Primeiras impressões sobre her, a ficção científica de Spike Jonze de 2013: a) Joaquin Phoenix tem uma atuação absolutamente fenomenal, uma coisa fora de série;
b) no futuro próximo, as diferenças brutais entre Oriente e Ocidente terão desaparecido, segundo mostra o filme. A globalização igualou tudo: Xangai é igualzinha a Los Angeles. Todas as grandes cidades do mundo serão iguais, homogêneas, pasteurizadas – e feias. Como comprovação disso, temos o seguinte: a ação se passa todinha em Los Angeles, mas o filme foi rodado em parte em Los Angeles e em parte em Xangai;
c) no futuro próximo inventado pela imaginação absolutamente tresloucada de Spike Jonze, as mãos terão deixado de ter a ver com a escrita.
E isso aqui é muito doido, é tresloucado demais, é cheirado ou acidado demais, e então, antes mesmo de falar qualquer outra coisa sobre o filme, vou insistir no detalhe: Spike Jonze criou um universo em que, pela primeira vez na história da humanidade, não se usam as mãos para escrever, para grafar, para anotar, para desenhar, para registrar, para deixar para o futuro.
Por tudo o que sabemos até hoje, por tudo o que alguns milhares de anos de ciência nos permitiram pesquisar, há algumas dezenas de milhares de anos o ser humano passou a andar sobre suas duas patas traseiras, liberando as dianteiras para outros usos,
Com as patas dianteiras liberadas, o homem passou a usar objetos – para colher, para matar, para registrar seus feitos. Desde os tempos das cavernas.
Não se usa mais a mão para escrever – mas a empresa é Belas Cartas Escritas à Mão!
Gravamos, grafamos, escrevemos usando as mãos desde os tempos das cavernas. Os instrumentos variaram, desde penas de animais e tinta, passando pela caneta tinteiro, até chegar à esferográfica. Em meados do século XIX, inventou-se a máquina de escrever, e há cerca de um quarto de século, os computadores pessoais e mais recentemente os smart phones.
Mas sempre continuamos usando as mãos.
No futuro próximo imaginado por Spike Jonze, existem ônibus, táxis, carros, trens. Tudo exatamente como hoje. No entanto, não há mais necessidade das mãos para que os homens registrem o que lhes aconteceu, para que escrevam suas narrativas, para que leguem suas histórias para o futuro. No curto espaço entre 2013, o ano de lançamento de her, e o futuro próximo que o filme mostra, a informática dispensou o uso de coisas como o mouse e o teclado. A comunicação se faz diretamente entre a voz e o computador. A pessoa fala, o computador executa.
A empresa em que o protagonista da história trabalha chama-se Beautiful Handwritten Letters.com.
É uma empresa de alta tecnologia em que pessoas muito estudadas e treinadas escrevem cartas – com textos belíssimos – em nome de pessoas que têm meios para pagar quem escreva por eles e muito certamente pouco talento para expressar seus próprios sentimentos.
É assim uma espécie de Central do Brasil de Walter Salles num mundo futurístico e totalmente globalizado.
As cartas que a personagem interpretada por Fernanda Montenegro escrevia em nome de analfabetos aqui neste futuro criado por Spike Jonze são cartas escritas por profissionais altamente qualificados.
Mas aí vem a ironia total: as cartas escritas pelos escribas de aluguel da empresa Beautiful Handwritten Letters.com são impressas em letra cursiva, como se tivessem sido escritas à mão. Daí o próprio nome da empresa, Handwritten.
Só que elas não são escritas à mão. As mãos dos escribas de aluguel não tocam o teclado, já que naquele futuro próximo os teclados foram extintos.
her, portanto, começa a partir de uma total improbabilidade, de uma absoluta falta de lógica: não existe mais nada escrito à mão naquele tempo em que Theodorus (o papel de Joaquin Phoenix) é um dos mais brilhantes escritores de cartas em nome dos outros – e no entanto a empresa em que ele trabalha se chama Belas Cartas Escritas à Mão!
Muita coisa é igual a hoje. O que mudou muito foi a tecnologia da informação
Mas isso é um pequeno detalhe, uma coisa menor. Insisti nela porque sou apaixonado pelo ato de escrever, porque vivi disso sempre, praticamente sempre, e então achei o detalhe fascinante.
Todo o resto da ficção criada por Spike Jonze é – como bem reparou a Mary quando o filme terminou – absolutamente plausível, tudo tem lógica, tudo se encaixa.
Nem tudo é tão diferente assim dos dias de hoje, no futuro mostrado no filme. Continua havendo, como já disse, táxis, ônibus, trens. Há muitos trens, metrôs – a Los Angeles até hoje baseada no carro, autorama, que nem Brasília, se encaminhou para um patamar de alta civilização, com privilégio total ao transporte sobre trilhos.
Mas não há, por exemplo, robôs ou outras engenhocas desse tipo. O filme não está interessado nesse tipo de coisa.
