Anjo/Angel foi, para mim, uma fantástica, maravilhosa descoberta. Este filme que Ernst Lubitsch fez em 1937 tem muito menos fama, muito menos reconhecimento do que deveria. Pelo que dá para perceber, simplesmente não foi compreendido em sua época.
É uma obra-prima, um filmaço. É uma comédia amarga – ou mais exatamente um drama, um triste drama, com toques de bom humor. É inteligente, sensível, feito por adultos para adultos. Trata do casamento, dos perigos de se negligenciarem os desejos do outro em nome da rotina, da carga de trabalho, e da possibilidade – que está sempre à espreita de cada um – de uma nova paixão.
Ao ver Angel, não me lembrava de ter lido ou ouvido loas a ele, referências a ele como uma das grandes realizações do berlinense Ernst Lubitsch (1892-1947), o homem do toque, o cineasta das obras refinadas, elegantes, glamourosas. Antes de ler qualquer coisa já escrita sobre o filme, estava certo de que de fato ele não teve o reconhecimento que merece.
E é interessante isso, porque Angel veio apenas dois anos antes de Ninotchka, talvez o maior sucesso do grande realizador, e os dois filmes têm alguns importantes pontos em comum:
* os dois têm uma grande, belíssima, famosérrima estrela encabeçando o elenco, as duas nascidas na Europa e atraídas para a Meca do cinema – Greta Garbo no filme de 1939, Marlene Dietrich neste aqui;
* o mesmo galã, no auge da carreira na época, está nos dois filmes: Melvyn Douglas.
* boa parte da ação dos dois se passa em Paris; em Ninotchka também há acontecimentos em Moscou, e a ação de Angel se divide entre Paris e Londres;
* Ninotchka é o tempo todo uma sátira política. Angel, não – mas há vários momentos de sátira política, e fala-se bastante de política. Não poderia ser diferente um filme dirigido por um intelectual alemão e lançado em 1937, com o nazismo já tomando conta da Alemanha e mostrando as garras pavorosas.
Revelar o que vem depois de 15 minutos de filme a rigor é spoiler
Uma das características marcantes da obra de Lubitsch são os roteiros e os diálogos inteligentes, afiados, de um humor elegante, refinado. Não é à toa que alguns de seus filmes tiveram roteiros assinados por Billy Wilder e Charles Brackett, dois mestres na arte.
O roteiro de Angel é assinado por Samson Raphaelson, com base na peça teatral Angyal, de Melchior Lengyel. Esse senhor – nascido em 1880, na parte húngara do então Império Áustro-Húngaro, com nome ainda mais difícil de pronunciar, Lebovics Menyhért – começou como correspondente de jornais húngaros na Suíça e, no período entre as duas guerras mundiais, publicou várias obras na Alemanha e na Áustria e tornou-se amigo de grandes nomes do teatro e do cinema, entre eles Lubitsch. Entre 1935 e 1960, viveu nos Estados Unidos.
Ele é o autor da história original de Ninotchka, de Ser ou Não Ser, que Lubitsch lançou em 1942 (e seria refilmado em 1983 estrelado pelo casal Mel Brooks-Anne Bancroft, como Sou ou Não Sou?), e de Quando a Neve Voltar a Cair, entre muitos outros.
A história deste Angyal, Angel, Anjo é um absoluto brilho.
Não tenho idéia, claro, de como era a peça original escrita pelo húngaro Melchior Lengyel, mas, no filme, a história é apresentada com um toque de mistério. A rigor, revelar o que vem depois de, digamos, uns 15 minutos de filme é spoiler, é atrapalhar o prazer do espectador que ainda não viu o filme. Até porque o que vem a partir daí é bastante surpreendente.
A primeira imagem que vemos, logo após os créditos iniciais bem rápidos – que trazem os nomes de Marlene Dietrich, Herbert Marshall e Melvyn Douglas, nesta ordem, e diminuindo de tamanho de um para outro – é de um pequeno avião. Um rápida tomada mostra Marlene Dietrich, com um chapéu preto que deveria ser fashion em 1937 e hoje parece um tanto ridículo, olhando para baixo, pela janela, e lá embaixo está, como o espectador vê na tomada seguinte, Paris – uma tomada aérea do Arco do Triunfo e as diversas ruas e avenidas que cruzam a Place de l’Étoile, com a palavra Paris escrita em caracteres gigantescos.
