O Marido da Cabeleireira / Le Mari de la Coiffeuse

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3.5 out of 5.0 stars

Há uma lista grande de adjetivos que se aplicam com perfeição a O Marido da Cabeleireira, que Patrice Leconte lançou em 1990. Engraçado, divertido, gostoso – e triste. Doce. Doçamargo. Nostálgico, melancólico. Fantasioso, fantástico. Surpreendente. Lírico – e irônico. Terno – e sensual.

Sensual. Nunca explícito, escancarado, óbvio, mas extremamente sensual.

Um filme para deixar muito tipo de espectador bastante satisfeito – mas indicado, sobretudo, aos voyeurs. Patrice Leconte, esse realizador eclético por excelência, que faz filmes dos mais variados gêneros e estilos, fez aqui talvez seu filme mais pessoal, tão pessoal que tem dedicatória no começo e outra no fim – e se revela um voyeur apaixonado, obsessivo.

Ao final dos créditos iniciais, aparece: “A Zaza, que se reconhecerá”. E, nos créditos finais, no meio daquela enxurrada de letrinhas, está lá: “Mil beijos a Paco, ela saberá por quê”.

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O protagonista vai nos narrando sua história, desde as férias na infância

Surpreendente: o filme abre com um close-up de uma agulha de toca-discos sendo colocada (sem muito cuidado, a meu ver) no disco que já está girando lá. Surge uma melodia árabe, bem árabe, e vemos, em plano de conjunto, um garoto pré-adolescente dançando ao som daquela música, na calçada diante de uma praia.

Mas que raios é aquilo? Um garoto de 12 anos fazendo passos e gestos de odalisca?

Aí vêm os créditos iniciais, belos créditos iniciais, letras brancas sobre fundo preto, para que o espectador saiba quem fez o que sem ter que dividir sua atenção entre os nomes e ação e diálogo acontecendo ao mesmo tempo.

E então vemos um close-up do rosto de Jean Rochefort, esse veterano e bom ator que está sempre de bigodões, uma marca registrada. Jean Rochefort é o marido da cabeleireira do título, le mari de la coiffeuse, the hairdresser’s husband – neste filme não cabe criativol dos exibidores de cada país, sempre prontos a criar títulos distantes do original.

Chama-se Antoine, e é ele que nos narra sua história, desde os tempos em que era criança e sua mãe fez para ele e seu irmão mais velho ridículos calções de banho, shorts, de lã – e com pompons! –, para que usassem nas férias de verão, quando a família sempre ia à praia.

As frases que Antoine-Jean Rochefort nos fala, narrando sua vida, são ao mesmo tempo engraçadas, saborosas, e muitíssimo bem escritas. É um belo texto – os diálogos são assinados por Patrice Leconte e Claude Klotz; o roteiro, apenas por Leconte.

– “Minha mente está cheia de recordações. Começou na praia de Luc-sur-Mer.”

Antoine-Jean Rochefort está olhando para a câmara, portanto para o espectador. Tem um olhar um tanto ausente, um tanto desentendido; tem um aparelho na mão direita e começa a cortar o cabelo.

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Quando garotinho, Antoine se apaixonou pela cabeleireira vizinha

Enquanto ele continua narrando para o espectador, vemos crianças brincando na praia. O jovem Antoine de 12 anos é interpretado por Henry Hocking, e o garotinho mostra talento.

– “Minha mãe tinha feito trajes de banho para mim e para meu irmão. Tinham pompons vermelhos, parecendo cerejas. Não apenas eram um absurdo esses ornamentos de frutas, como os trajes de banho nunca ficavam secos. Estávamos sempre perto do mar, e então a lã ficava úmida o dia inteiro. Juntava areia nos nossos traseiros, e meu saco ficava sempre úmido. Após uma semana de férias, tinha que caminhar com as pernas separadas para evitar os gritos de dor. Fiquei com raiva da minha mãe por nos ter feito aqueles trajes por quatro verões seguidos, mas a verdade é que, sem querer, minha mãe fez com que eu prestasse muita atenção aos meus genitais. Naquele verão, descobri que deveria cuidar muito bem das minhas bolas.”

