Diane celebrando 25 anos de casamento. Pois 26 anos antes, Beatty e Goldie haviam trabalhado juntos, e por coincidência, ou não, em outro filme em que o personagem do ator é um comedor inveterado, que não deixa passar incólume mulher alguma. Gostoso vê-los reunidos de novo um quarto de século depois de Shampoo (1975).
Quanto a Diane, esta teve um caso com ele. Bem, Warren Beatty teve caso com metade da população de Los Angeles, dizem – mas a ligação com Diane Keaton foi forte, importante. No seu livro de memórias, Agora e Sempre, Diane fala de três grandes amores: Woody Allen, Al Pacino e Warren Beatty.
“Em janeiro de 1978, começamos a sair juntos”, ela escreveu. “Disse a mim mesma que era temporário. Que eu conseguiria me controlar. Claro, ele era inteligente, inteligente como um advogado. E, sim, ainda era um sonho incrível de tão maravilhoso. Não sei por que achei que conseguiria controlar alguma coisa – bom, não é verdade, não pensei em nada. Me apaixonei. E continuei apaixonada por muito tempo. Ele me conquistou desde o primeiro momento em que o vi no saguão do Beverly Wilshire Hotel, ainda em 1972. Ergui os olhos e, à distância, vi o meu sonho se personificar e se tornar realidade. Também percebi que não havia nenhuma mulher nas proximidades que ele não notasse, exceto eu. Ele não me notou, não naquela época.”
Diane Keaton, como se vê, não apenas sabe atuar – sabe também escrever.
Warren Beatty a dirigiu em Reds (1981), o filme mais ambicioso de sua carreira, um cartapácio de 3 horas e 15 minutos de duração que narra a vida de John Reed, o jornalista americano que presenciou a Revolução Russa de 1917 e escreveu o famosérrimo Dez Dias que Abalaram o Mundo. Diane Keaton interpreta Louise Bryant, também jornalista, o grande amor da vida de John Reed e sua esposa de 1916 até 1920, o ano em que ele morreu.
Por sua interpretação de Louise Bryant, Diane Keaton foi indicada ao Oscar de melhor atriz. Perdeu para Katharine Hepburn por Num Lago Dourado/On Golden Pond. Já Beatty levou o Oscar de melhor diretor.
Foi um dos maiores desastres de todos os tempos nas bilheterias
Town & Country – diz o IMDb – é considerado um dos maiores desastres de todos os tempos, em termos de bilheteria. Custou cerca de US$ 90 milhões – afinal, tem essa penca de atores famosos, foi filmado em diversas localidades (Nova York, East Hampton, West Hampton, Sun Valley, Los Angeles), tem diversas tomadas feitas de helicóptero, vestuário carésimo, todos os requintes de uma produção cara.
Rendeu apenas US$ 6,7 milhões nos Estados Unidos, e US$ 3,6 mundo afora.
O fracasso foi tão rotundo que Warren Beatty passaria os 15 anos seguintes sem participar de filme algum. Só voltou em 2016, com um filme escrito e dirigido por ele, Exceção às Regras/Rules Don’t Aplly; aos 79 anos, ele faz um papel secundário mas importante, o do milionário Howard Hughes.
A página de Trivia do IMDb está repleta de informações que mostram que tudo, absolutamente tudo conspirava para que o filme fosse de fato um abacaxi e um fracasso na bilheteria. Antes mesmo que as câmaras começassem a filmar qualquer cena, a produção já havia gasto US$ 40 milhões com salários dos atores e de roteiristas.
O roteiro escrito originalmente por Michael Laughlin não agradou à produção e ao astro Warren Beatty. Foi então chamado o ator e roteirista Buck Henry para dar uma “polida” no texto. O que era para ser uma “polida” acabou durando diversos meses, com Buck Henry reescrevendo praticamente metade do roteiro.
Buck Henry já havia trabalhado com Warren Beatty em 1978, quando dividiram os créditos de direção de O Céu Pode Esperar/Heaven Can Wait (1978), o primeiro dos cinco filmes de Beatty como realizador. O filme – a rigor uma nova versão de Que Espere o Céu/Here Comes Mr. Jordan (1941) – tinha sido um grande sucesso, com 9 indicações ao Oscar, inclusive nas categorias de melhor filme, melhor diretor, melhor ator para Beatty, melhor ator coadjuvante para Jack Warden, melhor atriz coadjuvante para Dyan Cannon, melhor roteiro adaptado.
Isso certamente explica por que a produção se dispôs a pagar para Buck Henry nada menos de US$ 3 milhões pelo trabalho. (Ele ganhou também um pequeno papel como ator – faz um advogado especializado em divórcios.)
Além de diversos outros problemas, as filmagens foram interrompidas por um ano
As filmagens começaram em 1998, mas houve problemas de várias naturezas. O astro Warren Beatty se intrometia para reclamar de coisas do roteiro original; pedia que cada tomada fosse refeita diversas vezes.
Beatty e o diretor Peter Chelsom tiveram diversas discussões sobre detalhinhos.
Algumas sequências na estação de esqui de Sun Valley, em Idaho, foram filmadas bem no início do inverno, e ainda não havia neve. A produção teve que providenciar neve artificial. Dias depois, nevou, e as sequências foram refeitas.
Depois de cinco meses, foram obrigados a parar tudo, porque diversos atores tinham outros compromissos agendados. Garry Shandling foi fazer De Que Planeta Você Veio? Diane Keaton foi fazer Linhas Cruzadas/Hanging Up, filme que dirigiu e em que trabalhou como atriz ao lado de Meg Ryan e Lisa Kudrow.
A equipe inteira só pôde ser reunida um ano depois, em 1999, quando as filmagens foram finalmente completadas. Mas o filme só seria lançado em 2001.
Para ser recebido por pouquíssima gente nas bilheterias.
E quer saber?
Bem feito.
Anotação em abril de 2017
Ricos, Bonitos e Infiéis/Town & Country
De Peter Chelsom, EUA, 2001
Com Warren Beatty (Porter Stoddard), Diane Keaton (Ellie Stoddard), Goldie Hawn (Mona), Garry Shandling (Griffin), Andie MacDowell (Eugenie Claybourne), Nastassja Kinski (Alex), Charlton Heston (Mr. Claybourne), Marian Seldes (Mrs. Claybourne), Jenna Elfman (Auburn), Josh Hartnett (Tom Stoddard), Tricia Vessey (Alice Stoddard), Buck Henry (Suttler)
Argumento e roteiro Michael Laughlin e Buck Henry
Fotografia Rolfe Kent
Música Claire Simpson
Montagem David Moritz e Caroline Hanania
Produção New Line Cinema, Sidney Kimmel Entertainment, FR Production, Longfellow Pictures, Simon Fields Productions.
Cor, 104 min
*
Eu nunca vou entender como um cara tão sem graça como o Warren Beatty conseguiu tanta mulher. Eu sempre vi ótimos filmes com ele (nunca por causa dele). Se esse é tão ruim assim, então acho que vou gostar desse abacaxi rsrsrsrsrs
Agora, eu preciso ELOGIAR essa capacidade que você tem de escrever com tanto carinho cinematográfico nas palavras, com todo cuidado e tudo mais, mesmo quando NÃO GOSTA do filme 🙂