A palavra Paris colocada nessa paisagem tão óbvia é um defeitinho do filme. Acho que o único. Não encontrei qualquer outro.
No Club de la Russie, piadas sobre o bolchevismo
A mulher linda, rica, elegante, toda de preto, entra no hotel parisiense rico, elegante. O homem da recepção pede que ela assine seu nome no formulário, e ela assina “Mrs. Brown”. É mais do que óbvio que ela está escondendo seu verdadeiro nome. Educado, polido, o recepcionista explica que ela precisa deixar seu passaporte. Ela diz: – “Passaporte? Mas eu mostrei meu passaporte no aeroporto”. É uma exigência do governo, diz o recepcionista – e então ela entrega o documento, dizendo: – “Está ficando complicado viajar atualmente, não é?”
Um funcionário chega para levar a bagagem e a visitante para seu aposento. A câmara fica parada mostrando o recepcionista, que examina o passaporte e relê o nome Mrs. Brown assinado no formulário. A visitante volta para dentro do quadro e pergunta se há algum problema; o recepcionista diz, sorrindo um sorriso cúmplice: – “Não, não, está tudo bem… Mrs. Brown”.
Essa sacadinha de a câmara ficar fixa no personagem absolutamente secundário enquanto a protagonista some da visão do espectador será usada outras vezes no filme. São momentos de lampejos de genialidade cinematográfica.
Um close-up de uma bolsa preta. De dentro da bolsa, as mãos da viajante misteriosa tiram um papel que ela lê – permitindo que o espectador também leia – o seguinte: “Club de la Russie 314 Rue de la Tour”. Corta, e vemos um táxi chegando ao número 314 da Rue de la Tour – mas quem desce dele não é a bela viajante, e sim um homem. Veremos logo em seguida que ele se chama Anthony Halton – o papel de Melvyn Douglas.
Halton desce do táxi – e aí vem um delicioso diálogo cômico entre o inglês e o motorista de táxi francês, um malandrão.
Ao fim da primeira piada do filme, a câmara mostra a casa do número 314 da Rue de La Tour, o tal Club de la Russie. A câmara vai passando, do lado de fora da casa, pelas janelas, num travelling da esquerda para a direita. É uma casa de muitas, muitas janelas, e lá dentro há diversos homens e mulheres, todos muito bem vestidos.
Se o espectador não for extremamente atento, poderá não notar que a senhora gorduchinha que anda de aposento em aposento dando as ordens para os serviçais acabou de apresentar um homem a uma mulher, naquele exato instante em que a câmara termina o travelling e se fixa junto de uma das janelas, através da qual podemos ver a senhora gorducinha, um homem de terno impecável e uma mulher também muito bem vestida, de chapéu.
Corta, e agora a câmara está dentro daquela sala, mostrando exatamente aqueles três personagens. O homem está dizendo:
– “Fantástico! Sabe, acho que vou gostar do bolchevismo.”
Dois anos antes de Ninotchka, exatos 20 anos após a Revolução Russa, o alemão Ernst Lubitsch, usando história do húngaro Melchior Lengyel, já fazia piada com os comunistas da União Soviética!
A senhora gorduchina, a que manda ali naquele Club de la Russie, replica: – “Por quê? Você acha que poderia trabalhar para ganhar a vida?”
Ao que o frequentador do Club diz: – “Não, não. Essa é a parte ruim do bolchevismo. Mas ele tem seus méritos. Por exemplo: se não fosse pela Revolução, a grã-duquesa ainda estaria na Rússia, em vez de nos proporcionar tão delicioso salão. E (virando-se para a jovem mulher) talvez eu não tivesse a chance de conhecer você.”
A mulher misteriosa e o inglês se beijam, e então há um corte
Logo em seguida, um empregado graduado do Club de la Russie entregará à senhora gorduchinha, a grã-duquesa Anna Dmitrievna (Laura Hope Crews. na foto), o cartão de visitas de Anthony Halton, com a informação de que ele se diz amigo do capitão Baker. A grã-duquesa dá instruções para que Halton seja levado para uma das salas – ela irá atendê-lo em seguida.
