Um homem invade a casa de uma mulher, e a mantém refém, prisioneira dele. Sempre que sai para fazer alguma coisa, a amarra e a amordaça para que não peça ajuda, não fuja, não faça nada.
Só mesmo um realizador safado, iconoclasta, sarcástico a não mais poder, herético, provocador, hedonista exibicionista, violenterrimamente adepto da linha vamos chocar os religiosos os burgueses os conservadores como Pedro Almodóvar poderia pegar essa trama e transformá-la numa comédia arregaçada.
Em Ata-me, filme de 1989, Ricky (o papel de Antonio Banderas, cara de garotão aos 29 anos de idade, fazendo papel de garotinho de 23) invade o apartamento de Marina (Victoria Abril, gloriosamente bela aos 30 aninhos). Ela tenta gritar, ele dá uma porrada nela. Algum tempo depois, ela lança contra ele um copo cheio d’água, ele dá mais uma porrada nela. E aí ele diz:
– “Tentei falar com você, mas você não me deixou. Assim, tive que raptá-la para que me conheça melhor. Tenho certeza de que se apaixonará por mim, como estou apaixonado por você. Tenho 23 anos e 50 mil pesetas. Estou só no mundo. Tentarei ser um bom marido para você e um bom pai para seus filhos.”
Quando ele diz isso, o filme está aí com uns 20 minutos. Bem mais adiante, perto de 50 minutos de filme já decorridos, Ricky diz para si mesmo, em voz alta, para Marina e o espectador ouvir:
– “Quanto tempo vai levar para ela se apaixonar por mim? O que é preciso para ela perceber que ninguém a amará como eu?”
Essas frases loucas de Ricky me fizeram lembrar o discurso igualmente louco que um sujeito misterioso faz para Christine, a personagem interpretada por Claude Jade em Beijos Proibidos/Baisers Volés (1968), o terceiro filme de François Truffaut com seu alter ego, Antoine Doinel. O sujeito segue Christine ao longo do filme inteiro; ela não o vê, não conversam em momento algum. No final do filme, Christine está sentada com o namorado, Antoine, em um banco de praça, e o camarada então chega e diz para ela que os dois vão se casar, porque homem algum a amará mais que ele.
Loucura. Coisa de louco.
Essa coisa pavorosa – uma ou várias pessoas que invadem um lugar e tornam uma ou várias pessoas suas prisioneiras, reféns – já rendeu diversos bons filmes, e, infelizmente, com toda a certeza continuará dando origem a muitos outros mais.
Afinal, você ser dominado, raptado, sequestrado, tomado de assalto por um bandido ou um grupo de bandidos, e não saber o que vai acontecer em seguida, é um dos piores pesadelos que um ser humano pode ter.
Filmes antológicos já foram feitos sobre esse pesadelo
Tento lembrar de alguns filmes antológicos sobre este tema pavoroso. Nossa, são muitos. A Floresta Petrificada/The Petrified Forest (1936): diversas pessoas tornam-se reféns de grupo de bandidos liderado pelo personagem interpretado por Humphrey Bogart. Outro com Humphrey Bogart, Paixões em Fúria/Key Largo (1948), ele agora na posição inversa, como uma das pessoas tiranizadas por um grupo de asseclas de um mafioso em um hotel numa das ilhas Keys, no extremo Sul da Flórida e dos Estados Unidos.
A Dama Enjaulada/Lady in a Cage (1964): uma senhora de meia idade (Olivia de Havilland) fica presa no elevador interno de sua casa californiana enquanto um grupo de assaltantes faz fuzarca em todos os aposentos.
Mais um com Humphrey Bogart como bandidão: Horas de Desespero/The Despertate Hours (1955). Fugitivo da prisão invade casa de família e inferniza a vida dela durante longas, longas horas. A história foi refilmada em 1990, em Horas de Desespero/Desperate Hours, com Michael Rourke no papel do bandidão invasor que havia sido de Bogey antes, e Anthony Hopkins no papel do chefe da família aterrorizada, que antes havia sido desempenhado por Fredric March.
Em O Colecionador (1965), de William Wyler, baseado no romance de John Fowles, o personagem de Terence Stamp igualmente sequestra a moça por quem desenvolveu uma paixão doentia, interpretada pela maravilhosa Samantha Eggar. O filme e o livro marcaram minha adolescência.
Eu poderia continuar me lembrando de outros filmes como estes aí. São, todos eles, dramas pesados, densos, claustrofóbicos: o espectador sofre com os personagens raptados, sequestrados, tomados, invadidos, ameaçados.
