A Guerra Fria está de volta, um quarto de século depois da implosão do Império Soviético. Só mudou o nome do inimigo número 1 dos Estados Unidos da América: em vez de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, agora é a Federação Russa.
Os russos, de novo! Sempre eles!
A Guerra Fria está de volta na terceira temporada de House of Cards, em que há um presidente russo idêntico, mas idêntico mesmo, a Vladimir Putin. E está de volta também neste Operação Sombra – Jack Ryan.
Desta vez, os russos não ameaçam o Império Capitalista com ogivas nucleares, e sim com uma arma mais perigosa ainda: as transações financeiras do mundo globalizado.
Os russos estão chegando, os russos estão chegando – e com as mesmas armas do grande inimigo: o capitalismo! O capital. Das Kapital.
O chefão de Jack Ryan na financeira de Wall Street diz para ele: “É ideológico, Jack. Só que agora a ideologia deles é o dinheiro!” (A frase pode não ser essa ipsis literis, mas quer dizer exatamente isso.)
Como o mundo globalizou – para o horror, o nojo dos ainda comunistas –, essa nova aventura de Jack Ryan, o super-homem criado pelo escritor Tom Clancy, é uma co-produção Estados Unidos-Rússia!
Não é fantástico? Hollywood e Moscou, juntos e ao vivo, para entreter e divertir as massas com um filme de ação, aventura, um pouco de espionagem mostrando um episódio da Guerra Fria, revista e atualizada.
Quem dirige o espetáculo é um inglês: o grande Kenneth Branagh, que ora faz um Shakespeare, ora faz qualquer outra coisa – e tudo que faz, faz muitíssimo bem feito.
Como quem parte e reparte e não fica com a melhor parte ou é bobo ou não tem arte, Kenneth Branagh reservou para si o papel do vilão, o ultra maquiavélico Viktor Cherevin. Viktor Cherevin é um vilão muito mais vilão do que qualquer Capitão Gancho do Peter Pan ou Coringa do Batman. A primeira vez que o vemos, ele está sendo atendido por um enfermeiro que lhe aplica uma injeção; o sujeito comete algum pequeno erro, e então Viktor Cherevin o espanca brutalmente, para, em seguida, pegar a seringa e continuar a se aplicar a injeção.
Mais tarde, ameaçará alguém de morte de uma maneira que eu jamais tinha ouvido falar na vida, que me parece o máximo do máximo do sadismo: obrigando a pessoa em questão a engolir uma lâmpada – o vidro, fininho, se quebra em milhares de pedacinhos e vai furando tudo.
Ai! Que terrível divulgar essa idéia sádica!
Ator brilhante, Kenneth Branagh fala em inglês com um terrível sotaque – e, quando seu personagem conversa com russos, fala em russo. Tenho certeza quase absoluta que Branagh, perfeccionista, estudou um pouco de russo para o papel, e teve professor para orientá-lo a falar na sua própria língua fingindo ter um sotaque eslavo pesadíssimo.
Um jovem e brilhante estudante de Economia vira um brilhante militar
Viktor Cherevin, retrato do mal em si elevado à enésima potência, só vai aparecer em cena quando o filme está aí com uns 20 minutos, talvez até um pouco mais de 25. Antes disso, acontece muita coisa – e bota muita coisa nisso.
Abre com imagens aéreas de Londres. Como se fosse necessário, ainda surge a palavra London na tela. E em seguida vemos um garotão alto, bonitão, deitado num banco de praça, a cabeça recostada sobre um livro de Economia. Ele começa a perceber uma movimentação grande, um zumzumzum estranho. Entra no campus da London School of Economics, aquela coisa assim elite da elite da elite da educação mundial, pergunta o que está acontecendo. Alguém diz algo tipo “você é americano, né? meus sentimentos” – a televisão está mostrando o ataque terrorista às Torres Gêmeas no 11 de setembro de 2001.
Corta, e na tela há a palavra “Afghanistan”, e a informação “2003, 18 meses depois”. O rapaz que estudava Economia é agora tenente das forças armadas americanas e está chefiando uma missão de reconhecimento em território taliban, em um grande helicóptero militar. O grupo de quatro ou cinco militares conversa animadamente – até que um morteiro, obus ou seja lá o que for inimigo atinge o helicóptero.