E então a mulher misteriosa interpretada por Marlene Dietrich chega ao Club. Diz que quer falar com Anna, identifica-se como uma velha amiga. O mordomo vai dar o recado à grã-duquesa, ela diz para mandar a mulher embora – mas a dama misteriosa entra na sala inesperadamente, dirige-se à grã-duquesa.
Anna Dmitrievna faz uma expressão de grande espanto. Não se viam fazia tempo – quanto mesmo? Desde que ela abriu o Club, seis anos atrás. Sentam-se para conversar. É óbvio que são grandes, velhas amigas.
A grã-duquesa pergunta o que ela tem feito, como ela está, por que não deu notícias. A mulher misteriosa diz:
– “Não estou mais em Paris. Posso confiar em você? Anna… Estou em uma situação muito difícil. Vim a Paris pedir seu conselho.”
– “Você sabe que sempre dou conselhos sensatos.”
– “Sim, eu sei. Mas, vindo para cá, percebi que não gostaria de conselhos sensatos. Neste momento, não quero nenhum sentido, nenhuma lógica, nenhuma razão. Isso não me ajudaria agora.”
Toca o telefone. Anna vai atender, e a desconhecida, safa, esperta, diz que vai sair daquele salão para deixar a amiga falar à vontade ao telefone.
Abre uma das portas do salão, e entra em outro salão – onde está o inglês Anthony Halton. Halton, naturalmente, acredita que aquela é a grã-duquesa. Começa um delicioso diálogo de frases de duplo sentido, a mulher se fazendo passar pela grã-duquesa, o inglês bobão acreditando.
É uma sequência deliciosa, lubitschiana ao extremo.
Para simplificar esta narrativa do que acontece bem no início de Angel, a mulher misteriosa e Anthony Halton vão se encontrar naquela noite para jantar. Ela se recusa a dizer sequer seu próprio nome – diz que quer passar uma noite divertida, alegre, não quer falar do passado, não quer dizer quem é, não quer saber quem ele é.
Halton apaixona-se perdidamente. Vemos que a mulher fica absolutamente encantada com o charme do sujeito. Beijam-se. Há um corte – cabe ao espectador imaginar se depois do beijo houve ou não a explicitação, a cama, a trepada.
Mais tarde, já devia ser alta madrugada, caminham por um parque. Diante da recusa dela em dizer seu nome, ele passa a chamá-la de Angel.
Estão sentados num banco do parque. Ele faz juras de amor. Chega uma senhora vendendo flores – violetas. Uma violeteira, como no filme com Sarita Montiel. Halton se levanta do banco e vai comprar um buquê de violetas. Câmara fixa na violeteira, que vemos de frente – vemos as costas Halton. Quando, ao fim da compra do buquê, Halton se vira para onde está a câmara, para onde até um instante atrás estava a linda mulher, ele avança e some do quadro. A câmara continua fixa na violeteira, enquanto a voz de Halton chama Angel, Angel, Angel… E não tem mais Angel.
A câmara ainda acompanha a violeteira por mais um instante. Ela avança, rumo ao banco em que haviam estado sentados os dois namorados enamorados. No chão está o buque que Halton deixou cair ao perceber que Angel havia sumido. A violeteira pega o buquê, sopra, põe de novo junto aos buquês a serem vendidos para as almas apaixonadas.
O estilo de Lubitsh é tão discreto que não fica óbvio que o Club é quase um bordel
Isso acontece, repito, quando o filme está com uns 15, 20 minutos.
Há muita informação, nestes primeiros 15, 20 minutos do filme, ao mesmo tempo em que se escondem praticamente todos os fatos sobre a mulher que o inglês Halton chama de Angel. Há muita informação, as sequências são rápidas, os diálogos são dinânicos.
Pode até não ter ficado absolutamente claro, para alguns espectadores, pois tudo é mostrado com muita discrição, que o Club de la Russie é quase um bordel. Não é propriamente um bordel, um puteiro, porque o sexo não se pratica ali. A casa é onde homens muito, muito ricos são apresentados a moças disponíveis. E a grã-duquesa Anna Dmitrievna é fina, elegante, nobre – mas é nada mais nada menos que uma cafetina.
E, se é velha amiga de Angel, e as duas não se viam havia seis anos, desde que o Club foi aberto, isso muitíssimo provavelmente significa que Angel foi, no passado, uma das moças cafetinadas pela grã-duquesa.
