A primeira temporada de House of Cards – um trabalho esplendoroso, impressionantemente bem concebido e bem realizado – demonstra algumas verdades e as trata como irrefutáveis.
A primeira delas: a política, mesmo numa democracia madura, em país civilizado, desenvolvido, é suja. Não parece haver possibilidade de se fazer política de maneira pura, vestal. Mesmo quando as intenções são boas, são corretas, mesmo quando o politico não está agindo para roubar para seu partido ou para si mesmo (ou seja, de maneira muito diferente do que virou regra neste nosso pobre país nos últimos 12 anos e pouco), os politicos fazem sujeira, cometem absurdos – até mesmo os piores crimes.
A série, pelo menos nesta primeira temporada, não insiste em proclamar a outra grande verdade, que torna um pouco mais palatáveis essas afirmações expostas no parágrafo acima – aquela genialmente definida por Winston Churchill, um dos maiores politicos da História, de que a democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que já foram experimentadas.
A série demonstra também, com a perfeição de uma equação bem solucionada – c.q.d., como queremos demonstrar – aquela verdade que já repeti aqui algumas vezes: muito do melhor cinema que se faz hoje é feito para a TV.
Epa! Perdão: feito para a tela pequena. Porque House of Cards, como se sabe, não foi feito para a TV, e sim para sair direto na internet, via Netflix.
Demonstra algo bastante triste: que não é nada boa a imagem que se tem do jornalismo nos Estados Unidos hoje. Os jornalistas são ambiciosos, têm egos inchadérrimos – bem, isso é a mais pura verdade dos fatos. Mas são também, segundo mostra a série, pouco éticos, venais, e muitas vezes se prestam a servir de marionete para suas fontes.
E a série demonstra ainda, nesta primeira temporada, outra verdade absolutamente inquestionável, aquela que o Velho Guerreiro Chacrinha Abelardo Barbosa costumava trombetear e buzinar, à la Lavoisier: nada se cria, tudo se transforma, nada se cria, tudo se copia.
Essa história americaníssima, tão americana quanto a Coca-Coca, o hambúrguer, as cheerleaders e os loucos que saem atirando e matando a três por quarto, na verdade é a adaptação para os Estados Unidos de uma série original da TV inglesa!
Uma série do admirável mundo que prescinde dos suportes físicos – ou quase
Não sabia disso, que houve um House of Cards inglês (na foto), quando começamos a ver a primeira temporada americana, de 2013. Sim, claro, tinha ouvido falar que a série americana era em muitos aspectos uma imensa novidade, algo até um tanto revolucionário, uma das primeiras series produzidas não para lançamento em uma cadeia de TV, e depois em DVD e Blu-ray, e sim para consumo imediato via TV paga ou internet.
Na verdade, vejo agora no IMBd que House of Cards foi a segunda série produzida pela (ou para a) Netflix – a primeira tinha sido Lilyhammer, um ano antes, 2012, estrelado por Steven Van Zandt, o ator e músico que é membro da E-Street Band, a companheira de Bruce Springsteen.
Ainda não entendo muito bem o que seja a Netflix, nem o que seja exatamente streaming. Só desconfio que tem a ver com esse admirável mundo novo que prescinde de suportes físicos, esse admirável mundo novo em que as coisas passam a ser imateriais, que nem os anjos – você pode até sentir que existe, mas não consegue tocar, pegar, cheirar, amassar, quebrar.
O fato é que ainda não chegamos inteiramente ao admirável mundo novo em que filmes, livros, discos físicos são de todo desnecessários, e então a Sony Pictures lançou em DVD, inclusive neste país periférico aqui, a primeira e a segunda temporadas de House of Cards, a série que fez um sucesso absurdo mas não passou em nenhuma rede de TV americana, CBS, NBC, ABC, HBO – só passou na casa de quem assinava a Netflix.
Mary, mais ainda do que eu, tinha vontade de ver a série, basicamente porque, muitíssimo mais que eu, Mary é uma pessoa política, que pensa em política o tempo todo, raciocina em termos politicos, escreve sobre política – e sabia que era necessário ver House of Cards.
