Flor do Mal / The Strange Woman

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1.5 out of 5.0 stars

As histórias sobre o diretor Edgar George Ulmer são muito mais interessantes do que a deste The Strange Woman, no Brasil Flor do Mal (que a Lume Filmes lançou em DVD com o título de Estranha Mulher).

“Ninguém jamais realizou bons filmes mais depressa ou com menos dinheiro do que Edgar Ulmer”, escreveu o diretor e historiador Peter Bogdanovich em seu calhamaço Afinal, Quem Faz os Filmes, de 1997. “O que ele era capaz de fazer a partir do nada (às vezes também no que tange aos roteiros) permanece uma lição para os diretores (incluo-me entre eles) que reclamam de orçamentos e prazos apertados. Edgar raramente dispunha de mais de seis dias para fazer um filme! É quase milagroso que, nessas condições, ele tivesse conseguido comunicar forte estilo pessoal e personalidade com os recursos tão escassos de que geralmente dispunha. Mas ele conseguia isso – e o fez mais de uma vez –, realizando clássicos da pobreza como o definitivo filme do gênero ‘aconteceu quando eu passava numa noite escura’, Detour (Curva do Destino); o místico thriller Karloff-Lugosi, The Black Cat (O Gato Preto); os melodramas densamente psicológicos Ruthless (O Insaciável) e Naked Dawn (Madrugada da Traição); Bluebeard (Barbazul), com John Carradine – apenas para mencionar os primeiros que vêm à mente.”

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Ulmer nasceu em 1904 na Morávia, na época parte do Império Austro-Húngaro, hoje República Checa. Começou a carreira no cinema alemão; colaborou com Max Reinhardt, depois com F. W. Murnau em Faust. Viajou aos Estados Unidos acompanhando Reinhardt em 1929, voltou à Alemanha, e em 1933 radicou-se de vez nos Estados Unidos, onde morreria em 1972.

Ele mesmo dizia que dirigiu 128 filmes. Vários deles foram produções baraticíssimas, faladas em ídiche, para o público judeu, e outras faladas em ucraniano.

“Algumas fitas irão garantir seu prestígio junto aos cinéfilos, fundando a lenda de um grande diretor confinado nas realizações de série B”, escreve sobre ele Jean Tulard no Dicionário de Cinema – Os Diretores. “O Gato Preto contrapunha Bela Lugosi a Boris Karloff em uma fantástica partida de xadrez num castelo isolado; Flor do Mal tinha uma atmosfera envolvente; Barbazul valia pela atuação de Carradine, e sobretudo Madrugada da Traição, western intimista em que um fora da lei perturbava a vida de um casal de jovens camponeses mexicanos.”

Hum… Segundo Tulard, Flor do Mal, este filme aqui, tem uma atmosfera envolvente…

A beleza de Hedy Lamarr impediu que ela tivesse bons papéis dramáticos

The Strange Woman, no Brasil Flor do Mal, na França Le Démon de la Chair, o demônio da carne, é um filme atípico, completamente atípico na filmografia de Edgar G. Ulmer. É tido como o filme de orçamento mais folgado de toda sua carreira – “um raro caso em que ele teve um elenco Grau A”, segundo Leonard Maltin. Segundo o livro The United Artists Story, o orçamento teve um estouro de US$ 1 milhão”!

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E, também ao contrário da imensa maioria dos filmes que fez, para filmar este aqui Ulmer teve tempo. As filmagens foram de 10 de dezembro de 1945 até meados de março de 1946. É verdade que as filmagens foram interrompidas entre 13 de dezembro de 3 de janeiro, por causa de uma gripe que derrubou a grande estrela do filme, Hedy Lamarr, a vienense que se tornou famosa mundialmente como a primeira mulher a aparecer inteiramente nua no cinema, em Êxtase, de 1933, e que para muita gente é o mais belo rosto que já apareceu numa tela. Mas, mesmo assim, o diretor teve muito mais tempo para trabalhar do que em todos os outros filmes que fez.

O filme foi rodado nos estúdios Samuel Goldwyn, mas não foi uma produção Samuel Goldwyn. Está citado no livro The United Artists Story, mas não foi produzido pela United Artists – a empresa apenas cuidou da distribuição do filme no mercado americano. Foi uma produção independente, embora naquela época ainda não se usasse esse adjetivo. A própria Hedy Lamarr produziu o filme, associada a Jack Chertok. E foi a estrela e produtora que escolheu Edgar G. Ulmer para dirigir.

