Lá pelas tantas, a fantasticamente, tresloucadamente fantasiosa trama de Os 39 Degraus tem que mocinho e mocinha – que nutrem a maior antipatia do mundo um pelo outro – ficam ligados por um par de algemas. Consta que, antes de começar a filmar qualquer uma das diversas cenas com os dois daquele jeito, o diretor Alfred Hitchcock prendeu o braço direito de Robert Donat ao esquerdo de Madeleine Carroll com uma algema, e os deixou assim por várias horas, dizendo que não sabia onde tinha posto a chave.
E não havia sequer a atenuante de que Donat e Madeleine eram amigos, se davam bem. Haviam sido apresentados um ao outro ali no set de filmagem, no Lime Grove Studio da Gaumont-British, em Londres.
Eram atores já de fama. Robert Donat, inglês de Manchester (1905-1958), bonitão, começou a fazer peças de Shakespeare aos 16 anos, e quando chegou ao cinema já tinha nome respeitado. Os 39 Degraus, de 1935, foi seu quinto filme, e entre os quatro primeiros estavam Os Amores de Henrique VIII (1933) e O Conde de Monte Cristo (1934).
Madeleine Carroll, inglesa de West Bromwich (1906-1987), mulher fina, elegante, de traços belíssimos, havia começado a carreira em 1928, o primeiro ano do cinema já totalmente falado. Tinha no currículo 20 títulos quando foi trabalhar com Hitchcock.
Diz o IMDb: “Madeleine Carroll sofreu nas mãos de Alfred Hitchcock em sua busca por realismo, até mesmo nos vergões de verdade em seus pulsos dos longos dias algemada a Robert Donat”.
Não deve ter sido nada fácil para Madeleine Carroll.
Mas, como bem sabe qualquer pessoa que conheça as histórias do mestre, ou tenha visto A Garota (2012), em que Toby Jones interpreta Hitchcock e Sienna Miller, Tippí Hedren, o que Madeleine Carroll sofreu nas mãos do diretor foi fichinha diante da tortura a que foi submetida a atriz de Os Pássaros e Marnie.
O mestre do suspense tinha um lado DOI-Codi, Inquisição Espanhola, Gestapo.
Peggy Ashcroft faz o papel de uma jovem casada que se encanta com o herói
Mas não era com todo mundo. Peggy Ashcroft (na foto abaixo) diria, numa entrevista em 1985, que levou apenas quatro dias para filmar suas cenas, e que trabalhar com Hitchcock foi “enormous fun”. “A gente ria muito com Hitchcock. Outras pessoas me disseram que ele não era sempre gentil. Eu o achei muito gentil.”
Peggy Ashcroft (1907-1991), tornada Dame pelas mãos da Rainha Elizabeth em 1956, foi uma das maiores atrizes inglesas do século XX, o que significa dizer que foi uma das maiores do século XX ponto final. Mas trabalhou basicamente no teatro. Ao cinema, deu a honra de aparecer em 38 títulos, apenas. Um dos grandes títulos da fase mais madura de sua filmografia é Passagem para a Índia (1984), o maravilhoso épico de Sir David Lean.
Quando dedicou quatro dias a trabalhar com Hitchcock em Os 39 Degraus, estava com 28 aninhos, e, antes, só havia aparecido em um filme, O Judeu Errante (1933).
Em Os 39 Degraus, faz um papel estranho, bastante estranho, na minha opinião. A personagem não tem nome. Ela é a jovem mulher de um pequeno agricultor pobre bem mais velho (interpretado por John Laurie), que o herói, o mocinho, Richard Hannay (o papel de Robert Donat, como já foi dito), encontra em sua odisséia de Londres a um pequeno lugarejo da Escócia.
Hannay pergunta ao fazendeiro pobre se pode passar a noite em sua casa, e rapidamente acrescenta que pode pagar. Depois de receber o dinheiro antecipadamente, o sujeito concorda.
