Tudo pelo Poder / The Ides of March

Nota: ★★★½

George Clooney é um ser político. Acontece de ser também ator, produtor, de vez em quando também roteirista e diretor, além, é claro, de boa pinta. Mas é sobretudo um ser político, um ativista, um cara que pensa basicamente em política. Tudo pelo Poder, no original The Ides of March, os idos de março, o quarto filme dirigido por ele, é político, sobre política, especificamente sobre política partidária.

É bom que isso fique bem claro desde o início, para evitar mal entendidos. Quem detesta, tem nojo de política, quem acha que todo político é igual – e, a esta altura, provavelmente se esteja falando de uns 90% das pessoas alfabetizadas deste país –, esses não deveriam perder tempo vendo Tudo pelo Poder: a possibilidade de não gostarem do filme é bastante grande.

E é uma pena, porque é um filme brilhante.

Um jovem assessor que de fato acredita no político. E uma jornalista que não crê em nada

Tudo pelo Poder trata de dois conceitos básicos, fundamentais: crença e lealdade. O tema lealdade será amplamente discutido mais para o final da narrativa, mas a questão da crença é colocada bem rapidamente, nos primeiros dez minutos.

Com uns oito minutos de narrativa, estão sentados em um bar dois assessores políticos de um candidato e uma jornalista. Paul (Philip Seymour Hoffman) é o coordenador geral da campanha; Stephen (Ryan Gosling) é seu segundo homem, o assessor de imprensa; e Ida (Marisa Tomei) é uma jornalista. Todos os três são experientes, putas velhas, como dizemos aqui; Ida trabalha para o New York Times, o jornal mais importante do país; Paul está participando da sua sexta corrida para a eleição presidencial; e mesmo Stephen, que é bem jovem (Ryan Gosling estava com 31 anos quando fez o filme, e aparenta até um pouco menos que isso), se orgulha em dizer que já trabalhou em mais campanhas políticas do que muita gente de 40 anos.

Ida tenta pegar alguma contradição na conversa com Paul, mas ele é firme, experiente, não se deixa apanhar. Levanta-se para ir ao banheiro, Ida fica só com Stephen – e então provoca o rapaz:

– “Então você realmente acredita nessa merda toda?”

Sim, Stephen de fato acredita no seu candidato. Não trabalha para ele apenas pelo dinheiro, pela possibilidade de ter um emprego na Casa Branca caso ele seja eleito. Acredita nele. Diz isso com firmeza para a repórter:

– “Ida, eu não sou ingênuo, tá? Estou te dizendo: este é o sujeito. Ele é o único que pode fazer diferença na vida das pessoas.”

Há os que acreditam, e há os que não crêem mais em nada. Os believers e os cynics, como diz a canção. Ao jovem que acredita, Ida faz o discurso fácil de que ninguém, absolutamente ninguém, chegando à Presidência, vai mudar a vida das pessoas comuns. E conclui:

– “Ah, ele é um cara legal. Eles todos são. Mas ele vai te decepcionar, mais cedo ou mais tarde.”

O candidato mais conservador quer chamar o oponente para discutir sobre religião

Nos oito minutos anteriores a essa conversa no bar, o roteiro já havia apresentado, com rapidez e brilhantismo, os fatos principais, os personagens básicos, o que está em jogo. (O roteiro foi escrito pelo próprio Clooney e seu amigo Grant Heslov, baseado numa peça de um garoto jovem, que deve ter aí no máximo uns 35 anos, Beau Willimon, mas que teve grande experiência em campanhas políticas.)

São as primárias do Partido Democrata para a escolha do candidato à Presidência dos Estados Unidos. Ouros candidatos já saíram do páreo; restaram dois, que se enfrentarão daí a uma semana nas primárias de Ohio, um Estado que é tido como o definidor das tendências do país como um todo. Está na frente o governador da Pensilvânia, Mike Morris (o papel de George Clooney), com 2.047 delegados até então. Concorre com ele o senador Pullman, de Arkansas (Michael Mantell), com 1.302 delegados.

A vantagem de Morris é boa, mas uma vitória em Ohio, que tem 161 delegados e uma importância estratégica e simbólica, pode dar novo ânimo à campanha de Pullman.

Um rápido histórico das primárias anteriores a Ohio já demonstra quem é quem. Morris ganhou nos Estados mais industrializados, mais ricos, mais desenvolvidos – New Hampshire, Califórnia, Nova York e Michigan. Seu oponente, ao contrário, havia vencido nos Estados mais conservadores, sulistas – Flórida, Tennessee, Virgínia, Missouri.

Como se não bastasse esse indicativo claro de que Morris é mais avançado, mais progressista (droga: o termo é este, embora aqui no Brasil ele esteja hoje sendo usurpado pelos chapa-brancas, os que mamam nas tetas do Estado, dos impostos que pagamos), temos os discursos, os pontos de vista. À procura dos votos dos conservadores, Pullman insistirá em provocar o oponente chamando-o para discutir temas religiosos.