E então na segunda-feira de carnaval compramos a caixa de 4 DVDs da primeira temporada – o suporte físico que milhões de pessoas que viram a série via streaming (será que é essa a expressão que se usa?) desconhecem inteiramente.
Belo suporte físico. O pessoal do admirável mundo novo pode não gostar, mas eu acho uma maravilha uma caixa de DVDs bem editada – e a de House of Cards sem dúvida alguma é, com grandes e belas fotos em preto-e-branco de diversos dos personagens principais – 16, se é que contei direito.
Será que estou tergiversando?
O fato é que devoramos as quase 13 horas dos 13 episódios da primeira temporada em apenas dois dias – e, quando o 13º episódio acabou, me senti em profunda cold turkey, o estado de agonia do viciado que de repente não tem mais a droga sendo injetada, cheirada, bebida.
A trama básica inglesa se repete na primeira temporada americana
Entre um episódio e outro, em um momento longe da TV naqueles dois dias em que ficamos quase 13 horas vendo House of Cards, fui até o laptop e dei uma olhadinha no IMDb – e me espantei quando, diante da pesquisa por House of Cards, aparece lá “House of Cards – TV mini-series, 1990”.
A sinopse da minissérie inglesa explica que Francis Urquhart (interpretado por Ian Richardson), é um importante líder do Partido Conservador. Depois que Margaret Thatcher renuncia à liderança do partido, há eleições gerais e os conservadores mantêm a maioria – embora reduzida. Urquhart tem certeza de que receberá do novo primeiro-ministro, Henry Collingridge (David Lyon), um merecidíssimo lugar no gabinete. No entanto, o primeiro-ministro não o nomeia para o ministério, e pede para que ele continue na sua posição no Parlamento. Frustrado, indignado, enraivecido, ou, como a gente diria em Minas, puto dentro das calças, Francis Urquhart trama vingança.
Tudo isso que está na sinopse da minissérie inglesa no IMDb acontece de cara no House of Cards americano – com as devidas adaptações para a realidade dos Estados Unidos, é claro.
Até o prenome foi mantido – o protagonista da história, interpretado, magistralmente, prodigiosamente, por Kevin Spacey, chama-se Francis, mas todos (com exceção da esposa) o chamam de Frank. O sobrenome Urquhart não seria muito plausível numa série americana, e então o Frank de Kevin Spacey chama-se Underwood. Incrível: até o U inicial foi mantido!
Frank Underwood é um dos líderes do Partido Democrata na House of Representatives dos Estados Unidos da América. Nas legendas em português ele é apresentado como vice-líder.
Ahnn… Os parágrafos seguintes podem ser absolutamente tediosos, enfadonhos, para quem acompanha política, mas creio que trazem informações necessárias para os demais eventuais leitores.
House. Na Grã-Bretanha, House of Commons, a metade cada vez mais ativa e importante do Parlamento, que, como ali se trata de uma monarquia, tem também a House of Lords, a câmara alta, formada por representantes da aristocracia. Nos Estados Unidos, chama-se House of Representatives; o Parlamento tem também sua câmara alta, o Senado.
Os Estados Unidos copiaram do país colonizador o sistema bicameral. Diversos países copiaram dos Estados Unidos o mesmo sistema bicameral, inclusive o Brasil. Aqui, como em vários outros países, a câmara baixa se chama Câmara dos Deputados. Nos Estados Unidos, os deputados são chamados de representatives – ou simplesmente congressmen.
“Meu trabalho é desentupir os canos e fazer o lodo fluir”
A ação começa na passagem de 2012 para 2013 – ou seja, às vésperas de Barack Obama assumir seu segundo mandato presidencial. O que significa que é uma total e absoluta ficção a história que virá em seguida.
