Pouquíssimos filmes, ao longo de toda a História do cinema, reuniram um número tão absurdo de grandes astros quanto Paris Está em Chamas?, superprodução francesa de 1966 assinada por René Clément, o autor de Brinquedo Proibido/Jeux Interdits (1952) e O Sol Por Testemunha/Plein Soleil (1960), entre outros filmes importantes.
A produção é só francesa – embora imite descaradamente o tipo de superprodução americana que se fazia na época, e, na verdade, seja uma tentativa de cópia do estilo de um filme específico, O Mais Longo dos Dias/The Longest Day, perpetrado quatro anos antes, em 1962.
Acho que só O Mais Longo dos Dias teve um elenco tão impressionante, tão fantástico, quanto este filme aqui. Ele conseguiu a proeza de reunir (em ordem alfabética) Alain Delon, Anthony Perkins, Bruno Cremer, Charles Boyer, Claude Dauphin, Claude Rich, George Chakiris, Gert Fröbe, Glenn Ford, Hannes Messemer, Jean-Louis Trintignant, Jean-Paul Belmondo, Jean-Pierre Cassel, Kirk Douglas, Leslie Caron, Michel Piccoli, Orson Welles, Robert Stack, Simone Signoret e Yves Montand.
Os alemães, os americanos, todos falam no mais perfeito francês
Embora feito no Velho Continente, um lugar de uns 6 mil anos de civilização a mais do que aquele povo que se reuniu num lugar cheio de colinas na parte mais ao Sul da Califórnia e ali instalou a maior usina de produção de sonhos até hoje conhecida pela humanidade, este Paris Brüle-t-il? padece de problemas a rigor inimagináveis para algo que vem do país que cultiva as uvas que a França cultiva. Assim como nos piores filmes de Hollywood, em Paris, Brüle-t-il? os alemães não falam em alemão, os americanos não falam em inglês: todos falam em francês! Não importa a língua pátria dos personagens – tudo é aplastrado, tudo é edulcorado, tudo é violentado, e todos os personagens falam a língua do país que produziu o filme!
Verdade que há exceções. Adolf Hitler fala em alemão – e aí vemos, no DVD lançado no Brasil pela Lume Filmes, a legenda em inglês e a legenda em português.
Adolf Hitler fala em alemão, embora os seus generais falem em perfeito francês. A lógica, ela que se dane.
Ahn… A bem da verdade, é preciso registrar que, segundo diz o IMDb, cada ator falou em sua própria língua durante as filmagens; a intenção original era que o filme fosse trilíngue – em francês, alemão e inglês (com um pouco também de sueco). “No entanto, nenhuma das edições em vídeo até hoje reproduziu isso, preferindo colocar o áudio completamente dublado para uma língua ou outra.”
O roteiro é creditado a Gore Vidal e Francis Coppola, mas muita gente meteu a mão
Sempre ouvi falar desse filme, lançado numa época em que eu já ia demais ao cinema, conhecia René Clément e dezenas de atores que participam desta superprodução. Não tenho certeza, no entanto, se cheguei a vê-lo, na adolescência, ou não. Se vi, me esqueci completamente, o que dá no mesmo. Vi agora como curiosidade, e para fazer esta anotação.
Fiquei absolutamente chocado ao ver como Paris Brüle-t-il? é ruim. Não é que seja um filme mais ou menos, assim assim. É um horror. É um estupor: é provavelmente um dos piores filmes jamais feitos – ao menos entre aqueles que têm alguma importância histórica.
Lançado, como já foi dito, em 1966, Paris Brüle-t-il? tem um detalhinho à frente de seu tempo: ao contrário de seus contemporâneos, e exatamente como aconteceria com extrema frequência após os anos 1980, ele não tem créditos iniciais.
Com isso, foi só depois que o filme havia acabado – são intermináveis 175 minutos, quase 3 horas, e quando um filme é ruim demora demais para passar – que vi que o roteiro é assinado por Gore Vidal e Francis Ford Coppola.
Inacreditável!
Como assim? Como é possível? Um escritor do gabarito de Gore Vidal, um dos principais intelectuais americanos do século XX, e mais Francis Ford Coppola, um gênio do cinema? Como eles podem ter escrito um roteiro tão absolutamente ruim?
É incompreensível. Absolutamente incompreensível.
Os créditos finais especificam que Marcel Moussy escreveu “material adicional para cenas francesas” e Beate von Molo contribuiu com “material adicional para cenas alemãs”. E, segundo o IMDb, também participaram da feitura do roteiro – embora seus nomes não tenham sido creditados – mais quatro pessoas, Jean Aurenche, Yves Boisset, Pierre Bost e Claude Brulé. Bem, isso já seria um indício de que a produção teve problemas com o roteiro.