Ele contou isso nas entrevistas a Peter Bogdanovich que seriam depois transcritas no livro Afinal, Quem Faz os Filmes: “Foi o primeiro filme que ela fez fora da MGM. Ela mesma era a produtora. Era muito difícil manejar o argumento, porque atravessava diversas gerações. Mas eu tinha um bom roteirista, Herbert Meadow, um rapaz que se tornaria muito famoso e também uma pessoa muito difícil.”

Perguntado por Bogdanovich sobre qual é sua opinião a respeito do filme, Ulmer diz: “Um belo filme. Hedy Lamarr quase conseguiu uma indicação da academia pela sua participação. Foi o único filme da sua vida em que ela teve de representar. Um belo filme – muito difícil, muito bonito.”

O único filme em que Hedy Lamarr teve que representar! Que frase maliciosa, acachapante!

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É opinião corrente que Hedwig Eva Kiesler (1914-2000) não chegou a ser propriamente uma grande atriz. Os produtores de Hollywood, que a importaram da Europa depois do sucesso avassalador de Êxtase, com suas cenas de nu frontal, não pretendiam que ela fosse, digamos, uma Bette Davis, uma Barbara Stanwyck; queriam apenas mostrar sua beleza e sua sensualidade – incríveis, avassaladoras, as duas.

Ela era tão bela e tão sensual que teve poucos papéis interessantes. É o que o diz o fascinante livro Actors & Actresses: “Hedy Lamarr nunca teve o mesmo sucesso, artística ou comercialmente, que outras emigradas – Greta Garbo, Greer Garson, Marlene Dietrich. Ela foi rotulada e escolhida para papéis de mulheres provocativas e tentadoras, e seu desenvolvimentlo como atriz foi severamente restringida pela reputação que tinha por causa das cenas de nudez de Êxtase. Paradoxalmente, sua beleza foi uma desvantagem que a impediu de ser considerada para papéis mais exigentes.”

Uma garotinha que mente, que falseia os fatos, que bate nos outros

The Strange Woman se baseia no romance homônimo de Ben Ames Williams (1889-1953), escritor prolífico, autor de mais de 30 romances e mais de 200 contos. O livro foi lançado em 1941.

É um danado de um dramalhão de época. Passa-se na primeira metade do século XIX – começa em 1824, mas vai muito adiante –, em Bangor, uma cidade do Estado do Maine, na Nova Inglaterra.

É um daqueles dramalhões que atravessam décadas e décadas e décadas da vida dos personagens. A protagonista da história, a mulher estranha do título original, chama-se Jenny Hagger. Na verdade, ela não parece ter nada de estranha – é uma mulher má, de mau caráter, só isso. Flor do Mal, como bem definiu o título brasileiro.

A primeira sequência em que Jenny aparece já deixa isso muito claro. Aparece menininha, aí de uns oito, talvez dez anos de idade (interpretada por Jo Ann Marlowe, cujo nome não aparece hora alguma nos créditos). Está junto de um garotinho de sua idade, Ephraim (Christopher Severn). Um grupo de crianças está reunida no rio que banha a cidade; dois garotos estão nadando, e Jenny dá gritinhos para que eles nadem mais depressa.

Ephraim não sabe nadar e tem medo d’água. Jenny o joga no rio; o garoto se debate, Jenny bota o pezinho na cabeça dele para piorar a situação.

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Surge uma charrete com o juiz da cidade, o juiz Henry Saladine (Alan Napier). Ele pergunta o que está havendo. Rapidamente, Jenny lança-se na água e ajuda Ephraim, que segundos antes ela tentava afogar, a sair do rio. Diz para o juiz que os meninos jogaram Ephraim na água, e que ela então pulou no rio para salvá-lo.

Uma garotinha ao lado tenta dizer que não foi bem assim e leva uma porradinha de Jenny.

O pai de Jenny é um bêbado, um traste inútil, que havia sido abandonado pela mulher – fica um tanto claro que a mulher o deixou para viver com outro homem.

Uma garotinha criada sem mãe, pelo pai bêbado, imprestável.

Uma garotinha que mente, que falseia os fatos, que agride o garotinho seu amigo, que bate numa outra menina – e que jura que vai ser muito rica.

