Cake não esconde nada: diz de cara a que veio. Já na primeira seqüência – violenta, brutal – explicita que vai tratar de dor crônica, e de forma aberta, virulenta.
A expressão dor crônica é mencionada em um diálogo que ouvimos antes mesmo de vermos qualquer imagem – enquanto rolam os rápidos, sucintos créditos iniciais, compostos apenas pelo nome das companhias produtoras e pelo título do filme.
As primeiras imagens mostram um grupo de mulheres sentadas em círculo – um grupo de apoio a pacientes de dores crônicas. A terapeuta, Annette (o papel de Felicity Huffman, na segunda foto do post), está sentada ao lado de uma grande foto em preto-e-branco de uma jovem bela e sorridente. Ela fala na linguagem dos terapeutas:
– “Penso que precisamos dar um desfecho para o que houve com Nina no mês passado, porque todas nós tínhamos muito afeto por ela. Estou sentada aqui e vou fingir que sou Nina. Não vai ser fácil, mas quero que vocês verbalizem como o suicídio dela afetou vocês.”
Uma das mulheres pergunta como Nina pôde fazer uma coisa daquelas – por que não pediu a nossa ajuda? Outra pergunta como Nina pôde ser tão egoísta, não pensar no seu filhinho, que agora não tem mãe.
A todas as perguntas, a terapeuta, com aquela calma forçada que os terapeutas têm que exibir, com a voz suave que têm de treinar, repete: – “Você consegue me perdoar?” “Perdão.” “Por favor, me perdoe.”
Depois de uma rodada, Annette pergunta: – “E quanto a você, Claire?”
Claire, a protagonista da história, é interpretada por Jennifer Aniston. A câmara vai mostrar o rosto de Jennifer Aniston em close-up em diversas tomadas. A bela atriz de tantas comedinhas românticas foi submetida a um rigoroso processo de enfeiamento: o rosto tem sinais de cortes profundos, o cabelo está mal tratado, sem viço. Tudo nela mostra desmazelo, desleixo, falta de cuidado. A expressão é sempre amarga, de quem está sentindo dor excruciante o tempo todo.
Claire até tenta deixar passar. Finge que não está entendendo: – “What about me?” Quanto a mim o quê? Como assim, comigo? O que tem a ver comigo? Qual é?
A terapeuta não entende a ironia, a amargura, e insiste: – “Gostaria de dizer algo para Nina?”
Claire diz que não, mas a terapeuta não parece muito inteligente. Ela insiste mais uma vez: – “Talvez faça você se sentir melhor, procurar conhecer seus sentimentos.”
Aí Claire ataca: – “Bem, nesse caso, acho que eu tenho uma pergunta, sim.”
A terapeuta dá um sorriso vitorioso.
– Ela pulou de um viaduto sobre a via expressa, certo? Especificamente onde a 110 cruza com a 105, certo? É verdade que ela caiu sobre um caminhão-plataforma cheio de mobília usada que ia para o México?”
Cai finalmente a ficha na cabeça da terapeuta, e ela tenta interromper: – “Gostaria de focar no que nós sentimos…”
Claire prossegue, como Muhammad Ali esmurrando sem dó nem piedade o pobre adversário:
– “E que não descobriram o corpo até chegar a Acapulco, que fica a uns 3.200 quilômetros daqui? E que mandaram o corpo de volta numa caixa térmica que ficou uma semana na alfândega anrtes que o
marido pudesse enfim recuperá-lo?”
A câmara alterna close-ups do rosto enfeiado de Claire-Jennifer Aniston com rostos perplexos das colegas do grupo de apoio.
E aí Claire dá o nocaute: – “Muito bem, Nina! Detesto suicidas que facilitam as coisas para os sobreviventes.”
Corta, e Claire está em um táxi voltando para casa, expressão de dor fortíssima estampada no rosto.
Em casa, receberá um telefonema de Annette, a terapeuta. Annette sugere que ela procure um outro grupo de apoio.
Claire é uma mulher rica, inteligente, que se vinga da dor com ironia cortante
Confesso que prefiro evitar filmes que falem muito explicitamente sobre doenças terminais, doenças terríveis, sofrimento em excesso. Ainda não vi, por exemplo, o aclamadíssimo Amor (2012), de Michael Haneke, em que a personagem interpretada por Emmanuelle Riva sofre um derrame. Fico adiando a hora de ver Longe Dela (2006), da garota-prodígio Sarah Polley com a atriz que ela e eu idolatramos, Julie Christie, cujo personagem tem Alzheimer. Não vi também outro filme que trata de Alzheimer, Para Sempre Alice (2014), com Julianne Moore.
