La Isla Mínima, que no Brasil ganhou o título de Pecados Antigos, Longas Sombras, o sexto longa-metragem do jovem diretor espanhol Alberto Rodríguez, impressiona desde as primeiras tomadas – belíssimas, de uma beleza estranha, rara, fascinante.
São um pouco como pinturas abstratas, com muitas cores, mas sem figuras. Algumas imagens parecem desenhos de pedaços do cérebro ou do intestino, como os que vemos nos livros sobre biologia, anatomia do corpo humano.
Vamos vendo diversas imagens assim, enquanto rolam os créditos iniciais deste ótimo filme – um thriller, um policial sombrio, pesado, denso, com um perturbador clima noir. É bem possível que o espectador demore um pouquinho, alguns segundos – como eu demorei – a perceber com clareza que aquelas são fotos aéreas de uma região em que há muita água: um grande rio, rios menores, sinuosos, cheios de curvas, canais artificiais absolutamente retos.
Verifiquei depois que são fotos assinadas por Hector Garrido, que foram publicadas em um livro chamado Armonia Fractal de Doñana y las marismas. “Marisma” é pântano – o título do filme em inglês é exatamente Marshland, pântano. Doñana é o nome de um parque nacional situado na Andaluzia, estremo sudoeste da Espanha, de frente para o Oceano Atlântico, entre Gibraltar e a fronteira com Portugal.
Toda a ação do filme se passa naquela região cheia de pântanos e cortada pelo caudaloso Rio Guadalquivir, seus afluentes e os canais para irrigação construídos ali. É uma região eminentemente agrícola, responsável por quase metade de toda a produção espanhola de arroz.
Dois policiais de Madri são enviados a um distante vilarejo
Ao final dos créditos iniciais, vemos dois homens parados junto de um canal artificial, no meio do nada. Estão de gravata – o que dá uma sensação de estranhamento, no meio de um ambiente rural em que não se enxerga qualquer resquício de civilização. São os protagonistas da história, Juan e Pedro (interpretados respectivamente por Javier Gutiérrez e Raúl Arévalo, em excelentes atuações), dois detetives da Polícia de Madri que foram enviados para uma cidadezinha da Andaluzia, Villafranco, para investigar o desaparecimento de duas jovens do lugar.
O carro em que estavam havia quebrado ali no meio do nada, e eles acabam de chegam até a cidadezinha socorridos por alguém que passou pela estrada com seu trator. Um deles explica isso ao chegar ao acanhado hotel do vilarejo. A moça do hotel informa que, como eles haviam demorado a chegar, um dos quartos reservados havia sido ocupado, e então, naquela primeira noite, os dois homens teriam que dividir um único quarto.
Um letreiro no início da ação nos informa o dia exato em que os policiais Juan e Pedro chegaram àquele lugar distante, extremamente distante de tudo: 20 de setembro de 1980. Saber a data é importante. Não estamos nos dias de hoje, nos dias em que o filme foi lançado – 2014. Era 1980, e a Espanha mal saía da ditadura do generalíssimo Francisco Franco – Franco morreu em 1975, e a nova Constituição tornou o país democrático em 1978, mas durante os primeiros anos da nova ordem houve protestos e grande agitação social.
Os fantasmas da ditadura estarão muito presentes ao longo de toda a narrativa. La Isla Minima é daquele tipo de filme policial que dá tanta importância aos personagens, à psicologia dos protagonistas, quanto à trama, ao caso investigado em si.
Na verdade, dá ainda mais importância aos personagens e aos conflitos entre eles que à trama policial.
O espectador percebe de imediato que os dois detetives não são amigos, parceiros. Foram reunidos para aquela missão no lugar distante, mas não se dão bem – ao contrário. Pedro, bem mais jovem que o colega, é esquerdista – ou, no mínimo, um anti-franquista resoluto, radical. Despreza profundamente Juan, que tem fama de achacador – e de ter trabalhado para a polícia política da ditadura. Quando a narrativa já está bem adiantada, um jornalista da região dirá a Pedro que Juan pertenceu à Brigada Político-Social, “a Gestapo de Franco”, e que matou com dois tiros uma moça em uma manifestação. Juan negará o crime, dirá que foi um parceiro que atirou.