Na banheira, um brinquedinho que vai até a xoxota da heroína
Almodóvar, safado, iconoclasta, sarcástico a não mais poder, etc, etc, se diverte com a situação. Não, ele não quer que o espectador sofra junto com Marina, a moça tomada de assalto e imobilizada por Ricky. Ele quer…
Meu Deus do céu e também da terra, o que será que Almodóvar quer que o espectador deste Ata-me faça, sinta?
Acho que, sobretudo, mais do que fazer o espectador rir, Almodóvar quer rir do espectador. Quer rir da simpatia que o espectador poderá sentir pela vítima da cruel ação do assaltante. Quer rir dos bons modos do espectador, que torce pela vítima, contra o assaltante.
Almodóvar quer avacalhar com as idéias do espectador.
O que incomoda o espectador, em Ata-me – bem, pelo menos o que me incomoda bastante -, é saber o tempo todo que Marina, a vítima, vai se apaixonar perdidamente por Ricky, o assaltante, o sequestrador.
Tudo agora tem mil estudos e tem nome, e então os doutos cientistas e estudiosos da psicologia e do comportamento humanos definiram que se chama “Síndrome de Estocolmo” o amor do aprisionado pelo aprisionador. Está na Wikipedia em português: “Síndrome de Estocolmo (Stockholmssyndromet em sueco) é o nome dado a um estado psicológico particular em que uma pessoa, submetida há um tempo prolongado de intimidação, passa a ter simpatia e até mesmo sentimento de amor ou amizade perante o seu agressor.”
Almodóvar não está muito interessado em discutir sobre a Síndrome de Estocolmo. Ele quer é mostrar que a paixão da aprisionada Marina pelo aprisionador Ricky advém da Síndrome do Pau Gostoso.
Almodóvar é daquele tipo de pessoa que só pensa em sexo.
Há uma sequência deliciosa, antes de Ricky se apossar de Marina: ela chega em casa, vai tomar banho de banheira, e coloca para funcionar um brinquedinho movido a pilha, um mergulhador em miniatura, que vai nadando pela banheira, vai nadando pela banheira, e acaba fazendo cócegas na xoxota da mocinha.
Primeiro há uma tomada subaquática: vemos o mergulador viajando, e aí vemos, imensas, gigantescas, as pernas abertas de Marina. Aí corta e temos uma tomada em que vemos Marina de cima para baixo, um plongée 180 graus, a cabeça dela em primeiríssimo plano, na parte de baixo da tela, os peitinhos lindos no meio da tela e, na parte superior, o brinquedinho fazendo cócegas masturbatórias na xoxota da heroína.
A protagonista é uma atriz de filmes pornográficos
O uso da palavra heroína, aí, foi proposital. Marina, a heroína da história, o papel da gracinha absoluta Victoria Abril, já foi viciada em heroína. Ela é uma atriz de filmes pornô. O diretor Máximo Espejo (Francisco Rabal), que teve um AVC, está filmando agora com Marina o que acredita vá ser seu último filme. Máximo é absolutamente tarado por Marina.
No dia em que a ação começa – um dia extremamente longo –, Máximo está tentando filmar a cena final de seu último filme.
Na manhã daquele mesmo dia, Ricky havia sido chamado à sala da diretora (interpretada por Lola Cardona) da instituição psiquiátrica em que estava internado. A diretora, tristíssima, diz a Ricky que o juiz emitiu sentença mandando soltá-lo. Entrega a ele as tais 50 mil pesetas para que ele comece uma nova vida – mas, antes de sair para a rua, para a liberdade, Ricky faz com com a diretora o que vinha fazendo há tempos, aquilo em que é especialista: foder.
E então Ricky, solto, livre, vai para o estúdio em que ele sabe que Marina trabalha – o estúdio em que ela está fazendo mais um filme de sacanagem dirigido por Máximo Espejo.
Ricky de fato tenta falar com ela, ali no estúdio. Ela não dá bola para ele. Vai para casa. Ele a segue – e pronto, invade a casa dela, a domina, a faz de refém, vítima, sequestrada.
E a gente sabe que, em algum momento do filme, Marina vai se apaixonar perdidamente pelo homem que a tomou, dominou, fez de refém, bateu nela.
Nelson Rodrigues, que dizia que mulher gosta mesmo é de apanhar, pareceria um feminista convicto, diante do quadro tenebroso que Pedro Almodóvar pinta das mulheres.