Depois da sequência dos garotos brincando na praia, vemos o garoto Antoine, todo arrumadinho, avisar a mãe que está indo à cabeleireira. Ouvimos a mãe, que não está no quadro, perguntando, espanto na voz: – “De novo?”

E aí Antoine vai até o salão de Madame Sheaffer (interpretada por Anne-Marie Pisani). Madame Sheaffer é uma mulher cheia, bem cheia, corpulenta. A sequência é absolutamente deliciosa, assim como o texto que Antoine velho narra para nós:

– “Quando eu abria a porta, um odor maravilhoso invadia meu nariz, uma mistura de loção, laquê, água de rosas, xampu. Era intoxicante. Mas o cheiro mais extraordinário de todos era o da Madame Sheaffer. Ela era ruiva, e com um pronunciado aroma corporal que sem dúvida devia incomodar alguns clientes, mas que para mim era uma maravilha. Seu corpo inteiro parecia cheirar a amor. Madame Sheaffer se inclinava sobre mim, e seu busto quase tocava meu rosto.”

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Vemos o rosto de Antoine garoto em close-up, a blusa branca de Madame Sheaffer muito, muito perto do rosto dele. Um determinado movimento dela faz com que fique à vista, num espaço entre botões da blusa branca, um pedaço do seio farto.

Antoine chega em casa em êxtase absoluto. Não consegue falar.

À mesa com o irmão mais velho, o pai (interpretado por Roland Bertin) e a mãe (Yveline Ailhaud). A família toma sopa e conversa. O pai pergunta ao irmão mais velho o que ele vai ser quando crescer, o irmão responde algo dentro dos padrões. Quando a pergunta é feita a Antoine, ele responde:

– “Vou ser o marido da cabeleireira.”

O pai não se contém; sem pensar, de imediato, dá um tapa no rosto de Antoine, que sai correndo da mesa e vai se trancar no quarto. O pai se arrepende, diz para a mulher que não compreende como pôde ter aquela atitude. Vai a mãe tentar conversar com Antoine, depois vai o pai, ficam os dois pedindo desculpa para ele através da porta fechada.

A câmara baba, simplesmente baba pela atriz Anna Galiena

Nessas sequências deliciosas com Antoine aos 12 anos, o filme nos remete imediatamente para outros deliciosos retratos de adolescentes descobrindo a beleza, o sexo, a excitação, o tesão. Não há como não lembrar de Houve uma Vez um Verão/Summer of ’42 (1971), o garotinho apaixonado pela moça linda da casa na praia, interpretada por Jennifer O’Neill. Ou Malena (2000), todos os garotos da cidade absolutamente aparvalhados com a beleza da personagem de Monica Bellucci. Ou Amarcord, o garoto babando pela gorda da charutaria e pela paixão da cidade inteira, La Gradisca, o papel de Magali Noel.

Ah, a nostalgia, a saudade dos tempos de criança, de adolescente, de jovem…

zzmari5aA essa galeria de atrizes que fizeram sonhar gerações e gerações de homens, O Marido da Cabeleireira acrescentou Anne-Marie Pisani, a bela rotunda que faz a Madame Sheaffer, mas, sobretudo, Anna Galiena, que interpreta outra cabeleireira, Mathilde.

Anna Galiena nasceu em Roma em 1954, começou no cinema em 1981, fez filmes na Itália, na Espanha, na França. Poderia fazer também na Inglaterra, ou nos Estados Unidos – fala fluentemente espanhol, francês e inglês. Acho que dá para dizer, sem muita dúvida, que O Marido da Cabeleireira foi o filme mais marcante de todos os quase cem em que ela já trabalhou.

A câmara do diretor de fotografia Eduardo Serra baba por Anna Galiena-Mathilde. Na primeira vez em que a focaliza, vai com calma, com muita calma nessa hora tão importante. Começa a mostrá-la pelos pés, e vai subindo bem devegar, bem devagar. Mathilde está usando um vestido estampado, alegre, um tanto solto, e não muito curto, mas terminando um pouco acima dos joelhos. Bem diferentemente de Madame Sheaffer, Mathilde é magra, mas não demais. As pernas são belas, belas, belas, a cintura é fina, as ancas têm forma linda.