É um relato sobre os últimos dias da ocupação nazista de Paris, em 1944
O roteiro é baseado em um livro escrito pelo jornalista americano Larry Collins e pelo escritor francês Dominique Lapierre. O livro foi lançado em 1965 e tornou-se best-seller instantaneamente. As indicações são de que o livro – e também o filme – são bastante fiéis aos fatos históricos que retratam: como foram os últimos dias da ocupação nazista de Paris, até a liberação, em agosto de 1944.
Para lembrar: o dia D, do desembarque das tropas aliadas na Normandia, foi 6 de junho daquele ano. Em 20 de julho, houve o fracassado atentado à vida de Adolf Hitler. O episódio – descrito em um filme alemão, Operação Valkiria, de 2004, e depois em um filme americano, Operação Valquíria, de 2008 – é citado logo na abertura de Paris Está em Chamas?. Um letreiro informa que estamos no quartel-general do ditador nazista em Rastenburg, na Prússia Oriental – e a data é 7 de agosto de 1944.
Hitler (interpretado por Billy Frick) havia mandado chamar o general Dietrich von Choltitz (Gert Fröbe), para informá-lo que ele deveria assumir imediatamente o posto de governador militar de Paris – a capital havia sido ocupada pelos nazistas desde 1940.
A ordem do ditador a von Choltitz é apavorante: – “Seja impiedoso com a população. Se o desobedecerem, mate-os. Se não puder controlar Paris, queime-a.”
Detalhe interessante: em 1997, mestre Alain Resnais abriria seu On Connaît la Chanson, no Brasil Amores Parisienses, com uma cena em que aparece exatamente o general Dietrich von Choltitz recebendo, em seu quartel-general parisiense, um telefonema de Hitler mandando incendiar Paris. É uma sequência que dura apenas uns 4 minutos, e vale muito mais do que todo este filme aqui.
Os franceses que lutavam contra os nazistas estavam profundamente divididos
Um letreiro abre o filme, logo antes dessa sequência em que Hitler dá as ordens ao general von Choltitz: “Com os aliados chegando perto, a Resistência Francesa na cidade, composta de muitos grupos divergentes, lutava amargamente entre si à procura do caminho para a libertação”.
Os dois grupos mais importantes eram os seguidores do general Charles de Gaulle, que, da Inglaterra, chefiava as ações da resistência, e os comunistas. Os comunistas – liderados, pelo que mostra o filme, pelo coronel Rol-Tanguy (Bruno Cremer) – defendiam ação imediata, um chamamento da população à revolta. Os gaullistas – liderados por Jacques Chaban-Delmas (Alain Delon) – preferiam esperar a chegada dos exércitos aliados, chefiados pelo general Patton (o papel de Kirk Douglas).
É tudo maniqueísta, e todo o filme é um amontado de clichês
A questão não é a fidelidade aos fatos históricos. Como já foi dito, as indicações são de que o filme retrata, ou procura retratar, com a maior acuidade possível a sequência dos fatos entre a chegada do general von Choltitz a Paris até a libertação da cidade com a entrada das forças aliadas, no dia 25 de agosto.
O problema é o tom em que a história é contada.
É tudo maniqueísta – os alemães são maus, brutais, os franceses todos são gentis, simpáticos, heróicos. A se acreditar no que mostra Paris Brüle-t-il?, não houve um único francês colaboracionista.
E é tudo clichê, simplista demais. O sargento americano (o papel de Anthony Perkins) é um apaixonado por Paris, já leu tudo sobre a cidade, tem imensa vontade de finalmente conhecê-la – vai morrer pouco depois de chegar, atingido por metralhadora nazista. O sargento francês (o papel de Yves Montand) goza o colega interiorano, que não conhece a capital – vai morrer também, atingido pela reação nazista.
Um rápido discurso de um membro da resistência francesa diante de um grande número de oficiais americanos faz o alto comando das forças aliadas mudar seus planos e passar a priorizar a libertação de Paris.
A dona de um café de uma cidadezinha do interior (o papel da grande Simone Signoret) sorri feliz para os soldados que se servem de petiscos e do telefone dela para avisar aos parentes que estão se encaminhando para Paris.
Uma frase do cônsul sueco (o papel de Orson Welles) faz o general Von Choltitz aceitar a proposta de trégua na luta contra os revoltosos franceses que tomaram prédios públicos.
Os exemplos de situações que repetem clichês, ou parecem simplificações rasteiras, são dezenas.
É um filme chapa branca – e o que é chapa branca não presta
Leonard Maltin deu ao filme 2 estrelas em 4: “Recriação desconexa em estilo pseudo-documentário da França na Segunda Guerra Mundial, mostrando a libertação de Paris e a tentativa dos nazistas de queimar a cidade. Participações especiais de atores internacionais tornam confuso esse descolorido filme feito na Europa.”