A jovem mulher do fazendeiro não esconde do forasteiro que não está contente com a vida dura que leva, com aquele marido bem mais velho, naquele lugar perdido no meio do nada em que nada acontece. A rigor, a jovem mulher não esconde que sentiu um imediato fascínio pelo forasteiro.
Trata-o muito bem, ajuda-o a fugir da polícia quando a polícia chega, e ainda o presenteia com o capote domingueiro do marido. Apanhará do marido ciumento.
Junto a uma escada, a mocinha ouve uma conversa e percebe que o mocinho é bom
Os 39 Degraus foi o filme de número 18 de Hitchcock. Veio logo após O Homem Que Sabia Demais, de 1934, que havia sido um imenso sucesso de público e crítica tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos. (Claro, este de 1934 é o primeiro dos dois O Homem Que Sabia Demais que ele faria – o segundo viria em 1956.)
E aconteceu de ser também um imenso sucesso de público e crítica – foi, a rigor, o filme que estabeleceu o nome de Alfred Hitchcock como sinônimo de sucesso.
Os estudiosos de Hitchcock apontam que este foi o primeiro filme do realizador que usa uma de suas marcas registradas: um homem que é injustamente acusado de um crime que não cometeu. Ele voltaria diversas vezes a esse tema. Em 1956, faria uma obra-prima, um filmaço extraordinário sobre fatos reais, O Homem Errado.
Tem outra de suas marcas registradas – a escada. Hitch adora uma escada, uma escadaria, a beleza plástica de uma escadaria. Uma das cenas mais antológicas do Cânone hitchcockiano é aquela de Suspeita/Suspiction (1941) em que Cary Grant, esbanjador, irresponsável, caráter precário, sobe, bem devagarinho, a escadaria quase circular de uma imponente mansão, carregando em uma bandeja um copo de leite para oferecer à sua mulher milionária, interpretada por Joan Fontaine, enquanto a platéia se debate diante da dúvida atroz: há ali veneno? Ele vai matá-la?
Não há escada com 39 degraus, em Os 39 Degraus – mas há uma sequência importante em que o espectador fica diante de uma escada.
Acontece depois da metade do filme – aliás curtíssimo, de apenas 86 minutos –, logo depois que Pamela, a personagem da bela Madeleine Carroll, consegue a proeza de fazer sua mão esquerda passar por dentro do anel da algema que a prendia a Richard Hannay.
Pamela, então, sai do quarto da estalagem em que haviam se hospedado. Sai sorrateiramente, silenciosamente, para não despertar o homem que ela acha que é um assassino, embora ele garanta que não é um assassino de forma alguma, é um inocente que está fazendo todo o possível para impedir que espiões estrangeiros carreguem para fora do Império Britânico um bem guardado segredo de Estado.
Então ela sai do quarto, e se encaminha para descer as escadas que levam ao térreo da estalagem – mas, ali do alto, ela vê, no térreo, junto da recepção, os dois homens que ela achava que fossem policiais. Só que um deles está falando ao telefone, e a conversa revela que ele não é policial, é um bandido, um espião a soldo de uma potência estrangeira. E naquele momento cai a ficha na cabeça da mocinha que o homem que ela considerava um assassino estava certo, ele estava falando a verdade, havia mesmo uma rede de espionagem agindo ali!
Tudo isso acontece à beira de uma escada, uma das muitas obsessões de Hitchcock.
O grito de horror da empregada se funde ao apito do trem saindo do túnel
Há uma das belas sacadas de Hitchcock quando o filme está com 20 minutos.
Richard Hannay está fugindo dos espiões, em um trem que saiu de Londres rumo à Escócia, onde o mocinho vai procurar um lugarejo e um sujeito sem um pedaço do dedo mindinho, sobre quem havia falado para ele Miss Smith, Annabella Smith (Lucie Mannheim), antes de ser covardemente golpeada nas costas com uma grande faca pertencente ao apartamento do mesmo Richard Hannay. E aí então a empregada chega para arrumar o apartamento, e se depara com o corpo, o cadáver – the corpse, the corpse! como Hitch adorava um corpsezinho, meu Deus do céu e também da terra! – da mulher esfaqueada.