Estamos todos cansados de saber como são essas coisas. Basta lembrar da eleição para a prefeitura de São Paulo, Fernando Henrique x Jânio Quadros, e a pergunta sobre se Fernando Henrique acreditava em Deus.

Morris e sua equipe estavam preparados para esse tipo de ataque. No debate entre os dois, diante de platéia lotada e das câmaras de TV, Pullman questiona uma afirmação feita no passado por Morris a respeito de religião, e este se sai com o discurso ensaiado – ensaiado, mas brilhante:

– “Vou ser específico. Fui criado como católico, mas não sou praticante. E não tenho idéia do que acontece depois que morremos. Se o senador souber, talvez deva ser presidente. Voto nele.”

Risos na platéia. E Morris prossegue:

“Serei mais específico. Não sou cristão nem ateu. Não sou judeu nem sou muçulmano. Acredito no que está num pedaço de papel chamado Constituição dos Estados Unidos da América. O que significa que defenderei até meu último suspiro seu direito de venerar qualquer Deus em que acredite – desde que não prejudique os outros. Acredito que devemos ser julgados, como país, pelo modo com que cuidamos de quem não pode cuidar de si mesmo. Esta é a minha religião. Se você não achar que isso é religioso o bastante, não vote em mim.”

O cinema está sempre um pouco – às vezes muito – à frente da sociedade como um todo

Se Barack Obama – que teve quatro anos atrás e tem de novo agora todo o apoio de George Clooney – fizesse esse discurso num debate com Mitt Romney, muito provavelmente perderia uma grande quantidade de votos. Os marqueteiros e seus manuais ensinam que é melhor o candidato não ter posturas, opiniões firmes – uma postura firme antagoniza o candidato com um largo arco de gente que pensa o contrário. O melhor é procurar o mínimo múltiplo comum, o máximo denominador comum, o discurso balofo que não diz exatamente nada.

Mas George Clooney-governador Morris discursa no cinema, em um filme. Pode, portanto, ser mais firme, mais assertivo.

O candidato Morris é firme, assertivo, em tudo o que o fala nos discursos. Muito do que ele diz se aproxima bastante do que Obama falou em seus discursos, na campanha de quatro anos atrás, e que deixou ouriçadíssima a direita raivosa americana. Mais impostos para os muito ricos. Apoio à indústria que investir em tecnologia, em fontes de energia alternativa.

O cinema, como, de resto, todo o show business, está sempre um pouco – às vezes muito – à frente da sociedade como um todo. As pesquisas, e as votações finais, costumam mostrar republicanos (uns mais conservadores, outros um pouco menos) e democratas (uns mais progressistas, outros menos) praticamente empatados. O cinema americano é diferente do país: é pelo menos 90% democrata.

Uma jovem loura, estagiária na campanha, terá muita importância na trama

Parte do que o governador Morris diz no debate, naqueles minutos iniciais do filme, é dito em off, enquanto a câmara focaliza uma jovem loura que entra no salão do lugar em que se realiza o evento carregando uma bandeja com refrigerantes. Veremos que ela se chama Molly (é o papel da gracinha Evan Rachel Wood); trabalha como estagiária na campanha de Morris por amor à causa – ainda há, felizmente, jovens que se entusiasmam com um político que defende idéias abertas, à frente. (Na segunda temporada de The Good Wife, a filha mais nova da advogada Alicia Florick se entusiasma com Obama, diz que com ele a política virou cool – legal, maneira.)

Evidentemente, não é à toa que a câmara deixa de mostrar o governador Morris durante o debate para mostrar a jovem estagiária carregando refrigerantes. Molly, que também tem política no sangue, é filha de um ex-senador, Jack Stearns (Gregory Itzin), hoje presidente do Comitê Nacional Democrata, terá um caso com Stephen, o jovem assessor de imprensa believer – e terá importância preponderante no desenrolar da trama.

A peça em que o filme se baseia foi escrita por um jovem idealista

Clooney e o co-roteirista Grant Heslov mexeram muito no texto original da peça escrita pelo garotão Beau Willimon. Na peça, a figura do governador agora candidato à presidência sequer aparece; a trama enfoca Paul, o coordenador da campanha, Stephen, seu segundo, Ben Harpen (interpretado no filme por Max Minghella), outro membro importante do staff, e Molly, a estagiária. Clooney e Heslov criaram a figura do candidato e o puseram como o segundo protagonista da história. O protagonista principal, no filme, é mesmo Stephen, o jovem assessor believer.

Nos extras do DVD, Beau Willimon demonstra que foi, ele próprio, um danado de um believer. Começou a trabalhar em campanhas políticas (sempre pelo Partido Democrata, é claro) em 1998. Em 2004, acompanhou a equipe de campanha de Howard Dean – e aí, diacho, já não me lembro mais quem é Howard Dean.

