Esta comedinha de 1952 parte de uma idéia deliciosa: dois anos e meio depois de se casarem diante de um juiz de paz, seis casais são informados de que o casamento não é válido. De que legalmente não são casados, como indica o título original, We’re No Married.
As reações à revelação são as mais diferentes possíveis – e as situações que se criam são bem divertidas.
O filme mostra o que acontece com cinco dos casais quando recebem a informação de que não estão casados. Só aí, portanto, já há dez personagens. E não há propriamente protagonistas na história – é um filme em que vários atores participam, e cada um aparece basicamente em um segmento apenas. Desta forma não há propriamente atores principais e outros secundários.
A 20th Century Fox reuniu, para interpretar os diversos papéis, vários atores que já eram muito famosos com outros que estavam em início de carreira. A maior estrela do elenco, quando o filme foi lançado, era Ginger Rogers. Ela é que apresenta a história no trailer original do filme.
Uma das cinco mulheres casadas que descobrem que na verdade o casamento não tem validade foi interpretada por uma jovem contratada pela Fox que, naquela época, estava aparecendo como coadjuvante em vários, vários filmes. Estava em ascensão – mas, em 1952, era apenas isso, uma jovem atriz em ascensão.
Era linda, tinha um corpo de fechar o comércio – e então passa a imensa maior parte das cenas em que aparece de maiô, as coxas belíssimas inteiramente à mostra. O pretexto para isso é que ela era uma eterna candidata a miss. No final do ano seguinte, 1953, já seria a maior estrela do cinema americano. Claro, óbvio: é Marilyn Monroe.
Todas as vezes que o filme foi lançado em vídeo, em DVD, só dá Marilyn na capa.
Os segmentos variam bastante de qualidade
Interessante: no verbete sobre o filme no seu guia de filmes, o mais vendido do mundo, Leonard Maltin não fala de Marilyn. Ele dá 3 estrelas em 4 e diz o seguinte: “Ótima frivolidade palavrosa servida em vários episódios sobre seis casais que descobrem que seu casamento não era legal. Os segmentos variam de qualidade, mas o elenco de primeira linha em geral entrega a mercadoria. Escrito e produzido por Nunnally Johnson. Lee Marvin tem uma pontinha.”
Maltin está certíssimo quando diz que os segmentos variam muito de qualidade. Lee Marvin aparece no segmento do quinto e último casal a ser apresentado ao espectador, numa pontinha mesmo, como o amigo do casado não-casado. Seu nome não aparece nos créditos iniciais. A história desse quinto casal me pareceu a mais fraquinha de todas.
É interessante essa coisa de um filme em segmentos – todos pertencendo a uma única história – porque foi uma moda nos anos 50 e 60 no cinema francês e no italiano. Nos Estados Unidos, houve alguns poucos – não muitos. Um dos vários filmes em que Marilyn Monroe fez papéis pequenos naquela época, Páginas da Vida/O’Henry’s Full House, também de 1952, era composto por cinco episódios independentes, isolados, cada um dirigido por um realizador – o ponto em comum é que eram contos do mesmo escritor, o O’Henry do título original. Na década seguinte, os europeus fariam filmes de esquetes às pencas, como Histórias Extraordinárias, Boccaccio 70, As Bruxas, As Bonecas, Os Sete Pecados Capitais, O Diabo e os Dez Mandamentos.
Mas vou fazer um flashback, e voltar ao início do filme.
O filme abre, após os créditos inicias, mostrando uma placa: “Bem-vindos a Gretna Green, a Cidade do Casamento”. É noite, a rua está coberta de neve – é véspera de Natal – e um carro estaciona junto de uma casa em frente à qual há uma placa anunciando “juiz de paz”.
É um casal bem esquisito, este primeiro que aparece, formado por Ramona (o papel de Ginger Roger) e Steve (Fred Allen, na foto com Ginger). Os dois não parecem pombinhos apaixonados, de forma alguma. Há menção ao fato de que eles já estavam há algum tempo procurando um juiz que fizesse a cerimônia de forma rápida e barata.
Batem à porta da casa, e são atendidos por um juiz de paz igualmente esquisito. É um senhor idoso, chamado Melvin Bush (o papel de Victor Moore), que jamais havia celebrado um casamento antes. Na verdade, havia recebido o documento legal que o investia no cargo de juiz de paz poucas horas antes.