Na segunda sequência do primeiro episódio, na festa da passagem de ano, Frank Underwood-Kevin Spacey se vira para a câmara, olha no olho do espectador e começa a explicar quem é quem na história. Garrett Walker (Michael Gill) é o presidente eleito, que tomará posse daí a alguns dias (a posse dos presidentes nos Estados Unidos é sempre em 20 de janeiro).
O texto é brilhante. Frank aponta para o homem grisalho que está no alto de um palco no grande salão em que acontece a festa: – “O presidente eleito Garrett Walker. Gosto dele? Não. Confio nele? Não importa. Qualquer politico que consegue 70 milhões de votos adquire acesso a algo maior do que ele próprio, até maior que eu mesmo, embora eu odeie admitir isso. Veja só o sorriso sedutor, os olhos que inspiram confiança. Eu me aliei a ele cedo e me tornei fundamental para ele. Após 22 anos no Congresso, sei cheirar para que lado o vento sopra.”
Frank Underwood-Kevin Spacey está conversando com o espectador, apresentando os personagens da história, enquanto caminha pelo salão em que pessoas em traje de gala bebem champagne, conversam, confraternizam.
Aponta para um homem, e descreve basicamente o vice-presidente eleito, Jim Matthews (Dan Ziskie). Depois mostra uma mulher morena: – “Linda Vasquez, chefe de gabinete de Walker. Fui eu que arranjei o emprego para ela.” Linda Vasquez, que terá grande importância ao longo de toda a primeira temporada, é interpretada por Sakina Jaffrey (na foto abaixo).
E aí então Frank apresenta a si próprio. A frase original é “As for me, I’m the lowly House Majority Whip”. A legenda é assim: “Quanto a mim, sou o humilde vice-líder da Maioria da Câmara.” (Há uma questão importante e interessante quanto ao nome exato do cargo, mas vou tratar disso bem mais adiante.)
O texto que vem logo depois da frase acima é chocantemente brilhante, brilhantemente chocante: – “… da Maioria da Câmara. Faço as coisas andarem num Congresso cheio de mesquinharia e desinteresse. Meu trabalho é desentupir os canos e fazer o lodo fluir. Mas não serei encanador por muito tempo. Cumpri minha pena. Apoiei o homem certo. Uma mão lava a outra. Bem-vindos a Washington.”
Exatamente como o Frank inglês da minissérie britânica, Frank Underwood tem absoluta certeza de que será nomeado para o ministério. Já conta com isso, com o fato de que será o novo secretário de Estado – a designação americana para o cargo de ministro de Relações Exteriores, posição de absoluto destaque na política mundial.
Ainda no primeiro episódio da primeira temporada, ouvirá de Linda Vasquez – a mulher, é bom lembrar, que ele indicou para o cargo de chefe de gabinete do presidente eleito – que ele não será secretário de Estado, que o presidente Walker precisa demais dele exatamente no lugar em que ele está.
Frank Underwood vira uma fera, uma perigosíssima fera ferida – mas só por dentro. Político talentoso, calejado, escolado, consegue não mostrar no rosto o que sente na alma. Jura a Linda fidelidade total ao presidente – mas, pelas costas, por baixo do pano, subrepticiamente, vai preparar sua vingança.
E a vingança será cruel.
Na primeira seqüência, a série sintetiza quem é o protagonista
A primeira seqüência desta série é de um brilho absoluto. Ela condensa, em alguns poucos minutos, diversas características da personalidade, do caráter de seu protagonista.
A tela ainda está toda negra e o espectador ouve um barulho surdo, uma batida, seguida de um latido de dor lancinante: um cachorro atropelado. Um homem de calça e camisa social, ainda sem gravata, sai de sua casa para ver o que está acontecendo – é o personagem de Kevin Spacey, claro, que, veremos em seguida, estava se vestindo para a festa de gala da passagem de ano da cúpula do Partido Democrata.
Frank Underwood conversa com o homem que estava diante de sua casa, seu motorista e segurança. Reconhecem logo o cachorro da família vizinha, e percebem que ele não conseguirá sobreviver.