Não sabia que a personagem de Jennifer Aniston sofria de dor crônica – evito ler sobre filmes que ainda não vi. Claro que não dá para evitar passar os olhos pelos títulos dos jornais e revistas, e então eu sabia que o filme era um drama pesado e que exatamente por isso foi uma experiência marcante para a atriz, cuja imagem sempre foi associada às comedinhas românticas
Depois dessa abertura violentíssima, que escancara de pronto como será o filme, eu poderia perfeitamente ter desistido de ver. Não desisti, fui em frente. Ainda bem – porque é de fato um belo filme, e Jennifer Aniston está absolutamente brilhante, soberba.
O roteiro original, assinado por Patrick Tobin, entrega de cara o tom da história, mas esconde por bom tempo o histórico dessa jovem mulher Claire, o motivo que a faz ter a dor crônica fortíssima. As informações vão vindo pouco a pouco.
O que vemos de cara é que ela é uma mulher rica, ou no mínimo foi casada com um homem rico, porque mora numa casa excelente, ampla, com bela piscina, num bairro ótimo de Los Angeles. Pelas cicatrizes no rosto, dá para imaginar que ela sofreu um acidente gravíssimo.
É uma mulher evidentemente inteligente, culta. Tudo o que ela fala é extremamente irônico, mordaz. É como se ela se vingasse da dor agredindo a si mesma e a todos em volta dela.
Tem a extrema felicidade de contar com um anjo da guarda: a empregada, Silvana – mexicana, naturalmente – está com ela há muito tempo, desde quando Claire ainda vivia com o marido, Jason (Chris Messina). Conhece-a bem, gosta dela, e faz tudo por ela.
Silvana é interpretada por Adriana Barraza (na foto abaixo), que foi indicada ao Oscar e ao Globo de Ouro de melhor atriz coadjuvante por Babel (2006) e trabalhou também em Amores Brutos (2000). É uma senhora atriz, e está excelente como esse anjo da guarda que não recebe da patroa o menor sinal de gratidão.
Claire fica obcecada com Nina, a suicida. Conversa com ela
Claire vai ficando obcecada por Nina, a jovem que pulou do viaduto. Sonha com ela, a vê em sua casa mesmo quando está acordada. Nina é interpretada por Anna Kendrick, bela atriz nascida em 1985 que está também em Sem Proteção/The Company You Keep (2012) e Amor Sem Escalas/Up in the Air (2009).
Claire avisa a Nina: – “Sinto muito te dizer isso, mas não acredito em fantasmas.”
E Nina: – “Isso não significa que você não seja covarde.”
E a suicida questiona Claire: por que você não se mata? Você não acredita em Deus. Aliás, não acredita em nada. Por que você não acaba com esse sofrimento?
Claire vai visitar o lugar exato de onde Nina pulou. Fica lá, no alto do viaduto, olhando para os outros viadutos abaixo dele, as freeways típicas de Los Angeles.
Resolve ir até a casa de Nina, saber como era a casa dela, como é o marido dela. Toca a campainha e diz que morou ali quando era criança, e gostaria de ver como ela está hoje. O viúvo de Nina, Roy (interpretado por Sam Worthington, na foto abaixo), deixa que ela entre, percorra os ambientes todos. No banheiro, abre o armário e vê um monte de comprimidos contra dor que eram de Nina e o marido ainda não tinha jogado fora. – “Good girl!”, diz ela, e toma alguns dos comprimidos.
Toma remédios contra a dor o tempo todo – mas a dor não passa.
Uma amiga que sofreu acidente sério ajudou Jennifer Aniston a se preparar
O papel de Claire é desses perfeitos para fazer brilhar uma boa atriz. É assim como o da jovem que se pune percorrendo a pé uma trilha gigantesca que vai do México até o Canadá, em Livre/Wild (2014), feito para Reese Witherspoon brilhar – e como ela brilha! Ou o da prostituta e serial killer de rosto horroroso, em Monster: Desejo Assassino (2003), feito para a lindérrima Charlize Theron brilhar – e como ela brilha!
Papéis de doentes, alcoólatras, drogados, aleijados são sempre oportunidade para o brilho de bons atores.
Jennifer Aniston aproveitou maravilhosamente a oportunidade. Como Mary comentou depois, o filme é ela. Sim: o filme foi feito para ela.
A atriz foi indicada ao Globo de Ouro, ao prêmio do Screen Actores Guild, o sindicato dos atores, ao prêmio da Broadcast Film Critics Association. Não levou nenhum deles – mas isso não é demérito algum. Jennifer Aniston está espantosamente fantástica. Ela, a rigor, foi a razão pela qual não desisti de ver o filme logo após aquela sequência de abertura que descrevi.