Um filme que abusa do sexo – mas está longe de ser pornográfico
Criei aqui neste site uma tag chamada QuasePornô. É para os filmes que não são abertamente pornô, mas estão muito perto. Muitas vezes filmes que aparentemente querem se dizer contrários à pornografia chegam muito perto dela.
Fiquei pensando se deveria incluir Ata-me! nessa tag – e a conclusão é de que não tem nada a ver.
Almodóvar é um provocador – mas não é, de forma alguma, algo de baixo nível, um explorador. Ele não tem nada de subreptício. Muito ao contrário – é sempre escrachado. Não quer saber de despiste, de forma alguma.
Almodóvar quer gozar todo tipo de moralismo – ou, talvez, todo tipo de moral.
Assim, ele jamais faz apelações pornográficas. A sequência do mergulhador que masturba Marina foi criada para ser engraçada (e é!), não pornográfica.
Uma das imagens mais marcantes de Ata-me, reproduzida nos cartazes do filme, mostra Victoria Abril de quatro, no chão, com um vestido bem curto, coxinhas à mostra, a bunda lindérrima arrebitada. É uma imagem de uma carga sensual incrível. Pois bem: no filme, a cena é rapidíssima – Marina está no estúdio, deixou cair alguma coisa no chão, agacha-se para apanhar. O diretor Máximo está observando aquilo em absoluto deleite.
Se quisesse apelar, Almodóvar poderia prolongar a cena – a visão da bela Victoria Abril naquela posição é absolutamente apaixonante. Mas, não. A tomada é rapidíssima, Almodóvar corta e vai em frente.
E, na sequência em que enfim Marina dá para Ricky, bem, aí a sequência é extremamente erótica.
Não voltei a ver O Ùltimo Tango em Paris desde a época da estréia, mas creio que não há, naquele filme, nada tão erótico quanto a sequência em que Ricky enfim come Marina.
É uma sequência lindérrima, das mais eróticas que o cinema já fez – e não tem nada de abusiva, de gráfica, de pornô. Até porque, não muito interessado assim no corpo feminino, o diretor faz a câmara se aproximar do rosto de Victoria Abril, no momento em que ela conhece o prazer do Pau Gostoso de Ricky. O rosto dessa atriz fantástica é, aí, extremamente erótico – mas, obviamente, não é pornográfico.
O filme foi um sucesso. Nos EUA, teve problemas com a censura
Eu, pessoalmente, não tenho especial apreço por essa coisa de filmes feitos para chocar, pour épater les bourgeois. Sei lá por quê. De fato não sei explicar. Acho meio bobo, meio adolescente. E não consigo entender humor negro. É uma deficiência que tenho.
Mas Almodóvar é tão talentoso, o casal de atores é belo, o exagero nas cores de tudo – as paredes, as portas, os móveis – é tão assinatura pessoal do autor, que não há jeito de não gostar do filme.
Ata-me foi um imenso sucesso de público e crítica. Foi apresentado em competição no Festival de Berlim, teve indicação para o César de melhor filme estrangeiro, 15 indicações ao Goya.
Veio logo após o estrondoso sucesso internacional de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), e ajudou a estabelecer Almodóvar como realizador do primeiríssimo time.
Diz o IMDb que Almodóvar levou nove horas para filmar a cena de sexo entre Banderas e Victoria Abril. Ele acabou escolhendo as últimas tomadas das várias que filmou – os corpos dos dois atores àquela altura estavam suadérrimos, o que dá mais autenticidade à cena. Ainda segundo o IMDb, o grande Elia Kazan afirmou que essa era uma das melhores cenas de sexo que ele viu no cinema.
O filme teve problemas com a MPAA, a associação americana dos produtores, para se estabelecer a indicação de faixa etária dos espectadores. A princípio, o filme foi classificado como X – a mais severa das classificações, a mesma usada para filmes abertamente pornográficos. A Miramax, que distribuiu o filme nos Estados Unidos (com o título de Tie Me UP! Tie Me Down!), fez diversos apelos, e mais tarde a classificação baixou para NC-17, o que significa “apenas para adultos – ninguém com 17 anos ou menos pode assistir; claramente para adultos”.
Leonard Maltin deu ao filme 2.5 estrelas em 4: “Paciente mental sequestra uma ex-drograda, estrela pornô, dá alguns tapas nela, e depois a amarra a uma cama; na verdade, ele só quer se casar e ter filhos. O pesadelo potencial surge na verdade surpreendentemente domado – em se tratando de Almodóvar –, embora ainda tenha seu surpreendente humor negro. Um filme que faz pensar, com atuações enérgicas.”