O que avançou e mudou muito foi a tecnologia da informação – que, como a gente sabe, tem tido uma evolução rapidíssima, surpreendente, fantástica. Portanto, não é de se admirar que, num futuro próximo, tenha avançado tanto quando a imaginação de Jonze mostrou.
Os computadores, também como já foi dito, agora dispensam o mouse e o teclado, e obedecem à voz, diretamente. Há computadores com grandes telas, na casa das pessoas e no trabalho. Mas há também os computadores-telefones. É assim como uma evolução dos smart phones de hoje, que passam a ser computadores completos.
Theodore – como todos os seus contemporâneos, é claro – anda sempre com o computador-telefone no bolso. Sem fio (a evolução tecnológica já dispensou os fios), o computador-telefone se complementa com um aparelhinho colocado no ouvido. Com isso, Theodore se comunica com sua máquina; pede para ouvir os recados de voz da secretária eletrônica, os e-mails enviados – e o computador lê os e-mails, toca os recados.
O sistema operacional vem com a voz de Scarlett Johansson
Theodore é um profissional extremamente competente no que faz. Tem um texto maravilhoso, adaptável para as diversas situações, dependendo, é claro, da pessoa em nome de quem está redigindo as cartas. É muito admirado pelo seu chefe, Paul (Chris Pratt).
Mas é um homem solitário, bastante solitário. Separou-se faz um ano da mulher, Catherine (a ótima Rooney Mara), e ainda sente muito a falta dela, pensa nela constantemente. O advogado dela tem pedido para que ele assine os papéis do divórcio, e ele vem adiando a assinatura.
Seus dois únicos amigos são um casal que por coincidência mora no mesmo prédio que ele, Charles (Matt Letscher) e Amy (Amy Adams).
Está sendo lançado um novo tipo de sistema operacional de computador, mais avançado, mais adaptável ao tipo de exigências de cada pessoa. Mais customizado, como se diz hoje em dia. Theodore compra o novo sistema operacional, e o instala em seu computador. O SO pergunta se Theodore prefere que ele fale com voz feminina ou masculina, ele opta pela voz feminina. O SO faz algumas perguntas sobre os gostos de Theodore – e então se apresenta para ele como Samantha (com a voz, facilmente reconhecível, porque marcante, de Scarlett Johansson).
Passarão a conversar com frequência.
Theodore vai se apaixonar completa, perdidamente, por Samantha.
O relacionamento será muito intenso. E com todos os problemas que os relacionamentos em geral têm – ciúme, insegurança, cobranças, dúvidas, tensão, retraimento, pedidos de desculpa, reconciliação.
Uma obra rara, que não segue uma linhagem de filmes feitos antes
ela é um daqueles filmes raros, raríssimos, que são absolutamente originais, que não pertencem a uma linhagem de obras semelhantes que vieram antes.
Em geral, os filmes de ficção científica a) ou focalizam a existência de seres de outros planetas, b) ou são distopias, descrições de regimes totalitários de algum tipo, c) ou mostram a vida depois de uma gigantesca tragédia que destruiu boa parte da humanidade, d) ou mostram a vida numa sociedade ainda mais doente, mais trágica, do que a atual.
O Dia em Que a Terra Parou (1951, depois 2008), Contato (1997), Marte Ataca! (1996), por exemplo, são do tipo a.
1984 (1984), Minha Nova Vida (2013), Fahrenheit 451 (1966), são do tipo b.
O Planeta dos Macacos (1968, 2001) e todas suas sequências, A Estrada (2009), Os 12 Macacos (1995) são do tipo c.
Blade Runner (1982), Os Agentes do Destino (2011), Substitutos (2009), Heróis (2009) são do tipo d.
ela se concentra nas questões pessoais, nos relacionamentos afetivos. É uma ficção científica psicológica, afetiva, sentimental, romântica. Não me lembro de outros filmes assim.
Foram 84 prêmios, inclusive o Oscar e o Globo de Ouro de roteiro original
O diretor e roteirista Spike Jonze tem uma grande ligação com música. Dirigiu vídeos para grandes nomes do rock e do pop, entre eles R.E.M., Beastie Boys, Björk. Sua filmografia como diretor tem 40 títulos – mas a grande maioria é de videoclips e curta-metragens. Identifiquei apenas três longas antes deste ela: Quero Ser John Malkovich (1999), Adaptação (2002) e Onde Vivem os Monstros (2009).
Os dois primeiros têm roteiro original de Charlie Kaufman. Os dois mais recentes são roteiros do próprio Spike Jonze, sendo que o deste ela é inteiramente de autoria dele. Jonze, Kaufman e Michel Gondry são, muito provavelmente, os roteiristas mais originais, mais criativos, de imaginação mais ousada, maluca, delirante que surgiram nos últimos anos. Este filme aqui é mais uma prova disso.