Corta, e o sargento está sendo examinado às pressas num hospital de campanha dos americanos. Os médicos se certificam de que o estado dele é gravíssimo, a coluna vertebral foi partida – e é absolutamente inimaginável como ele conseguiu carregar para fora da zona de perigo dois de seus companheiros.
Corta mais uma vez, e o jovem que era estudante brilhante de Economia em uma das melhores escolas do mundo e havia interrompido o curso para servir à pátria depois dos ataques terroristas do 11/9 e tinha sido um herói, está em recuperação num grande hospital militar nos Estados Unidos.
O jovem super-homem é interpretado por Chris Pine, e seu nome está no título do filme – é Jack Ryan.
Tom Clancy (1947-2013), o cara que inventou Jack Ryan, foi um dos escritores que mais sucesso tiveram com livros de espionagem e feitos militares que se passam durante a Guerra Fria e depois dela. Acho que dá para dizer, com alguma segurança, que ele se alinha no mesmo patamar de John Le Carré, Frederick Forsyth e Ian Fleming. Dezessete de suas novelas chegaram às principais listas de best-sellers, com mais de 100 milhões de cópias vendidas. Várias delas viraram filmes de sucesso.
Jack Ryan foi interpretado por Alec Baldwin em Caçada ao Outubro Vermelho (1990), por Harrison Ford em Jogos Patrióticos (1992) e também em Perigo Real e Imediato (1994). Em A Soma de Todos os Medos (2002), veio na pele de Ben Affleck.
Agora, ressurge na interpretação desse garoto Chris Pine, de quem eu, ignorante absoluto, jamais tinha ouvido falar. Ou melhor, de quem não guardei o nome. Fazendo agora uma busca no 50 Anos de Filmes, vejo que Chris Pine teve papel importante em O Julgamento de Paris/Bottle Shock (2008), um divertido filme sobre vinhos californianos.
Chris Pine é californiano com os vinhos de O Julgamento de Paris e de Sideways, e tem Hollywood no sangue: nasceu (em 1980, quando minha filha, aos cinco anos, começava a ver filmes comigo) em Los Angeles, filho de ator e atriz e neto de atriz. Começou a carreira aos 23 anos na série Plantão Médico, e já estrelou comedinha romântica com Lindsay Lohan (Sorte no Amor, 2006) e vários filmes da nova série de Star Trek versão J. J. Abrams, no papel do Capitão Kirk.
Os grandes inimigos agora são os traficantes e terroristas
Jack Ryan parece ter adquirido vida própria. Não precisa mais de Tom Clancy. Virou um genérico, algo assim como um moderno James Bond, que não precisa mais de Ian Fleming para existir. Toda essa história aqui não tem nada a ver com Tom Clancy – a não ser o nome de Jack Ryan, super-homem a serviço da CIA. É uma criação de Adam Cozad e David Koepp, que assinam o roteiro original do filme.
O Jack Ryan da dupla Cozad-Koepp é homem de sorte grande, além de grande talento tanto para a Economia quanto para a espionagem. Pois não é que quem vai cuidar dele nas exaustivas sessões de fisioterapia vem na pele linda de Keira Knightley? Ela faz Cathy, estudante de Medicina, terminando o curso mas devendo uns pontos justamente em fisioterapia. Quando Jack cai no chão, absolutamente exausto e sofrendo dores descomunais, ela explica para ele que precisa de pontos em fisioterapia, e ele ajudaria muito se conseguisse se levantar e fazer seus exercícios.
Bem do alto, de um mezanino sobre a área em que os dois jovens estão ali iniciando o que talvez pudesse vir a ser um relacionamento, um senhor de ares respeitáveis observa tudo. Vai voltar ao hospital de recuperação de feridos algum tempo depois e levar um papo com o rapagão. Chama-se Thomas Harper, é interpretado por Kevin Costner, e é alto oficial da Marinha. Sabe tudo sobre Jack Ryan. Sabe que ele estava preparando um doutorado na London School of Economics sobre determinado assunto, que chefiava missão em helicóptero abatido no Afeganistão e que, mesmo gravissimamente ferido, salvou dois subordinados.
E por que você não terminou seu PhD?, pergunta o almirante Harper. Porque eu me alistei para servir ao meu pais, responde o jovem super-homem. Pois bem, retruca o almirante: agora quero que você volte a servir a seu país numa outra posição.
