As Chaves do Reino tem diversos nomes importantes em seus créditos iniciais, e até teve quatro indicações ao Oscar. No entanto, me parece que é um filme bastante obscuro, bem pouco conhecido, falado, badalado.
Li o livro em que o filme se baseia quando era adolescente, ali entre os 14 e os 16 anos. Nos anos 60, A. J. Cronin era bastante conhecido – li outros livros dele, além de As Chaves do Reino. Certamente era um autor respeitado nos anos 40, quando o filme foi feito, pois nos créditos iniciais o letreiro principal diz “A. J. Cronin’s The Keys of the Kingdom”.
Cronin, no entanto, sumiu na poeira do tempo. Que eu saiba, não há hoje nas livrarias brasileiras sequer uma das suas muitas obras. Deixou de ser publicado – foi esquecido. É um fenômeno que acontece com alguns autores. Morris West, por exemplo, era um espetacular sucesso nos anos 60; quem se lembra hoje de Morris West, a não ser velhinhos como eu?
Citei o fato de ter lido o livro quando adolescente para realçar o fato de que o filme me parece de fato obscuro: nunca soube da existência do filme (ou, se já soube algum dia, me esqueci completamente, o que dá na mesma).
Saiu agora em DVD no Brasil lançado por uma empresa nova, M.D.V.R, que usa o nome Colecione Clássicos – Obras-Primas do Cinema. Suponho que seja uma daquelas empresas que se apropriam de filmes que, por uma razão ou outra, caíram no limbo, estão sem detentor de direitos autorais.
O diretor é John M. Stahl, realizador de respeito. O roteiro é assinado por uma dupla incrível – Joseph L. Manckiewicz e Nunnally Johnson, ambos com sólidas carreiras como produtores e diretores, além de roteiristas. O papel central coube a um ator então iniciante – foi o segundo filme do jovem Gregory Peck, depois de Quando a Neve Tornar a Cair/Days of Glory, um estranho esforço de guerra que homenageia o então aliado Josef Stálin.
O elenco tem ainda nomes de peso na época: Thomas Mitchell, Vincent Price, Cedric Hardwicke. Tem a participação especial de um ator mirim que teria longa e prestigosa carreira, Roddy McDowall. O principal papel feminina coube a Rose Stradner, bela atriz de vida curta e trágica.
A trilha sonora é do grande Alfred Newman. Uma das indicações ao Oscar foi exatamente da trilha sonora – as outras foram para Gregory Peck, para fotografia (de Arthur C. Miller) e para direção de arte (James Basevi, William S. Darling, Thomas Little e Frank E. Hughes).
Um monsenhor observa o velho padre e acha recrimináveis diversas de suas atitudes
Pode até não ser um grande filme – e de fato tem alguns defeitos, alguns problemas –, mas diz coisas belas, importantes.
É uma história sobre valores morais, fé, religião, bondade, dedicação. O personagem principal – o papel de Gregory Peck – é um padre, o padre Francis Chisholm.
É uma daquelas histórias que atravessam décadas e décadas e décadas. Focaliza a vida de Francis Chisholm desde que ele era um garoto de uns 12 anos, em 1878, até sua velhice, em 1938.
A narrativa começa em 1938. Um monsenhor (interpretado por Sir Cecil Hardwicke) havia sido enviado à pequena cidade escocesa de Tweedside, para investigar como estava se saindo o idoso padre Francis, que, após muitas décadas vivendo e trabalhando como missionário na China, havia voltado um ano antes para sua cidade natal e assumido a paróquia.
É interessante ver o jovem Gregory Peck (ele estava com 28 aninhos) maquiado para pareceber bem velhinho, com a cabeleireira branquinha, branquinha.
O monsenhor não gostou do que viu ao longo de uma semana de observação.
Na véspera de sua partida de volta para a cidade sede do bispado, ele tem uma conversa desagradável com o padre Francis. Pergunta pela sua idade, ele responde que é a mesma do bispo, que nasceu na mesma cidade que ele e foi seu contemporâneo no seminário. (O agora bispo Angus Mealey vai aparecer em uma sequência longa do filme, bem mais adiante, interpretado por Vincent Price.)
O monsenhor observa que a vida havia tratado de forma diferente os dois – dando a entender que o padre Francis parece muito mais velho que o ex-colega de seminário, agora seu superior hierárquico.