Não é à toa que o filme ganhou tanto o Oscar quanto o Globo de Ouro de melhor roteiro original. Para o Oscar, foi indicado também nas categorias de melhor filme, trilha sonora, canção (“The Moon Song”, de Karen O e Spike Jonze) e direção de arte. Para o Globo de Ouro, teve também indicação nas categorias de melhor filme e melhor ator para Joaquin Phoenix.
Joaquin Phoenix está de fato extraordinário, fantástico, fascinante. Ele nos transmite uma imensa tristeza, uma gigantesca melancolia.
Todos os atores estão muitíssimo bem. É impressionante como Amy Adams está diferente da Amy Adams de Trapaça/American Hustle, lançado no mesmo ano de 2013. É uma prova de que de fato a moça é uma grande atriz: até seu rosto lindo é cameleônico.
Ao todo, o filme teve 84 prêmios, fora outras 101 indicações.
Samantha Morton gravou todas as falas – mas o diretor resolveu trocar tudo
Informações interessantes sobre o filme e sua produção, a maioria tirada da página de Trivia do IMDb:
* A inglesa Samantha Morton, a excelente atriz de Poucas e Boas (1999) Minority Report (2002), Longford (2006), O Mensageiro (2009), foi a escolhida para fazer a voz do sistema operacional que conversa ao longo de todo o filme com o personagem de Joaquin Phoenix, Theodore – e pela qual ele se apaixona. Embora obviamente não apareça na tela, já que não tem corpo, Samantha é o segundo personagem mais importante do filme. No entanto, depois das filmagens, quando começou a montar o filme, Spike Jonze achou que alguma coisa estava errada. Com a aprovação total de Samantha Morton, chamou Scarlett Johansson para regravar todas as falas da personagem.
* O nome do personagem, que era Samantha por causa da atriz escolhida inicialmente, permaneceu.
* Outra atriz inglesa, Carey Mulligan, tinha sido originalmente contratada para o papel de Catherine, a ex-mulher de Theodore. Mas ela acabou tendo outros compromissos, e foi substituída por Rooney Mara, que fez a Lisbeth Salander da versão americana de Os Homens Que Não Amavam as Mulheres.
* Me surpreendi ao ver, nos créditos finais, o nome de Kristen Wiig, atriz muito interessante, que havia visto recentemente em A Vida Secreta de Walter Mitty (2013) e também, com um rosto bastante diferente, em Paul, o Alien Fugitivo (2011). Eu não a tinha visto em momento algum do filme. Revi o trecho e aí ficou claro por que eu não tinha visto Kristen Wiig: ela faz apenas a voz de uma personagem com quem Theodore, insone, bate papo por telefone no meio da madrugada, e que atende pelo sugestivo nome de SexyKitten, gatinha sensual.
ela é uma beleza de filme. É daquele tipo de filme que você mal termina de ver e já quer ver de novo. É sensível, inteligente, profundo, delicado – e ainda por cima original.
Anotação em novembro de 2014
ela/her
De Spike Jonze, EUA, 2013
Com Joaquin Phoenix (Theodore Twombly),
e Amy Adams (Amy), Scarlett Johansson (a voz de Samantha), Rooney Mara (Catherine), Chris Pratt (Paul), Olivia Wilde (a moça do encontro às cegas), Matt Letscher (Charles), Portia Doubleday (Isabella), Kristen Wiig (a voz de SexyKitten)
Argumento e roteiro Spike Jonze
Fotografia Hoyte van Hoytema e Lance Acord
Música Arcade Fire e William Butler
Montagem Eric Zumbrunnen e Jeff Buchanan
Produção Annapurna Pictures. DVD Sony Pictures.
Cor, 126 min
***1/2
Um filme tão cheio de camadas interpretativas. Há muito tempo não via um filme que discute tanto, que tenha tantas idéias e tanta filosofia. Pra mim Ela é um retrato da dificuldade de entendimento da sentimentalidade humana em tempos de uma explosão tecnológica que permite praticamente tudo ao ser humano, menos o seu próprio entendimento.
No fundo Samantha é programada e definida para ser exclusiva de Theodore, ou seja, nada mais que um reflexo de si mesmo, portanto não há novidade no fato de se apaixonarem já que são a mesma pessoa. O que é novo aqui , são todos os percalços que o ser humano tem consigo mesmo dentro de um relacionamento.
Se um computador por mais capacitado e inteligente que seja, não consegue visualizar uma razão lógica para seus sentimentos , quem dirá de um mero , frágil e irracional ser humano.
Estamos fadados à solidão e à amargura, não vejo Ela como um filme belo e sim doído, triste e com pouca perspectiva de futuro para o homem, por mais contraditório que isso possa soar em se tratando de um filme futurista.
Clássico. Talvez uma fábula pré-monitória do futuro, onde um SO irá interagir (e não estamos distante disto, pois o Google está aí…).
Muita cor laranja e suas nuances… algum simbolismo que eu não captei??
Um abraço.