E a empregada se volta para a câmara e dá um berro.
Corta, corta com muita agilidade, e entra a cena em que um trem, uma maria-fumaça soltando mais fumaça que qualquer dragão de desenho animado, sai de um túnel, apitando.
E o grito da mulher diante do corpo, do cadáver, do corpse, se funde ao apito do trem saindo do túnel.
Era 1935. O cinema já havia feito muitas maravilhas. Em 1921 Victor Sjöström já havia mostrado, com o uso de transparências, a alma de um homem saindo de seu corpo inanimado, em A Carruagem Fantasma. Ao longo dos anos 20, os realizadores na União Soviética já haviam definido as regras da montagem, os efeitos que podem ser obtidos ao se cortar uma tomada e entrar outra no lugar. D. H. Griffith já havia feito épicos que tinham ajudado a formatar toda a gramática do cinema. Charlie Chaplin já havia feito meia dúzia de filmes clássicos, atemporais, que ainda serão clássicos daqui a um ou dois ou três séculos.
Em 1902, Georges Meliès já havia levado os espectadores de cinema à Lua.
Mas então em 1935 Alfred Hitchcock teve uma bela sacada, unindo o grito de uma mulher a um apito de trem que saía de um túnel, e todos os críticos de cinema do mundo inteiro tiveram a absoluta certeza de que ali estava um gênio.
Em seu filme anterior, O Homem Que Sabia Demais, ele já havia mexido com a coisa de espionagem. Volta a mexer com o tema aqui. Em Intriga Internacional/North by Northwest (1959), falaria mais ou menos dos mesmos temas. E voltaria ao achado do trem e do túnel. Na sequência final, enquanto o trem (objeto comprido) penetra no túnel (objeto de aparência externa circular ou ovalóide), Cary Grant – ele de novo! – prepara-se para penetrar em Eva Marie Saint.
Não dá para dizer que Hitch é propriamente um amante de sutilezas.
A personagem feminina não existia na novela que deu origem ao filme
Vamos às loas à genialidade de Alfred Hitchcock em Os 39 Degraus.
Leonard Maltin evidentemente dá 4 estrelas, cotação máxima: “Clássico mistério de Hitchcock com tons de comédia e romance suaves, com o inocente Donat sendo empurrado para as atividades de uma rede de espionagem. Memorável brincadeira entre Donat e Carroll, que pensa que ele é um criminoso, lançou o estilo para diálogos sofisticados por anos. A novela de John Buchan foi adaptada por Charles Bennett e Alma Reville; diálogos adicionais de Ian Hay. Refeito duas vezes.”
Ahnn… Aqui vão ser necessárias então algumas informações objetivas.
O roteiro é creditado oficialmente, no filme, a Charles Bennet. Nos créditos iniciais, Alma Reville, a senhora Hitchcock (ou seria ele o senhor Reville?), aparece como responsável pela continuidade. E o roteiro se baseia na novela de John Buchan.
Pelo que sabe, a rigor Charles Bennett e Alma Reville escreveram uma nova trama, a partir de alguns poucos elementos da novela de John Buchan, que havia sido publicada em 1915.
Na novela, não há personagem feminino importante. Todo o personagem que coube a Madeleine Carroll foi inventado, portanto, por Bennett e Alma Reville.
As refilmagens. Em 1959, Ralph Thomas – um diretor que fez coisas boas, vejam só – ousou refilmar a história, com Kenneth More e Taina Elg nos papéis centrais. Houve também uma nova refilmagem em 2008; nem o nome do diretor, nem dos dois principais atores, querem dizer nada para mim.
Voltemos às loas à genialidade de Alfred Hitchcock.