E enumera os problemas, as peculiaridades que observou na forma com que o padre Francis se relaciona com seus paroquianos:
* Num sermão, e justamente na Semana Santa, o padre afirmou que nem todos os ateus são homens sem Deus, e contou que conheceu um ateu que espera que esteja agora no céu. Tsc, tsc…
* Em outro momento, o padre tinha dito: “Os bons cristãos são bons homens, mas descobri que os confucionistas têm um senso de humor melhor”. Tsc, tsc…
* E, para a sra. Glendenning, uma de suas paroquianas mais assíduas na igreja, uma dama corpulenta, o padre havia ditto: “Coma menos. As portas do paraíso são estreitas”. Um absurdo!
– “Temo que o senhor tenha perdido o comando das almas, padre”, sentencia o monsenhor.
Grande parte do filme focaliza os anos do padre no interior do planeta China
O monsenhor se retira então para o quarto que tem ocupado naquela semana. Na estante, ele vê um grande volume de capa dura, com o título “A jornada de Francis Chisholm”. É um diário escrito pelo padre. O monsenhor fica curioso, começa a ler – e o espectador passa então a ver na tela a história que o padre Francis narra e o monsenhor vai lendo noite adentro.
Começa com Francis garoto, interpretado por Roddy McDowall. O ano é 1878. O pai de Francis é um pescador – um homem católico. Numa noite de tempestade, o pescador é espancado por um grupo de protestantes na cidade próxima de sua casa, pelo simples fato de ser católico. A mãe de Francis vai à cidade, encontra o marido bastante machucado, volta com ele na direção de casa – mas, num riacho transformado em rio caudaloso por causa da tempestade, afogam-se os dois.
Francis fica sem pai e mãe garotinho de uns 12 anos.
Será criado por uma tia – e vai se engraçar pela prima Nora (interpretada por Peggy Ann Garner quando garota e por Jane Ball quando adulta).
Apesar da paixão por Nora, e de ter dado a ela a certeza de que não seria padre, Francis, no entanto, entra no seminário. Não volta a ver Nora: ela fica grávida (e jamais conta quem seria o pai da criança), dá à luz uma menina e morre no parto.
Sim, As Chaves do Reino é um tremendo de um dramalhão.
O jovem padre Francis não se dá muito bem nas duas primeiras paróquias para as quais é designado. Seu mentor, o padre Hamish MacNabb (Edmund Gwenn), pergunta o que ele acha da possibilidade de ir chefiar uma missão católica na China. Ele aceita.
Todos esses acontecimentos ocupam uma parte bem pequena do filme, talvez os primeiros 20 minutos – o filme é longo, tem 2 horas e 17 minutos.
A maior parte da narrativa é ocupada pela permanência do padre Francis no interiorzão do planeta China.
E aí é que o filme tem seu ponto mais fraco, acho eu. Por melhores roteiristas que fossem Manckiewicz e Johnson (e eles eram excelentes), é muito difícil para ocidentais mostrar a vida no interiorzão bravo do planeta China. A China só é vizinha no título do filme de Marco Bellocchio de 1967, La Cina è Vicina, no Brasil A China Está Perto. A China é um mundo à parte. Nem mesmo hoje, com o mundo reduzido, em muitos aspectos, a uma aldeia global, é possível conhecer a China. Imagine-se em 1944.
Durante os primeiros 20, 30 minutos da narrativa já na China, fiquei um tanto incomodado, achando as situações esquisitas, mal ajambradas, mal formuladas. Mas depois disso tudo melhora bastante.
Para Cronin, as aparências enganam, e o hábito não faz o monge
Além do próprio protagonista, há dois personagens fascinantes na história criada por A. J. Cronin. Um é o tal ateu que o padre Francis gostaria que estivesse no céu – um amigo dele desde a juventude, Willie Tulloch, interpretado por Thomas Mitchell (na foto acima), um ator de quem Frank Capra gostava especialmente (ele está em A Mulher Faz o Homem e A Felicidade Não se Compra, entre outros).
Willie é um ser do bem. Enquanto Francis estudava no seminário para ser padre, Willie cursava Medicina. Irá visitar o amigo na China, levando um grande estoque de remédios. É um sujeito de um senso de humor afiadíssimo – e estava sempre a coçoar da fé do amigo no Deus em que ele mesmo não acreditava. Acontece de, durante sua estadia na China com o padre Francis, estourar uma guerra entre monarquistas e republicanos – e Willie trabalha como um louco num hospital improvisado.