Na parede do quarto, um crucifixo com fotos de Franco e Hitler
Ainda na primeira noite que passam na cidadezinha, os dois detetives vindos da capital recebem a visita de dois policiais militares do lugar. Eles contam o que sabem sobre as moças desaparecidas, duas irmãs, Estrella, de 17 anos, e Carmen, de 16.
Dá-se um diálogo tenso entre Pedro e um dos policiais do lugar – um diálogo pesado e que mostra para o espectador, bem rapidamente, bastante do caráter do jovem.
Pedro: – “É a primeira vez que elas desaparecem?”
Policial: – Não, elas já têm fama. Mas sempre voltam até a hora de dormir.”
Pedro (cara muito séria): – “Fama de quê?”
Policial (expressão meio brincalhona): – “Fama, você sabe.”
Pedro: – “Não, não sei.”
Policial: – “Elas gostam de se divertir.”
Pedro: – “Você não gosta?”
Policial (agora bem sério): – “Fama de serem fáceis”.
Corta, e vemos Juan e Pedro num estande de tiro de uma dessas feiras que costumam acontecer uma vez a cada ano nas pequenas cidades do interior. Juan comenta, como quem não quer nada: – “Não é uma boa hora para criticar os militares.” Pedro revida com dureza: – “O que aquele fascista disse é contra a democracia.”
E Juan: – “Este país não é democrático. Não estamos acostumados.”
No quarto que terão que dividir naquela primeira noite, Pedro olha um crucifixo pendurado na parede.
Na Guerra Civil Espanhola, em que foram derrotados pelos monarquistas liderados por Franco e apoiados pelo nazismo, os republicanos sempre associaram o inimigo à Igreja Católica. Os espanhóis anti-franquistas costumam ter imenso ódio ou no mínimo desprezo pela Igreja.
Revi um trecho do filme antes de fazer esta anotação, e paralisei a imagem para ver direito o crucifixo que Pedro observa. Coladas nele há quatro fotos tipo 3 x 4; uma delas é de Adolf Hitler; não reconheci os outros três, mas um deles com toda certeza é Franco.
Pedro tira o crucifixo da parede e o joga dentro de uma gaveta.
Um é sério o tempo todo, o outro parece desatento
Não é apenas na questão política que Juan e Pedro se distanciam. Eles parecem opostos em uma série de características. Pedro é casado, a mulher está grávida, ele liga para ela todos os dias. Juan, se já foi casado alguma vez, se separou – é agora um sujeito de meia idade solteiro; não há menção a filhos.
Juan bebe bastante, e adora comida; Pedro é moderado no comer e não bebe.
Pedro parece estar sempre sério, dedicado ao caso que estão investigando. Juan às vezes parece que está um tanto alheio, que está pouco ligando para a investigação – mas logo o espectador verá que essa é só a impressão que ele deixa. Na verdade, é um policial competente e dedicado como o mais jovem – só tem um ar mais blasé, menos sisudo.
Já naquela primeira noite, depois que os dois discutem junto do estande de tiro ao alvo na feira, Pedro vai para o hotel dormir. Juan continua bebendo – e vai se juntar a um grupo que bebe algumas numa mesa próxima.
Não vemos Juan bebendo com os locais – corta-se a cena quando ele está pegando bebida para ir se sentar na mesa com o grupo de homens. Mas na manhã seguinte o policial veterano contará para o colega que, na conversa com as pessoas do lugar, ficou sabendo que as duas moças haviam dito para amigas que gostariam de sair de Villafranco.
Juan e Pedro vão à escola que as duas irmãs frequentavam, e conversam com um grupo de garotas. Perguntam se Estrella e Carmen já haviam dito que gostaria de sair dali – e as adolescentes respondem que todo mundo gostaria de sair daquele fim de mundo.
Enquanto os policiais estão conversando com as estudantes, numa sala de aula, um rapaz bate no vidro da janela basculante. As moças dizem que é o Quini (Jesús Castro), namorado de uma delas. Esse Quini terá importância na trama.