Quase parei de ver o filme depois dessa apresentação do caráter da protagonista. Não tenho muito estômago para histórias que giram em torno de personagens que têm mau caráter.

A bela mulher má seduz um velho rico, o filho dele e o capataz dele

Corta, e temos Jenny já na pele de Hedy Lamarr. O pai continua bêbado, não fica nada claro de que maneira sobrevivem.

Jenny vai se casar com um dos homens mais ricos da cidade, o comerciante e madeireiro Isaiah Poster (Louis Hayward) – que vem a ser o pai viúvo de Ephraim, o amiguinho que a garota Jenny maltratava. Ephrain (agora interpretado por Gene Lockhart) estudou em Boston, e volta para Bangor com um diploma de arquitetura.

Jenny fará tudo para deixar alucinado de desejo o filho do marido.

Depois fará tudo para deixar alucinado de desejo o capataz do marido, John Evered (o papel de George Sanders).

De estranha, Jenny só tem a característica de que, entre uma manipulada e outra em algum dos homens que a cercam, costuma fazer atos de caridade às pessoas mais pobres da cidade.

E é isso aí o filme.

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O livro The United Artists Story define The Strange Woman como “um sombrio melodrama”.

Leonard Maltin dá 2.5 estrelas em 4: “Lamarr tem uma de suas melhores atuações como uma jovem mulher má no Maine do século XIX que afeta as vidas de três homens muito diferentes. Agradavelmente dirigida por Ulmer.”

Um detalhe que me ocorre: 12 anos depois deste The Strange Woman, outro filme cuja ação também se passa na Nova Inglaterra no começo do século XIX mostra uma bela jovem casada com homem rico bem mais velho que ela se apaixonando pelo enteado: é Desejo/Desire Under the Elms (1958), dirigido por Delbert Mann e baseado em peça de Eugene O’Neill. A bela mulher é interpretada por Sophia Loren, o velho marido por Burl Ives e o filho dele por Anthony Perkins.

Outro detalhe: a sequência inicial deste The Strange Woman, aquela passada quando Jenny e Ephraim eram garotos, foi dirigida por Douglas Sirk, o mestre do melodrama. A informação está no IMDb; não encontrei confirmação em outra fonte; no filme, não é dado crédito algum a Sirk.

Ulmer namorou uma mulher casada – e caiu em desgraça 

Sem dúvida alguma, as histórias do realizador Edgar G. Ulmer são mais saborosas do que a desse melodramão chato, cujo único interesse é ver na tela essa mulher de beleza resplandecente. Aí vai uma das muitas histórias dele.

Houve um tempo em que Ulmer teve dificuldade em achar emprego em Hollywood – por motivos que nada tinham a ver com competência profissional. É que ele teve um caso com Shirley Castle, a então esposa de um produtor de filmes B, Max Alexander, que, por sua vez, era sobrinho do todo poderoso presidente da Universal, Carl Laemmle. Laemmle pediu então aos demais chefões de estúdio que não dessem emprego ao diretor.

Mais tarde Ulmer se casou com a moça, e teve com ela uma filha, Arianne Ulmer, que trabalhou como atriz em oito filmes.

O casamento de Ulmer com Shirley, ao contrário deste seu filme aqui, deu certo. Viveram juntos até a morte dele, em 1972.

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Anotação em dezembro de 2014

Flor do Mal/The Strange Woman

De Edgar G. Ulmer, EUA, 1946.

Com Hedy Lamarr (Jenny Hager),

e George Sanders (John Evered), Louis Hayward (Ephraim Poster), Gene Lockhart (Isaiah Poster), Hillary Brooke (Meg Saladine), Rhys Williams (Deacon Adams), June Storey (Lena Tempest), Moroni Olsen (Reverendo Thatcher), Olive Blakeney (Mrs. Hollis), Kathleen Lockhart (Mrs. Partridge), Alan Napier (juiz Henry Saladine), Jo Ann Marlowe (Jenny criança), Christopher Severn (Ephraim criança)

Roteiro Herb Meadow

Baseado no romance The Strange Woman, de Ben Ames Williams

Fotografia Lucien N. Andriot

Música Carmen Dragon

Montagem John  M. Foley

Richard G. Wray

Produção Hunt Stromberg Productions, Mars Film Corporation, distribuição United Artits. DVD Lume Filmes

P&B, 100 min.

*1/2

Título na França: Le Démon de la Chair.

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