E quem é você?, pergunta o rapaz. Sou da CIA, diz o almirante – e o rapaz não acredita.
Mas é verdade. Harper explica o que ele quer de Jack: que ele retome os estudos, termine seu PhD, arranje excelente emprego numa grande firma de Wall Street – e trabalhe ali, disfarçado, sem que ninguém, ninguém, ninguém saiba, para a CIA, identificando transações suspeitas que possam levar a grandes grupos de traficantes de droga ou fornecedores de fundos para extremistas.
Estamos neste momento com 12 minutos de filme. Em 12 minutos, Jack Ryan viu os ataques terroristas de 11/9, abandonou os estudos, foi lutar pelo seu país no Afeganistão, foi gravissimamente ferido, enfrentou tenebroso período de recuperação, e foi recrutado pela CIA para trabalhar no umbigo do sistema financeiro mundial.
Nesse instante, com 12 minutos de narrativa, surge o nome do filme – só isso, mais nada, nem nome de diretor, nem dos principais atores – e um letreiro informa que agora estamos em Nova York, 10 anos depois. 2013, portanto. Agora, os dias de hoje – o filme foi lançado na Rússia e nos Estados Unidos em janeiro de 2014.
Jack Ryan trabalha numa grande empresa financeira. Vive com a maravilhosa Cathy, agora médica experiente – mas não estão casados. Cathy, ao contrário de muitas mulheres, não quer saber desse negócio de vestido de noiva, aliança, festa, papel assinado, alguém falando aquele palavrório todo que tanta mulher ama de paixão, to have and to hold from this day forward, for better, for worse, for richer, for poorer, in sickness and in health, to love and to cherish, till death do us part.
Como não estão casados, os regimentos da CIA o impedem de contar a ela que ele está na lista de pagamentos da agência.
Prepara-se um ataque especulativo global para derrubar a economia dos EUA
A financeira em que Jack Ryan trabalha – onde ninguém sabe, é óbvio, que ele é da CIA – tem amplos negócios com uma megacorporação financeira russa.
Jack fica intrigado com negócios da sócia russa de seus patrões. Investiga, investiga, percebe que não consegue ter acesso a vários dos dados da empresa. Como é super-homem, super-dotado, junta informações daqui e dali, e chega à conclusão de que aquela megacorporação está preparando um golpe gigantesco, ciclópico, contra a economia americana. Será um ataque especulativo global, lançado ao mesmo tempo nos principais mercados – Frankfurt, Londres, Xangai, Tóquio – para derrubar ao chão a cotação do dólar. E o ataque especulativo nos mercados financeiros virá ao mesmo tempo que um ataque terrorista de grande impacto em um local importante dos Estados Unidos.
O espectador normal não conseguirá entender direito como é que funciona esse negócio de ataque especulativo para derrubar o dólar. Os roteiristas até tentarão evitar palavreado muito técnico de altas finanças internacionais. O almirante Harper vai pedir a Jack: me explique isso sabendo que eu não sou um conhecedor, explique como se eu fosse uma criança.
Mas dá para o comum dos mortais que ouve toda noite no Jornal Nacional as menções à roubalheira na Petrobrás perpetrada pelo lulo-petismo – com menções a contas off shore, contas em paraísos fiscais, Suíça, remessas ilegais, tal e coisa – compreender, mesmo que de maneira bem rudimentar, que o que se prepara na Rússia é um ataque fenomenal que destruirá a economia americana.
A tal megacorporação russa pertence ao vilão dos vilões, Viktor Cherevin.
E, na segunda sequência em que Viktor Cherevin-Kenneth Branagh aparece na tela, ele está conversando com uma altíssima autoridade do governo russo, e combinando com ele o ataque ao inimigo ocidental. O governo não deve aparecer em momento algum – isso fica bem claro no diálogo. O governo russo terceirizou para um neocapitalista inteiramente insano, um tirano, um czar do crime em tempos de economia globalizada, a tarefa de lançar a bomba definitiva sobre o inimigo.
Não creio que seja propriamente spoiler dizer que o almirante Harper enviará Jack Ryan a Moscou – e que, em Moscou, haverá muitas, mas muitas, mas muitas sequências de ação, de perseguição de carro, aquelas coisas que as platéias parecem adorar.
Mary fez, no meio de uma das muitas perseguições de carro, um comentário extremamente lúcido: será que Hollywood acha que, sem perseguição de carro, filme de ação não tem sucesso, está condenado ao oblívio?