O estilo de Lubitsch, extremamente elegante, suave, discreto, jamais explícito, de fato pode ajudar a não deixar isso muito claro para o espectador. É o que acho, mas naturalmente posso estar errado. Confesso que eu demorei um pouco para compreender; pode ter sido burrice minha, miopia, cegueira, ingenuidade. Mas a casa da grã-duquesa poderia ser perfeitamente ser um lugar festivo, como tantas casas sempre reunindo muita gente da sociedade para incessantes saraus, como nos romances russos.
“Você pode não acreditar, mas os russos estavam vestidos de maneira adequada”
Pois bem. A rigor, a rigor, revelar o que virá depois disso na trama muitíssimo bem construída é spoiler. Mas gostaria de transcrever alguns dos diálogos absolutamente sensacionais, antes de ver outras opiniões. Uma ou outra coisa será revelada. Assim, aqui vai a sugestão para o eventual leitor que ainda não tiver visto o filme: pare por aqui. Veja Angel, beleza de filme. Não vale a pena estragar as surpresas antes de vê-lo.
Só após os primeiros 20 filmes relatados acima aparece em cena o segundo ator mais importante apresentado nos créditos iniciais, Herbert Marshall (nas fotos abaixo). O londrino Herbert Brough Falcon Marshall (1890-1966) passou cerca de 20 anos atuando no teatro, e estava já com 40 anos quando apareceu em seu primeiro filme hollywoodiano, A Carta (1929). Trabalhou com Marlene Dietrich, sob a batuta do homem que a transformou em estrela, Josef von Sternberg, em A Vênus Loura/Blonde Venus, e também com Ernst Lubitsch, em Ladrão de Alcova – os dois de 1932.
Em 1937, o ano em que Angel foi lançado, era um dos grandes galãs de Hollywood.
Aqui, ele faz papel de Sir Frederick Barker, um riquíssimo e importantíssimo diplomata, tão ou mais importante que o ministro de Relações Exteriores da Grã-Bretanha, que estava sempre em rodadas de conversações de cúpula em Genebra, em Paris e outras capitais européias, tentando obter um compromisso de paz naqueles tempos em que já se sabia que a Segunda Guerra viria inevitavelmente.
É necessário situar quem é Sir Frederick para que eu possa em seguida transcrever dois diálogos absolutamente maravilhosos – um cômico, outro bem mais sério.
Sir Frederick e seu valet, Graham (o sempre impagável Edward Everett Horton), estão de volta a Londres após duríssimas conversações na Liga das Nações, em Genebra, com representantes de 21 outros países. Na chegada, Graham e o mordomo da mansão, Christopher Wilton (Ernest Cossart), travam o seguinte diálogo, enquanto a câmara está fixa, bem perto deles, os dois vistos de perfil, em close-up:
Wilton: – “Como vão as coisas em Genebra? Haverá uma guerra?”
Graham (cara emproada de quem sabe de todos os bastidores da reunião de cúpula): – “Bem, parece que haverá paz na Europa… pelo menos pelas próximas três semanas. Foi uma batalha difícil, sabe? Vinte e uma nações alinhadas contra nós. Mas vencemos.”
Wilton: – “Ouvi dizer que a França criou algumas dificuldades…”
Graham: – “Bem, o que você poderia esperar dos franceses? (Breve pausa.) Você sabia que o delegado francês sequer tinha um servente?”
Wilton: – “Espantoso!”
Ernest Cossart, o ator que faz o mordomo Wilton, é mais baixinho, gordinho, com uma cara ótima. Em inglês, seu comentário fica ainda mais delicioso: – “Apalling!”
Graham: – “Mas, por outro lado, os russos foram para mim uma grande surpresa. Tivemos dois delegados soviéticos no jantar. Você pode não acreditar, mas garanto que eles estavam vestidos de maneira adequada. Fraques, gravatas brancas.”
Wilton: – “Ora, ora, ora… Talvez os russos cheguem a algum lugar.”
Graham: – “Não, eu não tentaria chegar a conclusões de maneira precipitadas. Eles aindam continuam bebendo demais.”
A peça original é de Melchior Lengyel, o roteiro é de Samson Raphaelson, mas esta cena é Ernst Lubitsch puro, escancarado.