Uma teia intrincada, em que tudo cheira a corrupção, sordidez
O pai das irmãs desaparecidas é um balseiro, dirige uma balsa que faz a travessia do rio de carros e pedestres. Os dois policiais o encontram na balsa, e vão com ele até sua casa humilde, onde agora apenas está a mãe das moças, Rocío (Nerea Barros, na foto acima), uma mulher de beleza forte, estranha. Pedem licença para examinar o quarto das moças, xeretam tudo.
O pai se demonstra irritadiço, sem paciência com os policiais, e joga na cara deles que eles só estão ali porque um primo de sua mulher trabalhou com o juiz Andrade – figura importante na região.
Rocío se aproveita de um momento em que o marido não está no mesmo aposento e entrega a Juan um envelope. Diz que encontrou aquilo num braseiro, e o marido não pode saber, caso contrário mataria as filhas.
Os dois policiais examinam o conteúdo do envelope quando se vêem de volta no carro. É um pedaço de filme fotográfico já revelado, um negativo – era 1980, é bom lembrar -, e nele estão duas jovens, seguramente as garotas Estrella e Carmen, nuas.
A investigação sobre o desaparecimento das duas moças levará a uma série bastante intrincada de fatos e personagens. Os dois policiais descobrirão que, poucos anos antes, em 1977, outra moça do lugar havia desaparecido, e, em 1978, ainda uma outra havia igualmente sumido.
Os dois serão chamados por uma mulher conhecida como vidente, Angelita, que dá uma pista sobre o paradeiro das duas irmãs. Quando bate o olho em Juan, Angelita se assusta. Juan pergunta o que foi, ela diz que não é nada – mas o espectador poderá notar que Angelita percebeu que Juan tem uma doença grave.
Surgirá na história um traficante de drogas, e também um esquema de pornografia com adolescentes. E, finalmente, um serial killer. Tudo se liga, tudo é emaranhado, tudo cheira a corrupção, bandalheira, sujeira, sordidez – como nos mais perfeitos filmes noir.
Uma crítica compara o clima do filme a obras de Lynch e Fincher
Na revista eletrônica Sight & Sound, do BFI, encontrei um longo e belo texto assinado por Maria Delgado sobre o filme, que foi lançado na Inglaterra em agosto de 2015. Lá pelas tantas, a crítica compara o filme às obras de David Lynch e David Fincher. Transcrevo o trecho:
“Com Marshland, Rodriguez confeccionou um thriller brilhante, convincente, infundido com um fantástico espírito gótico impregnado de David Lynch e David Fincher. Há sequências de perseguição tanto na água quanto na terra, e pistas que vão em direção a diversos suspeitos, levando os detetives a um labirinto tão confuso quanto os próprios cursos d’água. Frequentemente o espectador tem a oportunidade de ver o que ocorre como se fosse um pássaro, lá no alto, uma privilegiada posição estratégica da qual ele pode examinar as imagens dos remotos pântanos.”
Maria Delgado tem toda razão em realçar isso, que eu estava deixando escapar. Em alguns momentos, a câmara do diretor Alex Catalán filma bem do alto – como uma câmara que faz aerofotogrametria. Essas tomadas, de deslumbrante beleza, remetem, é claro, ao trabalho do fotógrafo Hector Garrido em seu livro Armonia Fractal de Doñana y las marismas, de onde foram retiradas as imagens que vemos nos créditos iniciais do filme.
Não tenho idéia de como Alberto Rodríguez e Alex Catalán conseguiram filmar essas tomadas. Não foi com um guindaste, uma grua – porque a altura é muito, muito grande. Deve talvez ter sido de um helicóptero, ou um balão inflável. Não me preocupo muito em saber como se consegue filmar tal e tal coisa, como funciona a coisa de efeitos especiais, esse tipo de coisa. Me preocupo é com o resultado.
E o resultado do uso dessas tomadas no filme é brilhante.