O rosto não é de uma beleza convencional, à la Barbie. Mas é forte, expressivo, agradável, e quando sorri – e ela sorri quase o tempo todo – a expressão se ilumina e ela fica linda.

Quase cem títulos na filmografia – mas essa Mathilde, acho que realmente dá para dizer, foi o papel da vida de Anna Galiena.

O filme não tem nada de realismo: é uma fantasia, uma brincadeira

Jean Rochefort, nascido em 1930, tem mais de 150 títulos na filmografia. Só com Patrice Leconte, trabalhou em pelo menos dois outros, Caindo no Ridículo (1996) e Uma Passagem para a Vida (2002). Mas Antoine é o grande papel da sua carreira.

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O Marido da Cabeleireira tem muito Anna Galiena – ainda bem, graças a Deus. Mas a espinha dorsal do filme é Antoine, e Leconte parece ter dado ao veterano ator toda a liberdade possível e imaginável.

Só pelas sequências em que dança ao som de músicas árabes, fazendo aqueles gestos e aqueles requebrados de odalisca, a interpretação de Jean Rochefort já seria absolutamente antológica.

O Marido da Cabeleireira é um daqueles filmes que passam bem longe do realismo, do naturalismo. Não pretende ser um retrato perfeito da realidade: é uma fantasia, uma brincadeira, um vôo da imaginação.

É necessário aceitar isso, aceitar que é assim que é o filme, ou então ele não será apreciado como deve.

Porque é absolutamente fantástica, irreal, onírica, viajandona toda a relação entre Antoine e Mathilde. Todinha, todinha – desde o primeiro encontro até, e sobretudo, o segundo. Mas narrar o que há no segundo encontro seria estragar o prazer de quem eventualmente ainda não viu o filme.

“Uma obra de uma originalidade espantosa, sensual e emocionante”

O filme teve sete indicações ao César, o Oscar francês, inclusive nas categorias melhor filme, melhor diretor e melhor ator, mas não levou nenhuma estatueta. Teve também indicação ao Bafta, o Oscar britânico, na categoria de melhor filme em língua não inglesa.

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Leonard Maltin deu apenas 2.5 estrelas em 4 ao filme: “Jovem com uma fixação por uma cabeleireira peituda cresce para se casar com uma mulher que é praticamente a reencarnação de seu sonho infantil. Comédia dramática habilidosamente construída faz grande uso da face que parece um bassê de Rochefort, mas provavelmente parecerá fraco para a maioria dos espectadores.”

Todo mundo erra e tem direito de errar, só não erra quem não faz, e Leonard Maltin acerta muitíssimas vezes, segundo o meu juízo, mas desta vez aqui ele pisou no tomate. Mathilde não é de forma alguma a reencarnação de Madame Sheaffer. A única coisa que elas têm em comum é o fato de serem cabeleireiras.

O Guide des Films de Jean Tulard dá 3 estrelas, algo que não são muitos os filmes que merecem: “Uma obra de uma originalidade espantosa, sensual e emocionante, insólita e cotidiana, engraçada e triste, e admiravelmente interpretada”.

“O filme é profundo. É sobre nossos sonhos tolos.”

Roger Ebert deu a cotação máxima de 4 estrelas e fez um belo texto sobre este belo filme. O eventual leitor que chegou até aqui deveria lê-lo inteiro.

THE HAIRDRESSER'S HUSBAND, (aka Le Mari de la Coiffeuse), Jean Rochefort, Anna Galiena, 1990

Transcrevo partes:

“Este filme de 1990 de Patrice Leconte é engraçado, quente como um abraço, fantasioso como um sonho. É um conto de fadas passado numa loja de verdade numa rua de verdade com gente de verdade. É claro, a loja e a rua só existem no estúdio de cinema, e as pessoas são personagens, mas este é um filme para você. O cinema é uma forma de arte que permite a perfeição.