Roger Ebert deu apenas 2 estrelas em 4. Ele confessa que não consegue se sintonizar com os filmes de realizador espanhol: “Almodóvar é um diretor com enorme número de fãs no mundo inteiro, mas filmes como Tie Me Up! Tie Me Down! me fazem sentir cada vez mais deixado de lado. (…) Creio que as polaridades de Almodóvar são tão perfeitamente opostas a todas as minhas que é bem possível que algum de seus filmes passe através do meu cérebro sem encostar em uma única célula.”
Ele cita o filme de William Wyler que citei acima: “A história já foi contada antes, e melhor, em filmes como The Collector, de William Wyler, mas Almodóvar tenta usar um certo estilo que a transforma em uma comédia esquisita. Ocasionalmente, temos a sensação de que ambos os personagens sabem que estão num filme – aquilo tudo é sobre papéis em um filme, e os atores nunca na verdade levam a sério o seqüestro.”
É um ponto de vista que tem perfeita lógica. Todos os espectadores que não gostarem nada de Ata-me seguramente compreenderão perfeitamente o que o grande Roger Ebert quer dizer.
A questão é: há alguém que não goste de Ata-me? Eu mesmo, que, exatamente como Ebert, tenho uma escala de valores completamente diferente da do realizador, não consegui não gostar do filme, como já disse acima.
O Guide des Films do mestre Jean Tulard adorou. E fez uma observação corretíssima, que fico frustrado por não ter feito: a semelhança do universo de Almodóvar, em especial neste Ata-me, com o de Luís Buñuel.
Diz o Guide sobre Attache-moi: “Um filme sobre amor louco do jeito dos surrealistas; Maximo Espejo, este cineasta velho interpretado por Francisco Rabal, parece inspirado em Luís Buñuel. A realização é brilhante, com seus cenários modernos e as cores vivas. Mas, além do seu humor negro e de seu estilo provocador, Almodóvar demonstra uma grande ternura por seus dois principais personagens, ambos interpretados com grande força por Victoria Abril, recém chegada ao universo do cineasta, e por Antonio Banderas.”
É isso. É um universo às vezes bastante doentio, este, de Almodóvar. É doido, insano, doentio – mas é mostrado com tanto talento que não tem jeito de não gostar.
Anotação em abril de 2015
Ata-me!/Átame!
De Pedro Almodóvar, Espanha, 1989
Com Victoria Abril (Marina Osorio), Antonio Banderas (Ricky),
e Loles León (Lola), Julieta Serrano (Alma), María Barranco (a médica),
Rossy de Palma (a moça da Vespa), Francisco Rabal (Máximo Espejo), Lola Cardona (a diretora do instituto psiquiátrico), Montse G. Romeu (a jornalista)
Argumento e roteiro Pedro Almodóvar
Fotografia José Luís Alcaine
Música Ennio Morricone
Montagem José salcedo
Produção El Deseo. DVD MGM.
Cor, 101 min
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Ex-presidiário gato sequestra a altamente sequestrável Victoria Abril, que acaba se apaixonando pelo sequestrador, porque ninguém é de ferro também, né?
O erotismo e a pornografia são formas de expressão artística que aterroriza sistemas totalitários (tanto de esquerda como da direita) e por isso não há nada mais reacionário do que se opor a essas formas de expressão. O sexo explícito (não simulado) já apareceu em filmes de importantes cineastas, como Nagisa Ôshima, Walerian Borowczyk, Marco Bellocchio, Tinto Brass, Catherine Breillat, Gaspar Noé, Patrice Chéreau, Lars von Trier, Yorgos Lânthimos e muitos outros mais. O que leva um cinéfilo a se opor a esse tipo de abordagem da sexualidade? Moralismo exarcebado? Conservadorismo religioso? Não sei.
Sobre a questão do gosto pela provocação, não há cineasta na história do cinema que mais se dedicou a provocar a burguesia do que o mestre espanhol Luis Buñuel (gostaria muito de saber a opinião do caro senhor Vaz sobre a obra desse grande artista nascido em Calanda em 1990).
Por fim, chega a ser no mínimo paradoxal que um crítico que diz tanto se opor ao erotismo no cinema utilize uma linguagem tão “chula” (e pornográfica) para descrever e analisar filmes de todas as épocas (incluindo os filmes da “casta” Hollywood da época de ouro do cinema americano). Isso até me fez lembrar do pseudofilósofo e guru da direita brasileira Olavo de Carvalho, que não sabia analisar nada sem utilizar palavrões e expressões “chulas”. Freud explica…
Um abraço.