Frank manda o segurança ir ver se os vizinhos estão em casa, e então se abaixa. Plano americano nele – o espectador ouve os ganidos do cão mas não o vê.
E ele diz, em volta alta, como se estivesse conversando com o cachorro de estimação do vizinho: – “Há dois tipos de dor. O tipo da dor que faz você mais forte, ou a dor inútil, o tipo de dor que só faz sofrer. Não tenho paciência com coisas inúteis. Momentos assim necessitam de alguém que possa agir. Que faça a coisa desagradável, a coisa necessária.”
E estrangula o animal que sofria a dor inútil. – “Pronto. Acabou a dor”.
O casal de vizinhos está chegando, juntamente com o segurança.
Frank diz para os vizinhos algo que significa que ele fará de tudo para descobrir a identidade do atropelador, e em seguida entra na sua casa, lava as mãos, termina de se vestir, e elogia a mulher, que também já está pronta: – “Deslumbrante”.
Claire Underwood, que vem na pele clara e corpo esguio (até demais) de Robin Wright, está realmente deslumbrante, em um vestido de gala todo negro, simples, com a simplicidade da elegância perfeita.
Robin Wright, grande atriz, bela mulher, está muito bem ao longo de toda a primeira temporada. O cabelo cortado curto demais, e a magreza extrema, quase biafrenta, no entanto, tiraram um pouco de sua beleza, na minha opinião.
É um personagem riquíssimo, o de Claire Underwood. E é fascinante como os autores construíram a coisa de o casamento dos dois ser aberto, franco, honesto, infidelidade permitida, como até já chegou a ser um pouco comum ali pelos anos 80, mas hoje em dia me parece ser bem raro.
Mais tarde, neste mesmo primeiro episódio, Frank-Kevin Spacey vai virar para a câmara e falar para o espectador: – “Eu amo essa mulher. Amo essa mulher mais que os tubarões amam sangue”.
Criaram uma grande quantidade de frases brilhantes para Frank Underwood
House of Cards usa bastante essa sacada de o protagonista de repente deixar de fazer o que está fazendo, virar-se para a câmara e conversar com o espectador. Por várias vezes Frank interrompe a conversa que está tendo com o outro personagem e se dirige ao espectador para fazer uma ponderação, uma observação.
Um diálogo com o próprio presidente Walker é um exemplo perfeito. O presidente está pedindo a Frank que ceda aos professores que estão em greve e modifique um projeto de lei. Walker pergunta se ele vai fazer isso e ele responde: – “Não, senhor presidente!” Aí se vira para a câmara e pondera conosco: – “É difícil dizer não para o homem mais poderoso do mundo ocidental, mas às vezes é necessário.” E em seguida volta-se de novo em direção ao presidente e explica seus argumentos contrários à decisão do homem mais poderoso do mundo ocidental.
O recurso de fato é usado diversas vezes. (Interessante notar que Clint Eastwood fez a mesma coisa em seu Jersey Boys, de 2014: na trama, de vez em quando um dos personagens principais da história, os músicos do grupo The Four Seasons, olham para a câmara e falam diretamente com o espectador.)
Diversas vezes – mas não demais, a ponto de cansar, de ficar chato, aborrecido. Não, não – a sacada é usada na medida certa. Até porque as frases que os autores escreveram para botar na boca de Frank Underwood são brilhantes, e brilho não cansa ninguém.
Algumas delas:
“Um grande homem uma vez disse que tudo é sobre sexo. Exceto sexo. Sexo é sobre poder.”
“Sempre detestei a necessidade de dormir. Como a morte, o sono põe até o homem mais poderoso de costas.”
“A estrada até o poder é pavimentada com hipocrisia. E fatalidades.”
“Ele não mede sua riqueza por jatinhos, mas pelas almas que comprou.”
“Ele escolheu o dinheiro em vez do poder. Nesta cidade, um engano que quase todos cometem. Dinheiro é uma mansão que depois de dez anos começa a decair. O poder é o edifício velho feito de pedras que dura séculos. Não consigo respeitar alguém que não vê a diferença.”