“O filme é incrível pelo jeito com que começa, continua e termina. É profundo. É sobre nossos sonhos tolos. Duvido que ele tenha encontrado um único espectador que desejasse ser o marido da cabeleireira, mas ele permite que nós todos compreendamos que isso é bastante possível. Não é um fetichista por cabelo. É fetichista por cabeleireiras. Leconte nos mostra o momento preciso em que ele é tomado pelo desejo. Seus jovens olhos estão abertos e solenes na hora em que ele vê uma fenda na blusa de outra cabeleireira aquela forma que todos nós aprendemos, como nossa primeira lição, que é a fonte de toda a bondade, amor e conforto: o seio de uma mulher. Ele está perdido. Não apenas perdido, mas louco. Não há sanidade nesse seu foco intense. Ela é louca? Deve ser. Mas eles dois são tão felizes.”

Mais adiante, Roger Ebert fala daquela coisa que eu já havia mencionado, o ecletismo de Leconte, o fato de que ele passa por todos os gêneros e estilos:

“Patrice Leconte é um diretor que deveria ser mais bem conhecido. Como Ang Lee, ele nunca se repete. Cada filme parece um novo início a partir de uma nova idéia.”

Ebert fala então de diversos filmes do realizador, para então dizer: “Nunca vi um filme ruim de Patrice Leconte. Como se pode ver, eles não pertencem a um único gênero. Não têm o mesmo estilo, exceto sua clara opção de estar a serviço de sua história.”

Quando leio algo que Roger Ebert e Jean Tulard dizem depois que eu já escrevi coisa parecida, ou no mesmo sentido, fico, é claro, bastante orgulhoso. O fato de o Guide de Tulard jogar com antônimos, como eu fiz na abertura desse texto, e de Ebert realçar a coisa do ecletismo de Leconte, é óbvio que me faz muitíssimo bem.

Mas também isso não é lá grande vantagem. Até porque vi alguns filmes de Leconte. Este site já tem agora oito filmes dele. Eis os outros sete:

Caindo no Ridículo / Ridicule (1996),

A Mulher e o Atirador de Facas / La Fille sur le Pont (1999),

A Viúva de Saint-Pierre/La Veuve de Saint-Pierre (2000),

Uma Passagem para a Vida / L’Homme du Train (2002),

Confidências Muito Íntimas / Confidences Trop Intimes (2004),

Meu Melhor Amigo / Mon Meilleur Ami (2006),

Uma Promessa / A Promise (2012).

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Anotação em dezembro de 2015

O Marido da Cabeleireira/Le Mari de la Coiffeuse

De Patrice Leconte, França, 1990

Com Jean Rochefort (Antoine), Anna Galiena (Mathilde)

e Henry Hocking (Antoine aos 12 anos), Roland Bertin (o pai de Antoine), Maurice Chevit (Ambroise Dupré ou Isidore Agopian), Anne-Marie Pisani (Madame A. Sheaffer), Philippe Clévenot (Morvoisieux), Jacques Mathou (Julien Gora), Laurence Ragon (Madame Gora), Claude Aufaure (freguês gay), Albert Delpy (Donecker), Ticky Holgado (o genro de Morvoisieux), Michèle Laroque (a mãe do adotado), Pierre Meyrand (o irmão de Antoine), Yveline Ailhaud (a mãe de Antoine)

Roteiro Patrice Leconte

Adaptação e diálogos Patrice Leconte e Claude Klotz

Fotografia Eduardo Serra

Música Michael Nyman

Montagem Joëlle Hache

Produção Lambart Productions, TF1 Films Production, Centre National de la Cinématographie. DVD Lume Filmes.

Cor, 82 min

***1/2

2 Comentários para “O Marido da Cabeleireira / Le Mari de la Coiffeuse”

  1. Um dos filmes mais belos que já vi em minha vida. Passou uma vez numa sessão de filmes de arte que a Band tinha aos domingos depois das 23h. (Não lembro se passou outro filme do Leconte na outra semana, mas creio que sim). Era 1992 e marcou a minha própria passagem da adolescência.

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