O Guide des Films do mestre Jean Tulard tem um verbete bastante longo e informativo sobre o filme, ao qual é dada 1 estrela em 4. Vai sem aspas para me desobrigar de ser literal:
Afresco histórico retraçando a liberação de Paris. (…) Paris brüle-t-il? é baseado no livro de Lapierre e Collins. Sua adaptação derrotou três roteiristas franceses – Claude Brulé, Jean Aurenche e Pierre Bost – antes que interviessem Gore Vidal e Coppola. Filme tipo grande espetáculo concebido à maneira americana, Paris brüle-t-il? recebeu auxílio do governo francês e foi apresentado com grande pompa no Palais de Chaillot como um filme oficial. (O Palais de Chaillot é o Trocadéro, situado bem em frente à Torre Eiffel, na margem direita do Sena.) As escolhas impostas pela produção americana – notadamente agrupar uma plêiade de astros franceses e americanos para encarnar os heróis da liberação de Paris – condenaram o conjunto a uma reconstituição enfadonha. René Clément se mostrou mais inspirado em seus quatro filmes anteriores sobre a época da Ocupação: La bataille du rail, Le père tranquille, Jeux interdits e Le jour et l’heure.
Acho que o Guide des Films matou a pau: é um filme oficial, chapa branca. E, nesse ponto, o cinema é que nem jornalismo, igualzinho que nem: se é chapa branca, é ruim. Não presta.
Anotação em dezembro de 2014
Paris Está em Chamas?/Paris Brûle-t-il?
De René Clément, França, 1966
Com Jean-Paul Belmondo (Pierrelot – Yvon Morandat), Charles Boyer (Dr. Monod), Leslie Caron (Françoise Labé), Jean-Pierre Cassel (tenente Henri Karcher). George Chakiris (soldado em tanque), Bruno Cremer (Coronel Rol-Tanguy), Claude Dauphin (Coronel Lebel), Alain Delon (Jacques Chaban-Delmas), Kirk Douglas (General George S. Patton Jr.), Glenn Ford (General Omar N. Bradley), Gert Fröbe (General Dietrich von Choltitz), Hannes Messemer (General Jodl), Yves Montand (sargento Marcel Bizien). Anthony Perkins (sargento Warren), Michel Piccoli (Edgard Pisani), Wolfgang Preiss (Capitão Ebernach), Claude Rich (General Leclerc), Simone Signoret (dona de um café),Robert Stack (General Wm L. Sibert), Jean-Louis Trintignant (Capitão Serge), Orson Welles (Cônsul Raoul Nordling), Billy Frick (Adolf Hitler)
Roteiro Gore Vidal e Francis Ford Coppola
Baseado no livro de Larry Collins e Dominique Lapierre
Fotografia Marcel Grignon
Música Maurice Jarre
Montagem Robert Lawrence
Produção Marianne Productions, Transcontinental Films. DVD Lume Filmes.
P&B, 175 min
*
Esqueceste de mencionar “Paris en Colere”, a antológica valsa que o genial Maurice Jarre compôs para a trilha sonora… essa música – uma das mais lindas do cinema – bastaria para justificar o lançamento desse filme… (que, admito, é mesmo ruim)
Você entende muito de cinema….A maioria da crítica no mundo, foram muito favoráveis ao filme.
Após ler a sua crítica, fico imaginando….Um analfabeto se quiser, pode se tornar um crítico de cinema, se assim o desejar….
A questão dos idiomas é no mínimo uma canalhice da sua parte. Afinal, vemos hoje, filmes estrangeiros, falados em outro idioma que não se refere a etnia que o filme é retratado.
Foi também de uma canalhice sem tamanho, em pesquisar “críticos”, que tem a sua opinião…Uma minoria!
O filme é bom! Não achei confuso em momento algum…E o que importa, é a crítica do público! É ela que mostra a realidade! Nesse ponto, no IMDB, o filme tem uma nota 7,0 em 10,0. No Rotten Tomatoes, a nota dos críticos é 6.7, e do público é 7.4…. Para terminar, não vou ser crítico….felizmente estudei…..
Miguel, eu também gostei muito do filme… quando assisti há 50 anos. Principalmente a trilha sonora. É provável que se o assistisse novamente hoje não gostasse tanto considerando o atual desenvolvimento técnico e artístico. No fundo, são os nossos gostos e opiniões. Nesse caso, inclusive, sobre apenas um item de um vasto assunto de foro artístico. Não concordei com a opinião do crítico articulista mas não penso que devesse taxá-lo de analfabeto ou canalha. Mesmo porque, se assim o fizesse e eventualmente concordasse com ele em outros assuntos, eu é que passaria a me tornar um analfabeto ou canalha.