A outra personagem interessantíssima é a madre Maria-Veronica (o papel de Rose Stradner). Ela é a superiora do grupo de três freiras enviadas para ajudar o padre Francis na sua missão. É uma austríaca de família aristocrática – a mãe é baronesa –, e apesar de ser madre, é um poço de frescura, orgulho, preconceito. Tem nojo de pobre, de trabalhador. Antipatiza-se profundamente com aquele padre simples, que faz todo tipo de trabalho manual e está sempre sujo, empoeirado, deselegante.
Naturalmente, como esta é uma história “inspirational” (a palavra inglesa me parece tão mais eloquente do que “inspirador”), madre Maria-Veronica vai mudar.
O bispo Angus Mealey é só aparência, vaidade, orgulho. Não vale um fio de cabelo do padre humilde.
Uma madre que demora bastante para abrir o coração, um ateu convicto que é um missionário, um fazedor de bondades, um bispo que é um idiota. A. J. Cronin deixa bastante clara sua visão de mundo: as aparências enganam, e o hábito não faz o monge. Há santos entre os ateus e pecadores entre os que usam paramentos religiosos.
A vida de Cronin, com muita coisa dura, difícil, daria um belo filme
Archibald Joseph Cronin (1869-1981) era escocês como seus personagens de As Chaves do Reino, e médico como Willie Tulloch. Segundo a Britannica, Cronin “combinava realismo com um toque romântico e uma pitada de crítica social; seus romances tiveram amplo número de leitores e vários deles foram transformados em filmes de sucesso”.
A vida de Cronin daria um belo filme. Como o padre Francis, ficou órfão bem cedo – perdeu o pai aos 9 anos. Teve infância e adolescência difíceis, passou por muita privação, e só conseguiu estudar Medicina graças a uma extraordinária força de vontade e disposição para o trabalho. Formado, passou por um hospital psiquiátrico de Londres, foi médico de bordo de um grande navio, cirurgião na Marinha Real durante a Primeira Guerra Mundial. Depois de casar-se com Mary Agnes Gibson, ela também médica, passou um período numa cidade mineira do País de Gales, atendendo mineiros feridos – os acidentes nas minas eram extremamente comuns.
Dessa experiência com a pobreza na cidade mineira de Gales surgiria a mais famosa de suas 60 obras, A Cidadela/Citadel, lançado em 1937, “que mostrava como as pressões econômicas podem distorcer a boa prática médica”, segundo a Britannica. Já a Wikipedia vai mais longe e afirma que A Cidadela promoveu “novas idéias controversas sobre a ética médica que em grande parte inspiraram o lançamento do National Health Service”, o serviço nacional de saúde britânico.
Fiz agora uma busca no site da Livraria Cultura. De fato, não há um livro de Cronin disponível em português. Há uma edição importada de The Keys of the Kingdom, e uma em alemão de Cidadela, Die Zitadelle. Uma edição de Três Amores, seu segundo romance, de 1932, chegou a sair na coleção Grandes Romances da Abril Cultural, em 1985. De lá para cá, o mundo editorial brasileiro baniu A. J. Cronin.
A atriz austríaca casou-se com Joseph L. Mankkewicz – e foi sua perdição
Jamais tinha ouvido falar de Rose Stradner, a atriz que interpreta a madre Maria-Veronica. Rose nasceu em Viena, em 1913, e foi educada em um convento, mas desde cedo sonhava em ser atriz. Aos 16 anos começou a estudar na Academia de Música e Arte de Zurique, e aos 19 foi vista e aprovada por Max Reinhardt, iniciando uma carreira no teatro; entre 1933 e 1936 fez alguns filmes ainda na Europa, até que Louis B. Mayer, o chefão da MGM, a viu e, encantado, prometeu a ela um contrato em Hollywood.
Seu primeiro filme nos Estados Unidos foi O Último Gângster (1937), em que apareceu ao lado de Edward G. Robinson e o jovem James Stewart. O segundo foi Alucinação/Blind Alley, de 1939. Naquele ano, casou-se com o roteirista-produtor-diretor Joseph L. Mankiewicz – com quem teve dois filhos, Chris e Tom.
As Chaves do Reino foi seu terceiro filme em Hollywood – e o último. Enquanto o marido tinha casos com, entre outras, Judy Garland e Linda Darnell, Rose teve sérios problemas mentais, mergulhou no álcool. Depois de algumas tentativas, matou-se em 1958. Tinha apenas 45 anos.
Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4 para o filme e dedicou a ele apenas uma linha: “Peck está ótimo neste longo mas de maneira geral bom filme sobre a vida de um missionário (interpretado quando menino por McDowall); baseado na novela de A. J. Cronin.”
Dame Pauline Kael ataca com sua língua feriníssima. Eis a tradução da sinopse dela feita por Sérgio Augusto:
“Hollywood no auge da virtude. Esta história da vida aventureira de um padre escocês do século XIX – missionário na China – parece um anúncio religioso. O humilde herói vive dizendo a todo mundo que é um tipo de homem desinteressante, e com Gregory Peck no papel acreditamos nisso. A santidade dele nos parece falta de imaginação – absoluta esterilidade. Como Joseph L. Manckiewicz e Nunnally Johnson se deixaram apanhar para escrever o roteiro, baseado no romance de A. J. Cronin? (Não se poderiam encontrar dois roteiristas menos adequados, por temperamento, a esse tipo de cinema edificante.) O diretor, John M. Stahl, impõe um ritmo lento, carola, e assim o mantém, com o rosto bonito e sem carisma de Peck iluminado ‘por dentro’. (Ele fulge, um fulgor oco.) Talvez seja a atuação mais exaltada e assexuada já feita por um jovem astro.”
Pauline Kael às vezes me enche muito o saco.
As Chaves do Reino é um livro escrito com idealismo, esperança, crença. O filme que resultou dele também é assim. Prefiro mil vezes os believers aos cínicos.
Anotação em março de 2015
As Chaves do Reino/The Keys of the Kingdom
De John M. Stahl, EUA, 1944
Com Gregory Peck (padre Francis Chisholm)
e Thomas Mitchell (Willie Tulloch), Rose Stradner (madre Maria-Veronica), Benson Fong (Joseph), Leonard Strong (Mr. Chia), Vincent Price (Angus Mealey), Roddy McDowall (Francis Chisholm garoto), Edmund Gwenn (padre Hamish MacNabb), Cedric Hardwicke (o monsenhor), Peggy Ann Garner (Nora garota), Jane Ball (Nora adulta)
Roteiro Joseph L. Manckiewicz e Nunnally Johnson
Baseado no romance homônimo de A. J. Cronin
Fotografia Arthur C. Miller
Música Alfred Newman
Montagem James B. Clark
Produção Joseph L. Manckiewicz, 20th Century Fox. DVD Colecione Clássicos.
P&B, 137 min
***
Boa tarde, Sérgio! Voc~e agora me fez recordar de minha adolescência quando li a A Cidadela, um grande livro! Eu o li várias vezes.
Lembro-me também que o comprei pelo Círculo do Livro, que nem sei se ainda existe!
Outros tempos!
Um abraço!
Cronin era fantástico, esse filme é maravilhoso, vi quando era jovem e devorava Cronin, e foi uma alegria indescritível ver GREGORY PECK e VINCENT PRICE lado a lado.
Fui procurar a definição de carisma no dicionário e o verbete era o rosto do Gregory Peck. Se ele não tem esse carisma, então ninguém tem. Ele é tão carismático que meu comentário ficou longo!
PS: Greg morreu em um dia dos namorados (junho), o Peter Falk morreu em junho, Robert Donat, enfim, o Christopher Lee agora contra minha vontade também se vai… Cara, eu detesto esse mês!!!
Valdecir, também li A Cidadela quando era adolescente, maravilhoso. Também gosto do filme do King Vidor, estrelado pelo Robert Donat, um ator fantástico que infelizmente morreu cedo.
…
Sérgio, como os personagens do Cronin sofrem! Sempre achei que ele era uma espécie de Douglas Sirk da literatura.
…
Uh, Gregory Peck, oba!
Sim, Valdecir, eram outros tempos…
Obrigado pelo comentário.
Senhorita, você escreveu mais do duas frases! Milagre de São Gregório!
Um abraço.
Sérgio
Você descobriu meu ponto fraco!
“Prefiro mil vezes os believers aos cínicos”.
Assino embaixo. Até porque o cinismo, como o ceticismo, é muito confortável.
Ah, sobre o filme: eu o vi tem muitos e muitos anos, na companhia da minha mãe, que já faleceu. Ainda desejo revê-lo.
o filme é perfeito.
só imbecis não enxergam isso.
não tentar mostrar o âmago da China é toque de mestre, pois tanto quanto a Índia é mundo inescrutável até para chineses comuns.