“Meu caro, o que são 200 anos de História? 25 páginas…”
Mais tarde, Sir Frederick está conversando com Anthony Halton. Os dois haviam se conhecido lutando na Primeira Guerra – mais exatamente, nos dias de folga em Paris, quando frequentavam as mesmas cortesãs. (Courtisanes… que expressão deliciosa tem o Francês para esse tipo de coisa.) Haviam se reencontrado agora, e Halton tinha contado tudo sobre seu encontro com a misteriosa Angel. Sir Frederick acha que essa paixão fulminante por uma mulher que Halton viu durante apenas algumas horas é uma coisa louca, que ele talvez devesse esquecer.
Sir Frederick: – “Acredite, Halton, um homem não deveria criar esse problema para si próprio.”
Halton: – “Imagino que tenha sido isso o que o Brutus disse a César quando César contou para ele: ‘Brutus, acabei de conhecer uma egípcia chamada Cleópatra, e ela está me deixando louco’.”
Sir Frederick: – “Se eu me lembro bem da História, César superou o caso com Cleópatra.”
Halton: – Certo. Mas Cleópatra não era Anjo. Se César tivesse conhecido Anjo, isso teria mudado toda a história do Império Romano”.
Sir Frederick: – “Ele teria desabado 200 anos mais cedo.”
Halton: – “Meu caro, o que são 200 anos de História? 25 páginas…”
Que absoluta maravilha.
Atenção: spoiler! O que vem a seguir revela um segredo da trama
A câmara focalizando o recepcionista do hotel, enquanto a protagonista da história sai do quadro. A câmara focalizando a violeteira, enquanto, nas costas do apaixonado Anthony Halton, fora do campo de visão do espectador, a protagonista da história desaparece de repente.
Essa mesma sacada terá, lá bem pela metade dos rapidíssimos 91 minutos de duração do filme, um terceiro exemplo ainda mais ousado, ainda mais admirável.
Como já avisei que haveria spoiler, como o eventual leitor que ainda não viu o filme foi devidamente advertido de que não deveria continuar lendo este texto, dá para dizer aqui que a mulher misteriosa que foi a Paris e deixou absolutamente apaixonado Anthony Halton é a esposa de Sir Frederick Barker. Angel vem a ser Lady Barker!
Isso é revelado ao espectador quando o filme está aí com uns 20 minutos.
Depois que se reencontram pela primeira vez desde os tempos da Grande Guerra, Sir Frederick e Halton combinam que este iria almoçar na casa daquele.
O espectador tem todos os motivos para se perguntar o que vai acontecer naquele almoço. Irão se rever, pela primeira vez depois do único encontro em Paris, o charmoso solteirão e o Anjo casado com um dos homens mais importantes da Inglaterra?
Ou Lady Barker vai usar como pretexto uma dor de cabeça, um mal estar qualquer, ficar em seus aposentods e deixar o marido almoçando sozinho com o bonitão que ela namorou?
Halton chega, é recebido por Sir Frederick. Começam a conversar. Falam sobre Angel, sobre Cleópatra, Júlio César, a queda do Império Romano, 200 anos que afinal são apenas 25 páginas num livro de História Mundial.
Halton elogia um grande quadro do salão em que estão. Observa, então, um porta-retratos – não dá para o espectador ver a fotografia. Halton aponta para o porta-retratos, e pergunta: – “Aquela é uma fotografia de Lady Barker?” O outro responde que sim – o espectador fica sabendo que Halton agora sabe que Angel é Lady Barker.
Corta, e vemos Lady Barker em seus aposentos, se preparando para descer e se juntar ao marido e ao homem que ela namorou dias atrás.
Pensei: pronto – Halton inventou algum pretexto e ele saiu correndo para evitar o encontro absurdo, louco, a materialização em uma sala de mansão inglesa do triângulo impossível, improvável, mas real, concreto.
Mas não: assim como Lady Barker não pretexta uma dor de cabeça, Halton não usa pretexto algum para sair correndo, e ocorre o encontro dos três, o triângulo amoroso posto ali no grande salão inglês.
A sequência é rápida. Há as apresentações, as primeiras palavras britanicamente cordiais, assépticas, educadas. Lady Barker, após dois minutos apenas, diz: – “E então, vamos ao almoço?” – e o espectador não verá nada do almoço. Enquanto o almoço vai rolando, enquanto vai se desenrolando aquela situação grotesca, tensa, absurda, de o triângulo amoroso estar à mesa, Ernst Lubitsch nos mostra o que está acontecendo dentro da cozinha.
