Em Cavalos Selvagens/Wild Horses, de 2015, seu quinto filme como diretor, o grande Robert Duvall criou para ele mesmo interpretar um tipo nada simpático, um homem vaidoso, dominador, brutal, homofóbico, suspeito de um crime.
Não é uma novidade em sua exígua filmografia como diretor. Podemos excluir as suas duas primeiras realizações, já que nelas ele não trabalha como ator: We’re Not the Jet Set (1977) é um documentário sobre uma família de Nebraska dedicada aos rodeios, e Angelo My Love (1983) mostra o pouco conhecido mundo dos ciganos em Nova York.
Em O Apóstolo (1997), que escreveu e dirigiu, ele interpreta um pastor corroído pelo ódio depois de flagrar a mulher tendo um caso com um outro ministro religioso. Em O Tango e o Assassino/Assassination Tango (2002), também escrito por ele mesmo, Duvall faz um veterano matador de aluguel que viaja para Buenos Aires encarregado de executar um general.
Cavalos Selvagens, portanto, é o terceiro de seus cinco filmes como autor em que ele escolhe interpretar um tipo à margem da lei.
O fascinante é que, para interpretar o herói, no caso a heroína, a oficial dos Texas Rangers encarregada de investigar um caso de desaparecimento que acabará envolvendo como suspeito o próprio personagem de Duvall, o veterano ator escolheu sua mulher, a jovem e bela Luciana Pedraza. Ou, como está escrito nos créditos, Luciana Duvall.
Luciana Pedraza, hoje Duvall, é uma argentina da cidade de Salta, onde nasceu em 1972, ano em que o ator, então com 41 anos de idade, interpretou Tom Hagen, o consiglieri da família mafiosa chefiada por Don Corleone em The Godfather.
Quando ele esteve em Buenos Aires para as filmagens de O Tango e o Assassino, colocou-a no filme como Manuela, uma exímia dançarina que ensina para o matador de aluguel os complicados passos da dança que encanta o mundo inteiro. Duvall, que já havia sido casado no papel três vezes, viveu com Luciana durante sete anos antes de, finalmente, em 2004, casar-se com ela diante do juiz.
Algum eventual leitor poderá achar que esses fatos aí não importam, são apenas fofocas, banalidades da vida pessoal dos atores que não deveriam ser levadas em conta.
Não acho isso, não. O fato de Duvall colocar Luciana como a heroína da história que criou (ao lado de Michael Shell) é um importante elemento para a gente entender que esse senhor de respeito é um diretor que faz filmes pessoais, à sua própria moda. Ele paira acima de todos os modismos. Paira acima dos interesses da própria indústria. Não precisa da máquina de Hollywood para fazer seus filmes. Faz o que bem entende.
Algo, convenhamos, que não é nada comum.
Bem no começo, o pai flagra o filho abraçado a outro rapaz
Cavalos Selvagens começa com um intróito. De noite, dentro de um estábulo numa fazenda, duas pessoas conversam uma conversa que envolve amor, planos para o futuro. O espectador tem que fazer esforço para ouvir o que está sendo dito: as duas pessoas falam baixinho, como em geral acontece numa conversa de amantes abraçados, talvez, ou provavelmente, depois de uma trepada.
São dois adolescentes – dois homens.
Um homem chega, ouve um pouco a conversa, abre a porta, dá um tiro para cima. Os dois garotos estão, obviamente, assustados, mortos de medo, mas a câmara não se demora nos rostos deles. Na verdade, a câmara é bastante evasiva nessa sequência inicial: propositadamente, não mostra com clareza, com explicitude, o que está acontecendo.
O homem – é a voz facilmente reconhecível de Robert Duvall – grita para que o seu filho saia de sua fazenda na manhã seguinte, desapareça dali, vá viver com a mãe, leia a Bíblia, que proíbe vadiagem e veadagem. E, para o outro rapaz, berra que saia já dali.
A câmara não mostra com clareza, está de noite, escuro demais, mas dá para perceber que aconteceu alguma coisa imprevista, porque a voz do homem demonstra susto, quase pânico, enquanto ele chama por Pedro, pede ajuda a Pedro.
Corta, e um letreiro avisa: “15 anos mais tarde”.
O ricaço poderoso faz uma boa ação; policiais vêem uma cena pavorosa
Seguem-se então duas sequências um tanto rápidas, uma delas não tendo nada a ver com a outra, e o espectador poderá ficar, neste início de filme, um tanto confuso.
Vemos Robert Duvall cavalgando num planalto imenso, sem fim, à la os velhos westerns de John Ford. Saberemos logo em seguida que ele é Scott Briggs, fazendeiro muito, muito rico daquele pedaço do Sul do Texas, fronteira com o México.
Alguém o chama no celular. Ele atende. Num riacho que faz a fronteira entre o Texas e o México, há um grupo de mexicanos e uns poucos americanos. Uma jovem mulher está do lado americano, com um bebê, e diversos homens estão do lado mexicano.
Briggs chega com a autoridade de um coronel nordestino, o manda-chuvas do lugar. Informam a ele que a mulher quis escapar para os Estados Unidos para dar uma vida melhor ao filhinho, mas aqueles homens, da família do marido dela, queriam resgatar o garoto. Briggs dá tiros para o alto, manda os mexicanos sumirem dali – que não tentem de novo cruzar a fronteira, ou levarão bala.