Mary depois reparou que, se você fizer uma busca com “frases Frank Underwood”, surgem diversas, diversas páginas. House of Cards é um sucesso fenomenal.
O criador da série trabalhou com democratas; o autor original é politico conservador
Até os créditos iniciais – que a gente vê 13 vezes, uma vez em cada episódio – são brilhantes. Os nomes dos atores e da equipe aparecem sobre imagens de Washington de extrema beleza. São imagens daquele tipo em que cada segundo condensa o movimento de horas – tudo se agita a uma velocidade absurda. Os diretores de fotografia captaram imagens dos principais monumentos e prédios públicosm que qualquer pessoa reconhece, mas também de paisagens pouco divulgadas, pouco conhecidas por quem não vive ou trabalha na capital federal americana.
O número de atores é imenso – há personagens demais na história. O número de produtores executivos também é muito grande (Kevin Spacey é um deles). Os créditos mostram: “Baseado nas novelas de Michael Dobbs e na minissérie de Andrew Davies” – e em seguida vemos que esses dois autores também estão entre os produtores executivos.
Entre essa quantidade fantástica de nomes, o espectador poderá não reparar no que tudo indica ser o mais fundamental de todos: Beau Willimon. Esse senhor é o criador da série; escreveu, sozinho ou com outros autores, a maior parte dos roteiros dos 13 episódios da primeira temporada – e também dos 26 das segunda e terceira temporadas.
É um garotão: nasceu em 1977, na Virginia, estudou em Nova York na Universidade de Columbia e na Julliard School. É um animal político: trabalhou em diversas campanhas políticas, sempre de candidatos democratas, como a de Hillary Clinton para o Senado em 2000. Já escreveu seis peças de teatro; a primeira delas, Farragut North, deu origem ao filme Tudo pelo Poder/The Ides of March, em que participou do roteiro, no final assinado por George Clooney, Grant Heslov e ele. Clooney, um ativista politico, dirigiu e fez o papel principal, o de um candidato democrata à presidência dos Estados Unidos.
Se Beau Willimon, o criador da série americana, teve experiência pessoal com a política, Michael Dobbs, o autor dos três livros em que a série inglesa e esta aqui se basearam, esse então é doutor honoris causa. Sabe tanto de política quanto Ulysses Guimarães, François Mitterrand, Bill Clinton.
Michael Dobbs começou bem jovem a trabalhar para o Partido Conservador: a partir de 1977, com apenas 29 anos (é de 1948), foi assessor de Margaret Thatcher, na época líder da oposição ao governo trabalhista. Passou a escrever discursos para Thatcher a partir de 1979, e entre 1981 e 1986 foi assessor especial do governo Thatcher. É considerado um excepcional operador politico, e foi chamado pelo The Guardian, em 1987, de “atirador de Westminster com cara de bebê”. Em 2010, recebeu o título de Barão Dobbs, e ingressou na House of Lords.
Paralelamente à atuação política, tornou-se escritor, a partir da publicação, em 1989, do romance House of Cards, o primeiro de uma trilogia de thrillers políticos com Francis Urquhart como protagonista. To Play the King saiu em 1992 e The Final Cut, em 1994. Cada um dos três livros virou uma minissérie da BBC.
Diversos diretores importantes, experientes, participam da série
E aqui volto àquela minha frase de que muito do melhor cinema que se faz hoje é feito para a TV.
Como House of Cards foi uma produção desvinculada dos grandes estúdios, das grandes redes de TV, das gigantescas corporações, com um número imenso de vice-presidentes sempre dispostos a opinar, e, muito ao contrário, foi um projeto com muita independência para os profissionais, pôde atrair um grupo de diretores de cinema de tirar o chapéu.
É impressionante. Os dois primeiros episódios foram dirigidos por David Fincher, o autor de Seven, Clube de Luta, O Curioso Caso de Benjamin Button, A Rede Social, Garota Exemplar.