É um brilho, é um absoluto brilho: vemos os serviçais saindo da cozinha levando as travessas, e voltando com os pratos. O prato de Lady Barker volta exatamente como veio – intocado. O prato do visitante vem com a mesma quantidade de carne servida a ele – só que a carne está toda cortadinha. O prato de Sir Frederick vem limpinho, sem um pedacinho de nada – ignorar o drama não altera o apetite.
Os serviçais fazem comentários a respeito daquilo tudo – a patroa que não tocou na comida, o convidado que picou a carne mas não comeu, o patrão que estava com apetite.
A câmara só voltará a mostrar os três lados do triângulo amoroso quando o almoço já terminou, e eles estão de volta ao salão de estar. Ainda tem muita saia justérrima para rolar.
Um dos triângulos amorosos mais tristes que vi no cinema
Cada espectador reage de sua maneira a um filme, é claro. Pode ser que, na época, muito espectador tenha achado graça nesta história – e, afinal, Lubitsch é um mestre da comédia.
Pois é. Eu de fato considero este filme esplêndido mais um drama muito sério com eventuais toques de bom humor do que uma comédia amarga. Algo muito mais próximo do que é o tom de Se Meu Apartamento Falasse/The Apartment (1960), feito por Billy Wilder, esse confesso aprendiz de Ernst Lubitsch.
Qualquer triângulo amoroso é triste, amargo, duro, cruel. O mostrado nesta bem engendrada trama do húngaro Melchior Lengyel é um das mais tristes que tenho visto no cinema nos últimos anos. Até porque todos os três envolvidos na história são boas pessoas, bons caracteres; não há ninguém safado, sacripanta, filho da mãe na história. Se é que cometeram algum pecado, são quase pecadinhos pequeninos que não fazem mal a ninguém, como diz a canção de Zeca Baleiro e Tata Fernandes.
Halton, bem, Halton é isso, um sujeito simpaticão que prefere ser beija-flor a joão-de-barro – até o momento em que conhece uma mulher mais loucamente desejável do que Cleópatra. Não chega a ser um crime.
Maria, Maria, Maria… Este é o nome de Lady Barker. Maria, bem… Depois de anos e anos de vida tranquila, abastada, confortável, sem dramas, sem tristezas, mas ultimamente também sem charme, sem muita proximidade, sem muito carinho, sem muito sexo, devido aos mil afazeres do marido homem público importantérrimo, Maria resolve viver um momento de irresponsabilidade. Um momento de “nenhum sentido, nenhuma lógica, nenhuma razão”, como ela mesma diz. Uma pequenina aventura, um momentinho fora da linha. Nada que fosse causar dor a ninguém – terminado aquele breve instante, tudo voltaria a ser como sempre foi na vida do casal Barker.
Talvez o pecadilho mais grave fosse mesmo o do marido, que, para cuidar das dores do mundo, se descuidou da sua Cleópatra.
Estar uns 80 anos adiante do seu tempo é uma qualidade imensa
Acho absolutamente impressionante que um grande estúdio de Hollywood – a Paramount, no caso – tenha feito em 1937 um filme que levanta essas questões todas sobre casamento, que mostra uma mulher capaz de trair o marido, ainda que por apenas algumas horas. E mais: que tem como heroína uma mulher que, aparentemente, havia sido uma prostituta.
Em 1937, o Código Hays – as regras da autocensura adotados por todos os estúdios de Hollywood – estava plenamente em vigor, e o Código Hays dizia, textualmente: ““Nenhum filme será produzido que possa fazer abaixar os princípios morais daqueles que irão vê-lo. Desta forma, a simpatia da audiência jamais deve ser jogada para o lado do crime, do fazer errado, mal ou pecado. Princípios corretos de vida, sujeitos apenas às exigências do drama e do entretenimento, devem ser apresentados. A lei, natural ou humana, não será ridicularizada, nem simpatia pela sua violação será criada. (…) A santidade da instituição do casamento e do lar será preservada. (…) O adultério, às vezes material necessário para a trama, não deve ser tratado explicitamente, ou justificado, ou apresentado de forma atraente.”
A forma com que neste filme de 1937 é tratada a questão da infidelidade – o fato de ter surgido na vida daquela mulher um homem que a seduziu – é tão adulta, tão inteligente, tão sem preconceitos, tão sem vieses, quanto seria de se esperar das melhores obras feitas hoje em dia, quase um século depois.