“A trama realmente não interessa muito”. A verdade é que não há trama que tenha lógica
Diz Pauline Kael, a prima donna da crítica americana:
“Este melodrama de espionagem, suave, divertido, é dirigido com um toque tão seguro que o suspense vem cheio de humor; é uma das três ou quatro melhores coisas feitas por Hitchcock.”
Diz o livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer:
“Como de hábito, em se tratando de Hitchcock, a revelação do que são de fato ‘os 39 degraus’ – na verdade, toda a trama de espionagem – é quase periférica diante da interação repleta de flertes entre os protagonistas. Literalmente presos um ao outro em uma provocativa paródia do casamento, Donat e Carroll enchem seus diálogos belicosos de pequenas indiretas – quando a perseguição lhes dá um tempo para respirar, é claro –, transformando este thriller de espionagem na mais improvável das histórias de amor.”
“A trama realmente não interessa muito”, diz o livro The Films of Alfred Hitchcock.
Toda a trama é quase periférica, diz um admirador do grande mestre. A trama realmente não interessa muito, diz outro.
Ao rever o filme agora, alguns poucos dias após ter visto de novo, e adorado, Pavor nos Bastidores (1950) – considerado de forma praticamente unânime como “um Hitchcock menor” –, confesso que não gostei nada.
Achei tudo, tudo, tudo artificial, de uma forma desagradavelmente artificial, distante de tudo que remeta a algo longinquamente parecido com a vida, cette chienne.
E senti falta de uma trama que tivesse sentido.
A rigor, a rigor, senti falta de uma trama – que tivesse sentido ou não.
Estou de fato ficando velho demais. Ando tão Matusalém que gosto de filmes que tenham uma trama.
Anotação em abril de 2017
Os 39 Degraus/The 39 Steps
De Alfred Hitchcock, Inglaterra, 1935
Com Robert Donat (Richard Hannay), Madeleine Carroll (Pamela), Lucie Mannheim (Miss Annabella Smith), Godfrey Tearle (professor Jordan), Peggy Ashcroft (a mulher do agricultor), John Laurie (o agricultor), Helen Haye (Mrs. Jordan), Frank Cellier (o xerife), Wylie Watson (Mr. Memory), Gus McNaughton (comerciante no trem), Jerry Verno (comerciante no trem), Peggy Simpson (empregada)
Roteiro e adaptação Charles Bennett e Alma Reville
Baseado na novela de John Buchan
Diálogos adicionais Ian Hay
Fotografia Bernard Knowles
Música Jack Beaver e Louis Levy
Montagem Derek N. Twist
Produção Gaumont British Picture Corporation. DVD NBO Editora.
P&B, 86 min
R, **
Eu acho Os 39 Degraus bem divertido, e aqui – não é sempre – a fragilidade do enredo não chega a me incomodar. Eu li o romance e de fato a figura da personagem feminina não existe. Mas com esse casal improvável, que briga e foge junto, que Hitchcock parece ter começado a colocar essa característica em seus filmes: a de um homem e uma mulher que, juntos, enfrentam o perigo e se aliam /apaixonam durante a situação. Isso se repetiria em Jovem e Inocente (1937), de certa forma em A Dama Oculta (1938), em Sabotador (1942) e, também de certa maneira, em Janela Indiscreta (1954) sendo que aqui os dois já se conhecem e se gostam (J. Stewart e Grace Kelly). Também se poderia ver assim a ligação entre Cary Grant e Eve Marie Saint em Intriga Internacional, de 1959, não acha?
Só me resta dizer que Robert Donat, um dos maiores talentos do cinema, morreu jovem, fez poucos filmes e muita falta. Mais um dos atores que j’adore, motivo pelo qual revejo sempre esse filme.
Sérgio,
Ouça http://filmesclassicos.com.br/2014/11/14/episodio-3-alfred-hitchcock-a-fase-britanica-parte-2/
a partir de 30:30
Grande abraço!
37:30…
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