Steve, o noivo, fica um tanto receoso, chega a propor que procurem alguém mais experiente, mas a senhora Bush (Jane Darwell) sugere enfaticamente que o casamento se realize naquele momento mesmo.
O juiz Bush nem sequer sabia como proceder aos trâmites, mas ele havia acabado de receber o livrinho com todas as explicações.
E pronto: Steve e Ramona são pronunciados marido e mulher.
O velhinho só viraria juiz de paz seis dias depois de receber o diploma
Um letreiro informa: “Dois anos e meio depois”. Estamos no palácio do governo do Estado; o governador (Victor Sutherland) recebe a visita do juiz Bush, que é seu tio. O juiz havia sido chamado ao palácio pelo secretário de Justiça do Estado (Tom Powers). O secretário de Justiça pergunta ao juiz quantos casamentos ele havia celebrado antes do dia 1º de janeiro de dois anos antes.
O juiz é extremamente organizado, e tem um grande caderno em que anota todos os casamentos que realizou. Examina o caderno, e diz que foram seis.
O secretário de Justiça pergunta se ele havia lido a carta que seguira junto com o livrinho com instruções e com o diploma de juiz. Bush confessa que não leu a carta inteira – ele tinha acabado de receber o material, era véspera de Natal, chegou um casal…
O secretário então explica: o diploma que o juiz havia recebido no dia 24 de dezembro só passaria a ter validade no dia 1º de janeiro. Portanto, aqueles seis primeiros casamentos que ele havia realizado não tinham valor legal.
Decidem que o governador enviará uma carta informando sobre esse lamentável erro para cada um dos casais não legalmente casados.
Uma gozação fortíssima da instituição casamento
O primeiro casal não legalmente casado a ser focalizado é aquele da abertura do filme, Steve e Ramona. E rapidamente o espectador entenderá por que o casal era esquisito: é um casamento de fachada, por conveniência. Steve e Ramona têm um programa matinal numa rádio de Nova York em que funcionam como uma espécie de conselheiros matrimoniais. No meio de uma série interminável de merchandising, eles mostram como são profundamente felizes na vida conjugal, e dão lições para os ouvintes.
Na vida real, se detestam. Não se suportam.
É um segmento de ironia fortíssima – nele, o roteirista e produtor Nunnally Johnson goza o esquema de merchadising do rádio, arrasa com o esquema de aconselhamento matrimonial e ri da própria instituição casamento.
O segundo casal é o de Marilyn Monroe. Annabel Norris, seu personagem, participa de concursos de Mrs – senhoras casadas – e vence sempre. Jeff, o maridão (David Wayne), cuida da casa e do filhinho de um ano, enquanto a esposa mostra o corpo estonteante para o mundo.
As situações são bobinhas – mas quem está preocupado com a historinha, se Marilyn está ali de maiô o tempo todo?
O terceiro episódio é outra ironia com a instituição casamento: quando o juiz Bush oficializou a união de Hector e Katie (Paul Douglas e Eve Arden), eles falavam sem parar entre eles. O juiz ainda se lembra bem desse detalhe: falavam sem parar. Hoje, dois anos e meio depois, Hector e Katie praticamente não têm o que dizer um ao outro.
O quinto episódio, aquele que tem uma ponta de Lee Marvin e eu considerei o mais bobinho, mostra os jovens Willie e Patsy (Eddie Bracken e uma Mitzi Gaynor garotinha de tudo. na foto acima). Willie havia sido convocado para o Exército, está de partida com seu regimento para a Califórnia e de lá vai embarcar para a guerra (não há referência a qual guerra, mas na época os Estados Unidos estavam atolados na Coréia).
No dia em que Willie vai embarcar no trem rumo à Califórnia, e recebe a carta informando que seu casamento não tem valor legal, Patsy recebe a notícia de que está grávida. Willie se desespera: tem que casar de novo, ou então seu filho não será legítimo.
Deixei para o final o quarto episódio – que, na minha opinião, é o melhor deles, disparadamente. O casal Melrose, Freddie e Eve, é interpretado por Louis Calhern e Zsa Zsa Gabor (os dois na foto). Freddie é um milionário texano bem mais velho que Eve – e Eve quer toda a grana dele para si. É uma absoluta delícia.