Estar uns 80 anos adiante do seu tempo não é uma má característica para qualquer obra de arte.
Esperava-se uma comédia leve. Lubitsch fez um filme denso e triste
Vixe! Vejo que escrevi demais, e ainda não falei das outras opiniões.
A própria Marlene não dá destaque ao filme em sua deliciosa autobiografia. (Na foto, ela com Lubitsch, durante as filmagens de Angel.)
O IMDb – que, na minha opinião, acerta na imensíssima maioria dos verbetes – traz como sinopse do filme um absurdo: “Mulher e seu marido tiram férias separadamente, e ela se apaixona por outro homem”.
Ridículo. Tipico de quem não viu o filme.
Também não creio que Leonard Maltin ou qualquer de seus colaboradores tenha visto o filme, ao qual ele dá 2 estrelas e 4 e a seguinte apreciação (?): “Filme desapontador da dupla Dietrich-Lubitsch sobre Marlene abandonando marido Marshall durante férias, apaixonando-se por Douglas. Não vale o trio de estrelas.”
Olho o que Pauline Kael escreveu e me dá imensa preguiça. Passo adiante.
O livro The Paramount Story fala de um filme inteiramente diferente do que eu vi. “O tão celebrado toque Lubitsch abandonou Ernst na forma como ele tratou o triângulo rotineiro de uma história chamada Angel. Parecia muitíssimo mais sofisticado do que era, com tantos atores soignés (sim, em francês no livro americano) como Marlene Dietrich (etc, etc, etc). Os risos eram poucos e muito espaçados, as bilheterias foram ruins, e Dietrich deixou o estúdio depois de reinar ali por sete anos, para voltar apenas uma década depois.”
Creio que dá para perceber as razões do fracasso do filme – e o fato de ele não ter tido o reconhecimento que merece. Esperava-se uma comédia, esperavam-se gargalhadas. Lubitsch desta vez ofereceu poucos sorrisos e muito material para o espectador pensar.
Ofereceu pérolas a uma audiência que queria lantejoulas.
Anotação em dezembro de 2015
Anjo/Angel
De Ernst Lubitsch, EUA, 1937
Com Marlene Dietrich (“Mrs. Brown”, Angel, Maria)
e Herbert Marshall (Sir Frederick Barker), Melvyn Douglas (Anthony Halton), Edward Everett Horton (Graham, o valet), Ernest Cossart (Christopher Wilton, o mordomo), Laura Hope Crews (grã-duquesa Anna Dmitrievna), Herbert Mundin (Mr. Greenwood), Dennie Moore (Emma MacGillicuddy Wilton)
Roteiro Samson Raphaelson
Baseado na peça Angyal, de Melchior Lengyel
Adaptação da peça para o inglês Guy Bolton e Russell G. Medcraft
Fotografia Charles Lang Jr.
Música Friedrich Hollaender
Montagem William Shea
Produção Ernst Lubitsh, Paramount Pictures. DVD Colecione Clássicos.
P&B, 91 min
****
Homem do céu, olha o elenco desse filme. Os diretores de antigamente tinham muita, muita sorte.
Uma decepção de filme para mim. Esperava um filmaço mas achei mt fraco. Esta é uma mera opinião
Gostei bastante desse filme, acho que a falta de expectativa ajudou; achei o começo meio sem graça, mas depois engatou.
Concordo com tudo o que você escreveu sobre a história, e as sacadas geniais de cinema, como quando um dos personagens na cena, sai de quadro. O roteiro e algumas frases que você transcreve também achei ótimos.
Concordo também que é um drama com toques de humor. Passa longe de comédia.
Eu também não saquei que a casa era quase um bordel, mas logo deu pra ver que Angel era prostituta, pelo que ela diz ao personagem de Melvyn. Só fiquei curiosa pra saber como ela conheceu o diplomata, já que ele não sabia de sua vida pregressa.
Não achei o filme triste, mas acho que eu tenho “pobrema”. Também não consigo achar “Brief Encounter” triste, mas “Se Meu Apartamento Falasse” acho tristíssimo, sim (nesse caso, há razão, a personagem gosta de um homem casado, que só a enrola; outro cara gosta dela, mas não é correspondido – bem diferente desses outros dois).