Um manda-chuva local que faz um ato de caridade, de misericórdia: protege a mexicana que entra ilegalmente no país.
Corta, e vemos dois policiais, dois Texas Rangers, um homem mais velho, evidentemente um superior hierárquico, e uma mulher, entrando, armas na mão, apontadas para a frente, numa casa um tanto isolada, num pequeno sítio.
É uma pavorosa cena de crime. No chão da cozinha jaz uma mulher, no meio de uma poça de sangue. Há sangue espalhado pelo fogão. Perto da mulher, embaixo da mesa, há duas crianças bem pequenas, que ainda engatinham.
Os policiais se certificam de que não há mais ninguém na casa. O assassino, os assassinos, sejam eles quem forem, já haviam saído dali. Os policiais se aproximam cuidadosamente das crianças, pegam-nas no colo, e tratam de sair com elas dali.
Essa sequência, a terceira do filme, me deixou um tanto desarmado, um tanto confuso.
Demora um tantinho para ficar claro que aquele assassinato da mãe dos bebês não terá nada a ver com a trama, com a história do filme. É incidental. Serve apenas para nos apresentar o capitão dos Rangers do lugar e a policial Samantha Payne – o papel de Luciana Pedraza Duvall.
Uma senhora reclama que nunca houve pistas do filho desaparecido há 15 anos
O capitão e a Ranger de quem ele gosta, que ele respeita, recebem, no seu escritório, a visita de uma senhora mexicana, Mrs. Davis (o papel da ótima mexicana Adriana Barraza, sete prêmios fora 18 indicações, inclusive o Oscar de coadjuvante por Babel, de 2006). A senhora Davis é agora viúva de um cidadão americano, e é também, faz tempo, cidadã americana.
Ela foi até os Rangers para dizer que nunca havia sido solucionado o caso de desaparecimento de seu filho, o jovem Jimmy, que trabalhava cuidando dos cavalos de raça da fazenda de Scott Briggs, e era muito amigo do filho caçula do fazendeiro, Ben Briggs. Quinze anos antes, ele havia desaparecido, nunca mais tinha sido visto, e a polícia nunca havia encontrado uma pista sequer.
O capitão dos Rangers diz à senhora Davis que nenhum caso de desaparecimento é considerado fechado. Que a policial Samantha vai dar toda atenção ao caso.
As investigações de Samantha levarão à suspeita de que Scott Briggs tem a ver com o desaparecimento do garoto Jimmy.
Um firme ataque à homofobia e ao machismo
Paralelamente às investigações, Briggs está reunindo a família para apresentar seu testamento. Está velho, o fim está próximo, ele quer deixar tudo às claras.
Ben, o caçula que havia sido expulso 15 anos antes, volta à fazenda paterna pela primeira vez – ele é interpretado por James Franco.
Há um irmão bem mais velho, Jimmy (Darien Willardson). O filho do meio, KC (o papel de Josh Hartnett), é o que mais se parece com o velho Briggs. É um excelente cavaleiro, sabe domar os animais, e está ensinando o seu filho, Buster (Miller McConaughey), o xodó do vovô, a montar tão bem quanto seus antecessores na linhagem familiar.
E há ainda uma filha de criação, que é o outro xodó do velho Briggs, a bela Maria, filha de uma antiga empregada da fazenda, uma mexicana. Maria é interpretada por Angie Cepeda (na foto acima), uma beldade colombiana de Cartagena de las Indias nascida em 1974 e que começou a carreira de atriz na televisão de seu país. Em 1999, teve a grande oportunidade de fazer o principal papel feminino em Pantaleão e as Visitadoras (2000), adaptação do livro de Mario Vargas Llosa que fez tremendo sucesso na América Latina.
As histórias vão se cruzar – as da família Briggs e a investigação feita por Samantha.
Uma jovem policial investigar um caso que tem como suspeito um ricaço, um manda-chuva local, é sempre uma luta de Davi contra Golias.
É um belo filme, este que o velho Robert Duvall nos oferece. Aos 84 anos bem vividos, o grande ator faz um firme ataque à homofobia e ao machismo, numa história envolvente, bem contada.
Anotação em outubro de 2016
Cavalos Selvagens/Wild Horses
De Robert Duvall, EUA, 2015
Com Robert Duvall (Scott Briggs), James Franco (Ben Briggs), Josh Hartnett (KC Briggs), Luciana Pedraza (Samantha Payne), Angie Cepeda (Maria Gonzales), Jim Parrack (Rogers, assistente do xerife), Miller McConaughey (Buster Briggs, o neto), Darien Willardson (Jimmy Davis), Joaquin Jackson (Jackson, dos Texas Rangers), Chance Rodriguez (Cody Payne, o filho de Samantha), Devon Abner (Johnny Briggs), Gil Prather (Milo), Adriana Barraza (Mrs. Davis)
Roteiro Robert Duvall
Baseado em história de Robert Duvall e Michael Shell
Fotografia Barry Markowitz
Música Timothy Williams
Montagem Cary Gries
Produção Patriot Pictures.
Cor,100 min
***
Robert Duvall é tão maravilhoso que estar vivo e tão bem é uma alegria.