Verdade.
Será que os estúdios fazem pesquisas, e as pesquisas indicam que todo filme de ação tem necessariamente que ter sequências de perseguição de carro?
Será mesmo que as pesquisas indicam que a maioria dos espectadores de filmes de ação do cinemão comercial é desprovida de cérebro?
A pergunta que não quer calar: por que tanto ódio dos americanos?
Há algo especialmente interessante nesta co-produção Hollywood-Moscou, me parece.
Para Viktor Cherevin, derrotar os United States of America, acabar com a hegemonia dos U. S. of A. é algo pessoal. É uma vingança que precisa ser executada para que ele possa morrer em paz, tranquilo, com a consciência de que fez o que deveria ter sido feito.
Fiquei pensando: cazzo, mas que tipo de mal teriam os Estados Unidos feito contra a Mãe Rússia que justificasse tamanho ódio que vem do fígado, dos guts, do intestino do malvadão russo?
Que mal os EUA fizeram à Mãe Rússia – a não ser, talvez, ter dado abrigo a banidos do regime bolchevista como Vladimir Nabokov e, bem mais tarde, Alexander Soljenítsin? (E que não se inclua nessa relação Irving Berlin, cuja família optou pelos Estados Unidos antes de Lênin libertar os pobres de todas as Rússias, em 1917.)
Ahnn… Parece que os Estados Unidos roubaram da Rússia dos czares o Alasca, da mesma maneira com que roubaram o Texas do México.
Seria por causa da perda do Alasca que Viktor Cherevin tem tamanho ódio figadal dos ianques?
Viktor Cherevin cita o Afeganistão – mas não se pode atribuir aos americanos a profunda derrota dos russos no Afeganistão. Os russos se ferraram no Afeganistão da mesma maneira com que os americanos se ferraram no Vietnã – os afegãos, assim como os vietnamitas, eles têm uma mania persistente de expulsar os estrangeiros colonialistas, venham de onde vierem.
Não poderia haver tanto ódio aos Estados Unidos devido ao esfacelamento do Império Soviético. Não foram os Estados Unidos que levaram ao fim do comunismo – foi a própria incompetência do comunismo que levou ao seu fim no primeiro lugar em que ele havia sido instalado.
Bem, mas estou me alongando em questões geopolíticas. Tá certo que o filme levanta questões geopolíticas – mas a verdade dos fatos é que o filme não quer motivar discussões. Ele é apenas e tão somente um filme de ação, uma aventura. Tem bandido, tem mocinho – e, bem exatamente ao contrário do que diz Leonard Cohen em sua letra genial (“everybody knows that the good guys lost”), e ao contrário do que a gente lê nos jornais a cada dia, no mundo todo, mas especialmente aqui, nesta terra esquecida por Deus, nos filmes que não são sérios, que são feitos apenas para divertir, os mocinhos ganham e os bandidos se ferram.
É bem como diz a personagem de Juliette Binoche em Fuso Horário do Amor: cacete, como seria bom se o mundo, a vida, fossem como nos filmes americanos!
Ah, sim: e também nas co-produções Hollywood-Moscou…
Anotação em setembro de 2015
Operação Sombra – Jack Ryan/Jack Ryan: Shadow Recruit
De Kenneth Brannagh, EUA-Rússia, 2014
Com Chris Pine (Jack Ryan), Keira Knightley (Cathy Muller), Kevin Costner (Thomas Harper), Kenneth Branagh (Viktor Cherevin),
e Lenn Kudrjawizki (Constantin), Alec Utgoff (Aleksandr Borovsky), Peter Andersson (Dimitri Lemkov), Elena Velikanova (Katya), Nonso Anozie (Embee Deng), Seth Ayott (Teddy Hefferman), Colm Feore (Rob Behringer), Gemma Chan (Amy Chang), Elena Velikanova (Katya)
Argumento e roteiro Adam Cozad e David Koepp
Baseado em personagem criado por Tom Clancy
Fotografia Haris ZSambarloukos
Música Patrick Doyle
Montagem Martin Walsh
Produção Paramount Pictures, Skydance Productions, Di Bonaventura Pictures, Mace Neufeld Productions.
Cor, 105 min.
**1/2
Esta versão é ridicula. Nao consegui assistir.