Um filme que comprova o vigor no cinema que se faz na Espanha
La Isla Mínima teve incríveis 16 indicações ao Goya, o principal prêmio do cinema espanhol. Foi o grande ganhador do Goya no ano de 2015, arrebanhando 10 estatuetas, inclusive as de melhor filme, melhor diretor, melhor ator para Javier Gutiérrez, melhor nova atriz para Nerea Barros, melhor roteiro original, melhor fotografia e melhor montagem.
Ao todo, o filme teve 43 prêmios e outras 40 indicações.
O diretor Alberto Rodríguez é também o autor da história original e do roteiro, ao lado de Rafael Cobos. Ele é de Sevilha, a principal cidade da Andaluzia, a cidade grande mais próxima do Parque Nacional do Doñana e da cidadezinha onde se passa a ação do filme. Nasceu em Sevilha em 1971 – nove anos apenas antes da época em que se passa a história que criou e filmou, quatro anos antes da morte de Franco e do fim da ditadura que durou três décadas e meia. Formou-se na Universidade de Sevilha, na Faculdade de Ciências da Informação.
Não vi nenhum dos outros cinco filmes realizados por Rodríguez, mas só por este La Isla Mínima dá para saber que esbanja talento. Ele é mais uma prova do vigor no novo cinema espanhol, que não me cansa de me surpreender.
Só para lembrar alguns outros exemplos:
Agustí Villaronga, de Pão Preto/Pa Negre (2010).
Álex de la Iglesia, de Enigmas de um Crime/The Oxford Murders (2007).
Daniel Sánchez Arévalo, de Azul Escuro Quase Preto/Azuloscurocasinero (2006).
Daniela Féjerman e Inês Paris, de Minha Mãe Gosta de Mulher/A Mi Madre Le Gustan Las Mujeres (2002).
David Pinillos, de Bon Appétit (2010).
Eduard Cortés, de Tirando a Sorte Grande/Los Pelayos (2012).
Fernando León de Aranoa, de Segunda-feira ao Sol/Los Lunes ao Sol (2002) e Princesas (2005).
Fernando Trueba, de A Dançaria e o Ladrão/El Baile de la Victoria (2009) e Chico & Rita (2010).
Iciar Bollaín, de Pelos Meus Olhos/Te Doy Mis Ojos (2003).
Isabel Coixet, de Minha Vida Sem Mim/Mi Vida Sin Mí (2003), A Vida Secreta das Palavras/La Vida Secreta de las Palabras (2005), Fatal/Elegy (2008).
Juan Antonio Bayona, de O Impossível/Lo Impossible (2012).
Kike Maillo, de Eva – Um Novo Começo/Eva (2011).
Oskar Santos, de Mãos Que Curam/El Mal Ajeno (2010).
Ventura Pons, de, entre outros, Anita Não Perde a Chance/Anita No Perd el Tren (2000).
E, claro, Alejandro Amenábar, de Morte ao Vivo/Tesis (1996), Os Outros/The Others (2001), Mar Adentro (2004).
São muitos diretores bons, são muitos filmes bons. Depois de décadas de ditadura, a Espanha enfrentou nos últimos anos uma crise econômica bravíssima – mas seu cinema é hoje um dos melhores do mundo.
Anotação em março de 2016
Pecados Antigos, Longas Sombras/La Isla Mínima
De Alberto Rodríguez, Espanha, 2014
Com Javier Gutiérrez (Juan), Raúl Arévalo (Pedro),
e Antonio de la Torre (Rodrigo), Nerea Barros (Rocío), Salva Reina (Jesús), Jesús Castro (Quini), María Varod (Trinidad), Jesús Ortiz (Andrés), Jesús Carroza (Miguel), Ana Tomeno (Marina)
Argumento e roteiro Rafael Cobos e Alberto Rodríguez
Fotografia Alex Catalán
Música Julio de la Rosa
Montagem José M. G. Moyano
Produção Atresmedia Cine, Atresmedia, Atípica Films, Audiovisual Aval SGR, Canal Sur Televisión, Canal+ España, AXN.
Cor, 105 min
***1/2
Título em inglês: Marshland.
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