Angel ama o marido, o problema é só a falta de atenção, o fato de ser negligenciada, como você diz no começo.
Outra coisa que pega para mim é que não acho que uma noite seja capaz de virar a cabeça de alguém assim. No caso do personagem de Melvyn Douglas, pode até ser; afinal, pra ele Angel é “uma mulher mais loucamente desejável do que Cleópatra”, como você bem disse (que frase!). Ela diz ao marido que está louca pelo cara também (em tom de brincadeira, à mesa do café), mas sei lá, tenho minhas dúvidas.
Achei o final ótimo; o marido reconheceu seu erro, e ainda foi capaz de perdoar, e de tirar uns dias de folga para viajarem juntos. Ela escolheu continuar com ele. Não foi à toa, e não creio que tenha sido por medo, ou somente pela grana e boa vida que levava (bem diferente dos motivos de Celia, em “Brief Encounter”).
“Mas não: assim como Lady Barker não pretexta uma dor de cabeça, Halton não usa pretexto algum para sair correndo, e ocorre o encontro dos três, o triângulo amoroso posto ali no grande salão inglês.” Confesso que eu não teria os nervos que Angel teve, e teria inventado uma desculpa; mas a mulher não tinha sangue latino, acho que isso explica.
A sequência com os empregados comentando os pratos voltando para a cozinha é realmente sensacional.
Eu achei meio estranha a forma como Herbert Marshall andava, e fui pesquisar. Só então fiquei sabendo que ele havia perdido uma das pernas na guerra, e usava prótese (santa ignorância a minha); e que na velhice passou a sentir muitas dores e desconforto. Mas dizem que era uma ótima pessoa, gentil e querido pelos colegas. Um tapa na cara de muita gente, inclusive na minha, que às vezes reclamo por muito pouco. Admirável a biografia do homem!
Paul Newman e Joanne Woodward são geralmente lembrados pelo casamento longevo, não sem razão, mas Melvyn Douglas também teve o seu. Quase 50 anos de casado, e só não durou mais porque a mulher dele faleceu (um ano antes que ele, e ela era um ano mais velha). E que mulher no mínimo interessante; além de atriz, foi a terceira mulher a ter uma cadeira no congresso americano.
Dei um tapa (literalmente) no fundo do meu teclado, e o comentário entrou (não sei se rio ou choro). Eu não tinha revisado nem terminado. Termino à noite. Vou aproveitar e comentar no texto sobre “Brief Encounter”, que revi esses dias.
Continuando:
Perdi o fio da meada, mas sobre a questão da paixão em uma noite somente, eu ia dizer que você mesmo me falou uma vez que isso era impossível, e que era possível haver atração ou encantamento apenas. Acho loucura querer abandonar um casamento por causa de “one night stand”, embora Angel estivesse bastante insatisfeita com o tratamento que vinha recebendo do marido. Em “Brief Encounter”, pelo menos eles tiveram um casinho, e alguma convivência (onde escrevi Celia, no comentário anterior, leia-se Laura; troquei o nome da personagem pelo da atriz).
Enfim: filmão, gostei muito! Acho que não o teria encontrado/visto se não lesse o site.
E, finalmente, consegui fazer um comentário… fazia dias eu via ensaiando, mas não saía nada. E olha o tamanho que ficou, ou os tamanhos que ficaram…
“Talvez o pecadilho mais grave fosse mesmo o do marido, que, para cuidar das dores do mundo, se descuidou da sua Cleópatra.” Mais uma frase brilhante! Falou tudo, mas no final ele se redimiu, pelo menos na minha visão. Aliás, essa é a segunda frase sua que transcrevo, mas o texto todo está maravilhoso, concordo com tudo o que você destacou no filme.
PS: Eu não sabia que Herbert Marshall havia perdido uma perna porque vi poucos filmes com ele. Acho que vou atrás de mais.
Achei o filme admirável, sensível, pelo menos 83 anos à frente de sua época. Achei muito boa a forma da escrita da crítica feita e, para mim, o filme é maravilhoso, mas para além da estória ficou na minha cabeça a beleza da música do filme, o tempo todo na minha cabeça. Pesquisei sobre ela, infelizmente não encontrei quase nada. Dei o nome de Angel 1937. A combinação dela com o filme é perfeita.