Joel Schumacher dirigiu outros dois. Schumacher fez, entre outros, O Primeiro Ano do Resto de Nossas Vidas, 8 mm, Tempo de Matar, O Cliente, Batman Eternamente.
James Foley dirigiu episódios da primeira temporada; é o autor de, entre outros, O Sucesso a Qualquer Preço, O Segredo, Um Dia para Relembrar, A Estranha Perfeita, Confidence – O Golpe Perfeito.
Carl Franklin, autor de Um Amor Verdadeiro, Por um Triz, O Diabo Veste Azul, Crimes em Primeiro Grau, também dirigiu episódios na primeira e na segunda temporadas.
Na segunda temporada – produzida em 2014, e que vamos ver assim que possível –, Robin Wright experimentou a direção de um episódio. E outra bela atriz loura – mas esta já com vasta experiência atrás das câmaras – também dirigiu um; estou especialmente curioso para ver o episódio realizado por Jodie Foster.
Até a grande polonesa Agnieszka Holland dirigiu um episódio da terceira temporada, produzida neste ano de 2015 e que ficou disponível na Netflix a partir de 27 de fevereiro.
Frank usa meios extremamente condenáveis, mas seus propósitos são corretos
Me parece fascinante que o que na Grã-Bretanha é um politico do Partido Conservador tenha, nos Estados Unidos, virado um politico do Partido Democrata.
Os democratas correspondem, mais ou menos, a grosso modo, aos trabalhistas na Grã-Bretanha, enquanto os conservadores correspondem, também a grosso modo, é claro, aos republicanos nos Estados Unidos. Em termos bem básicos, rústicos, simplistas, o Partido Conservador britânico e o Partido Republicano dos EUA defendem menor taxação sobre empresas e ricos e um Estado mínimo, que interfira o menos possível na vida das companhias e das pessoas. E o Partido Trabalhista britânico e o Partido Democrata dos EUA defendem que os mais ricos – empresas e pessoas – paguem mais impostos, e que o Estado regule as atividades das grandes corporações e dê auxílio aos mais desfavorecidos, os mais pobres, os com menos oportunidades.
São duas visões de mundo muito distintas, opostas.
Mas dá para compreender, é claro: Michael Dobbs fala do que ele conhece – os tories, os conservadores. Da mesma maneira, Beau Willimon, o criador da série nos Estados Unidos, tem vivência pessoal junto aos democratas. Fala daquilo que conhece.
E a verdade é que dificilmente seria produzida hoje em dia uma série enfocando o Partido Republicano. Nove entre dez pessoas do show business americano são simpatizantes e/ou votam nos democratas.
O que esta primeira temporada de House of Cards passa é que a política é uma coisa profundamente suja. Mas os personagens centrais não são propriamente más pessoas, não querem ferrar o povo, nem querem roubar o dinheiro dos contribuintes. Como as frases ditas por Frank Underwood indicam, ele não quer dinheiro – quer poder. Ele faz sujeira, comete absurdos, até crimes – mas não está lá nem para roubar, nem para piorar a vida das pessoas. Muito ao contrário: apesar de usar meios por tudo condenáveis, os propósitos dele são em geral corretos.
E, por fim, o detalhinho do cargo exato de Frank Underwood.
“Quanto a mim, sou o humilde vice-líder da Maioria da Câmara”, diz ele, segundo a legenda.
“As for me, I’m the lowly House Majority Whip”.
Whip, de chicote.
Esse cargo não existe no Parlamento brasileiro – e duvido que exista em muitos outros países que não os colonizados pelos ingleses.
Está no Dictionary of English Language and Culture: “No sistema de governo britânico, um membro do Parlamento que é responsável por fazer os outros membros de seu partido chegarem a tempo para as votações; no sistema de governo americano, um membro do Congresso que é eleito por seu partido para ajudar o floor leader e que ajuda a persuadir os outros membros do seu partido a apoiar projetos de lei que são importantes para o partido.”