A atriz admitiu, numa entrevista, que ela não foi a primeira escolha da produção para o papel. Foi chamada – contou – depois que uma atriz famosa recusou o convite. Mas não deu o nome dessa atriz que recusou o papel, e o IMDb, que sempre informa tudo, também não diz.
Bom – ainda bem que essa moça desconhecida recusou.
Na preparação para viver Claire, Jennifer Aniston contou com a ajuda de uma amiga, Stacy Courtney. Stacy trabalhava como dublê, até que se envolveu em um acidente sério, e a partir daí conviveu com dor crônica durante anos e passou por 23 cirurgias. Ela trabalhou como coordenadora dos dublês em Cake.
O grande ator William H. Macy aceitou fazer uma participação especialíssima no filme. Ele só aparece em uma sequência, já na segunda metade do filme – e explicar o papel que ele interpreta seria um spoiler. Achei interessantíssimo um ator tão reconhecido ter aceito fazer aquele papel pequeníssimo. O IMDb lembra que Macy é casado com Felicity Huffman, a atriz que faz a terapeuta Annette.
Atenção: os últimos parágrafos são, a rigor, a rigor, spoilers
O filme de fato, como diz a Mary, é Jennifer Aniston – mas não é só ela. Cake tem diversas qualidades.
Daniel Barnz. Eis um diretor para se acompanhar. É jovem – nasceu em 1970 –, inteligente, formou-se na Universidade de Yale e depois fez cinema na University of South California Film School; vive com um companheiro há quase duas décadas e se define como um “judeu democrata liberal”. Este aqui foi seu quarto longa-metragem. Não vi nenhum dos anteriores – Menina no País das Maravilhas (2008), A Fera (2001) e A Luta Por Um Ideal (2012).
Em geral, filmes americanos sobre pessoas com problemas sérios tendem a se encaminhar para um final feliz. Claro que isso é uma generalização, e toda generalização é necessariamente injusta. Mas a tendência, em geral, é fazer com os problemas sejam superados, ao menos em parte. Os bêbados – em geral; não é sempre, mas acontece bastante – deixam de beber, os pais e filhos que se estranharam a vida inteira vão se aproximando.
Cake foge dessa tendência. Não que o final seja absolutamente trágico – não é. Claire muda um pouco, avança um pouco, sim – mas não chega a haver propriamente um happy end, até porque seria algo absolutamente falso.
É um belo filme. Pesado, duro. Duríssimo – mas muito bom.
Anotação em outubro de 2015
Cake: Uma Razão para Viver/Cake
De Daniel Barnz, EUA, 2014
Com Jennifer Aniston (Claire Bennett)
e Adriana Barraza (Silvana), Anna Kendrick (Nina Collins), Sam Worthington (Roy Collins), Mamie Gummer (Bonnie), Felicity Huffman (Annette), Chris Messina (Jason Bennett), Lucy Punch (enfermeira Gayle), Britt Robertson (Becky), Paula Cale (Carol), Ashley Crow (Stephanie)
e, em participação especial, William H. Macy (Leonard)
Argumento e roteiro Patrick Tobin
Fotografia Rachel Morrison
Música Christophe Beck
Montagem Kristina Boden e Michelle Harrison
Cor, 102 min
Produção Cinelou Films, Echo Films, We’re Not Brothers Productions.
***1/2
Não adie mais, assista “Amor” e “Longe Dela”, não irá se arrepender!
Pra começar, o texto tem um (na verdade dois) ato falho. No parágrafo que começa com “Resolve ir até a casa de” você chama Nina de Claire duas vezes 🙂
Ainda não vi o filme, mas fiquei com bastante vontade.
Esse mês fui a Lisboa e tive um problema bem dolorido. O hotel extraviou minha mala, jogou no lixo e tal. Tinha 32 kg de livros e dvds e cds. Presentes de amigos. Livros de trabalho. 32kg de memórias. Uma das coisas que me fez lidar melhor com isso foi rever Simplesmente Alice. Não quero dar spoiler, mas acho que não faz mal dizer que a forma como em um certo momento ela fala da forma como lida com a perda das memórias que a fizeram ser quem ela é me inspirou bastante.
Amei esse filme!
Boa noite!
Fiquei curiosa a respeito deste filme; sempre considerei a Jennifer Aniston muito mais uma celebridade do que uma atriz, aliás, bem ruinzinha.
Sobre o filme “Amor”: é uma história intensa, triste, brutal em sua crueza. E belíssima! Vale a pena!