Ah, tá: Howard Dean, após ser eleito e reeleito governador de Vermont, Estado desenvolvidíssimo da Nova Inglaterra, concorreu nas primárias democratas de 2004, e terminou em terceiro lugar. O candidado escolhido pela maioria dos democratas foi John Kerry – o qual, segundo uma ficha que cai muito devagar na minha cabeça, era menos avançado que Dean. Kerry acabaria perdendo para o republicano George W. Bush, que se reelegeu. (“They voted the cowboy in”, como diria Joan Baez.)

Mas então o jovem Beau Willimon, com base na sua vivência de pelo menos seis anos participando de campanhas políticas pelos democratas, escreveu, em 2004, sua peça Farragut North, que teve representações off-Broadway, fora do circuitão comercial dos grandes teatrões, e depois em Los Angeles. “Os personagens”, diz ele, “são misturas ficcionais das centenas de pessoas que conheci. A peça é o resultado de toda a experiência que adquiri trabalhando na política.”

Ele mesmo diz, candidamente, que quando começou era um idealista. Os jovens muito idealistas costumam ir perdendo as ilusões ao longo da vida. “A gente achava que iria mudar o mundo, e o mundo foi que nos mudou”, diz um personagem do eterno socialista Ettore Scola em Nós Que nos Amávamos Tanto. Depois de alguns anos, reconhece Willimon, sua visão já era mais realista.

– “Ah, ele é um cara legal”, diz a experiente repórter para o believer Stephen no começo da narrativa, sobre o governador Morris. “Eles todos são. Mas ele vai te decepcionar, mais cedo ou mais tarde.”

          Atenção: spoiler! Pule para o próximo intertítulo

E aqui vai um spoiler. Stephen decepciona o espectador believer, idealista, sonhador.

Mary, sempre mais arguta e rápida do que eu (na verdade, era ela que deveria ter um site de filmes), cravou corretissimamente que Ryan Gosling está extraordinário no papel principal deste belo filme.

Ele consegue passar para o espectador uma imagem extremamente simpática, na primeira metade da narrativa – para, depois, tornar-se abjeto, nojento. Para interpretar dessa maneira um personagem, como Ryan Gosling consegue, é preciso ter talento. E esse rapaz tem,  como bem demonstra aqui.

Quanto mais as pessoas se desinteressarem pela política, mais espaço haverá para os políticos ruins

O Stephen que Ryan Gosling interpreta no início de The Ides of March me fez lembrar um outro personagem de filme político americano: em Segredos do Poder/Primary Colors, que Mike Nichols fez em 1998, Adrien Lester faz o papel de Henry Burton, um jovem negro filho de um ativista das lutas pelos direitos civis dos anos 60 que é convidado para a campanha de um jovem político democrata progressista, avançado, o governador Jack Stanton, interpretado por John Travolta. A princípio, Henry fica de pé atrás, em dúvida, sem saber que Stanton é um bom ator, um populista safado, ou se realmente acredita nos discursos igualitários, libertários que faz.

The Ides of March, os idos de março. Belo título, o que escolheram para este belo filme. Júlio César foi morto num ido de março – era como se chamava em Roma o dia 15 daquele mês.

A expressão se tornou comum demais, e nos deixa acreditando que idos significa necessariamente tempo passado. Sim, acabou virando isso – tempos passados, época anterior. Mas originariamente eram os dias 15 dos meses de março, maio, julho e outubro, no calendário da Roma de César.

The Ides of March teve uma indicação ao Oscar, na categoria de roteiro adaptado. Foi derrotado por Os Descendentes, o filme extraordinário estrelado por George Clooney. O filme de Clooney ator derrotou o filme de Clooney diretor-roteirista-ator. Que coisa.

O filme teve 17 indicações, e apenas quatro prêmios. Normal, para um filme político. As pessoas parecem estar de saco cheio de política, no mundo todo, e não só aqui, neste fim de mundo, neste buraco negro.

Uma pena, uma grande pena. Quanto mais as pessoas se desinteressarem pela política, mais espaço haverá para os políticos ruins. E para os believers que se transformam em cynics.

Anotação em maio de 2012     

Tudo pelo Poder/The Ides of March

De George Clooney, EUA, 2011

Com Ryan Gosling (Stephen Meyers), George Clooney (governador Mike Morris), Philip Seymour Hoffman (Paul Zara), Paul Giamatti (Tom Duffy), Evan Rachel Wood (Molly Stearns), Marisa Tomei (Ida Horowicz), Jeffrey Wright (senador Thompson), Max Minghella (Ben Harpen), Jennifer Ehle (Cindy Morris), Gregory Itzin (Jack Stearns), Michael Mantell (senador Pullman)

Roteiro George Clooney & Grant Heslov e Beau Willimon

Baseado na peça Farragut North, de Beau Willimon

Fotografia Phedon Papamichael

Música Alexandre Desplat

Produção Cross Creek Pictures, Exclusive Media Group, Smoke House, Crystal City Entertainment. DVD Califórnia Filmes

Cor, 101 min

 

***1/2 

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