Então Frank Underwood é o Whip da Maioria na Câmara (da maioria porque na história fictícia, ao contrário do que acontece hoje na Câmara de verdade, os democratas são a maioria).
O chicoteador. O bedel. O líder encarregado de chicotear o baixo clero para que os deputados compareçam às votações e votem de acordo com as decisões partidárias.
A primeira temporada mostra perfeitamente que essa é a função de Frank – embora a legenda fale apenas em vice-líder.
Aliás, as legendas trazem um erro crasso: em diversas ocasiões, chamam o presidente da House of Representatives de orador. A palavra inglesa para designar o presidente da House é de fato speaker – e a legenda comete a besteira de fazer a tradução literal e errada.
Whip…
Nem Mary, que sabe muitíssimo de política, sabia da existência do whip. É isso: vivendo e aprendendo. Wimwenders e aprendenders – e depois esquecendo, é claro.
Para ler sobre a segunda temporada da série, clique aqui.
Anotação em fevereiro de 2015
House of Cards – A Primeira Temporada
De Beau Willimon, criador, roteirista e produtor executivo, EUA, 2013
Diretores: David Fincher, Joel Schumacher, James Foley, Carl Franklin
Com Kevin Spacey (Francis Underwood), Robin Wright (Claire Underwood),
e Kate Mara (Zoe Barnes), Corey Stoll (deputado Peter Russo), Michael Kelly (Doug Stamper), Sakina Jaffrey (Linda Vasquez), Michael Gill (presidente Garrett Walker), Nathan Darrow (Edward Meechum), Kristen Connolly (Christina Gallagher), Mahershala Ali (Remy Danton), Dan Ziskie (vice-presidente Jim Matthews), Rachel Brosnahan (Rachel Posner), Sebastian Arcelus (Lucas Goodwin), Gerald McRaney (Raymond Tusk), Constance Zimmer (Janine Skorsky)
Roteiros de Beau Willimon, Kate Barnow, Rick Cleveland, Sam Forman, Gina Gionfriddo, Keith Huff, Sarah Treem
Baseado nos livros de Michael Dobbs e na série de TV de Andrew Davies
Música Jeff Beals
Produção Media Rights Capital, Panic Pictures, Trigger Street Productions. DVD Sony Pictures
Cor, cerca de 700 min
***1/2
Vi os dois primeiros episódios e não gostei; admito que esteja muito bem realizado e interpretado mas é muito desagradável para mim, pelo menos. Trata-se de política e política é das coisas que mais abomino desde há uns bons anos. Evito ler notícias da política do meu país que considero desprezível, tanto da parte do governo como das oposições. E de outros países também. Quando aluguei o DVD estava já receoso que acontecesse isto, mas como havia tantas críticas favoráveis, tentei. Vou devolver o DVD sem ver o terceiro episódio, francamente estou-me nas tintas para as aventuras do senhor Underwood e da sua esposa que eu nem cheguei bem a entender o que faz. Também há um problema que eu tenho com séries televisivas: é que eu não gosto de saber a história às prestações, por isso só vejo aquelas em que cada episódio tem princípio, meio e fim.
A pena imposta a Kevin Spacey é uma verdadeira violação de direitos humanos, e devia ir para uma corte internacional! É minha opinião. E Weinstein também, um gênio! O policitamente correto domina, só imagino o que fariam com os donos dos estúdios…. com Chaplin… Mas a série acabou, sem ele. E foi maravilhosa, exceto o último dvd. Sentirei falta, claro. Me sinto um pouco cadavérica sem algo tão inteligente! e Aaron Sorkin ao que parece parou…. Acrescento que seus comentários são perfeitos, SR.SÉRGIO! obrigadaaaa….
“A pena imposta a Kevin Spacey é uma verdadeira violação de direitos humanos, e devia ir para uma corte internacional! É minha opinião. E Weinstein também, um gênio!”
A Senhora D. Maria Bastos está certamente a brincar; se não está será melhor consultar rapidamente um psiquiatra. Ou uma clínica de desintoxicação alcoólica.