Um grande roteirista, um diretor veterano e talentoso
Nunnally Johnson (1897-1977), o produtor e co-autor do roteiro do filme, teve uma carreira longa, premiada e extremamente respeitada. Foi autor ou co-autor de mais de 70 roteiros, incluindo pérolas como Vinhas da Ira (1940), A Raposa do Deserto (1951) e Como Agarrar um Milionário (1953). Produziu 42 filmes e dirigiu oito, entre eles O Homem do Terno Cinzento (1956) e As Três Máscaras de Eva (1957).
O mestre Jean Tulard crava, em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores que Johnson foi “um dos roteiristas mais importantes de Hollywood”. “Criticou-se nos seus filmes uma tendência ao excesso de diálogos – pecado menor dos roteiristas que se tornaram realizadores –, mas ele utilizou com habilidade o CinemaScope e provou ser uma autoridade na direção de atores.”
Mestre nos roteiros de dramas psicológicos e filmes noir, demonstra, no roteiro deste We’re Not Married, que não se sentia inteiramente à vontade na comédia ligeira.
O diretor Edmund Goulding (1891-1957), um pouco mais veterano que Nunnally Johnson, era também talentoso era várias áreas. Foi ator, produtor, diretor, roteirista, até compositor. Dirigiu 41 filmes, a partir de 1928 (Love, uma versão de Anna Karenina) até 1958 (Noites de Mardi-Gras, passando por Grand Hotel, o primeiro filme reunindo elenco all-stars de Hollywood (1932) e A Grande Mentira (1941).
Marilyn teve papéis pequenos em uns 12 filmes até 1952
Confesso, e não sem alguma vergonha, que nunca soube (ou não me lembrava, o que dá na mesma) que Marilyn havia feito pequenos papéis em tantos filmes, antes de, ao longo de 1953, virar uma grande estrela, a maior estrela.
Claro, eu me lembrava do pequeno papel dela em A Malvada/All About Eve, o excepcional clássico de Joseph L. Mankiewicz de 1950, e também de O Segredo das Jóias/The Asphalt Jungle, o clássico de John Huston também de 1950.
Lembrava bem de dois filmes de 1952, o drama pesado Almas Desesperadas/Don’t Bother to Knock, e a comédia escrachada O Inventor da Mocidade/Monkey Business, do mestre Howard Hawks.
Em 1953, ela faria papéis importantes em três filmes, que a catapultariam ao estrelato: Torrente de Paixão/Niagara, Os Homens Preferem as Louras e Como Agarrar um Milionário. Faria ainda um dos principais papéis em O Mundo da Fantasia/There’s No Business Like Show Business, que seria lançado apenas no ano seguinte.
E, a partir de 1954, faria sete filmes já como estrela absoluta: O Rio das Almas Perdidas/River of No Return, O Pecado Mora ao Lado/The Seven Year Itch, Nunca Fui Santa/Bus Stop, O Príncipe Encantado/The Prince and the Showgirl, Quanto Mais Quente Melhor/Some Like it Hot, Adorável Pecadora/Let’s Make Love e Os Desajustados/The Misfits.
Não tinha conhecimento da existência deste We’re Not Married. Tudo bem: antes tarde do que nunca – agora já vi.
Mas não tenho idéia do que sejam Dangerous Years (1947), Scudda Hoo! Scudda Hay! (1948), Ladies of the Chorus, Love Happy (1949), The Fireball, Right Cross, A Tickett to Tomahalk (todos de 1950), As Young as You Feel, Hometown Story, Let’s Make it Legal, Love Nest (todos de 1951) e ainda Clash by Night (1952).
E, já que confessei, embora um tanto envergonhado, minha falta de conhecimento, faço outra confissão, desta vez sem vergonha alguma: se pudesse, se tivesse fácil acesso a eles, veria cada um desses filmes. Tenho certeza de que gostaria muito mais deles do que de muita coisa que vem sendo produzida hoje.
Mas que é extraordinário, fantástico, é: Norma Jean Mortenson fez aí pepéis pequenos em uns 12 filmes. Fez papéis importantes em outra dúzia de filmes – e foi o bastante para se transformar em uma das maiores estrelas do cinema em todos os tempos, uma das figuras mais icônicas, mais emblemáticas da cultura popular do século XX.
Anotação em junho de 2014
Travessuras de Casados/We’re Not Married
De Edmund Goulding, EUA, 1952
Com Ginger Rogers (Ramona), Fred Allen (Steve Gladwyn), Victor Moore (Melvin Bush, o juiz de paz), Jane Darwell (a senhora Bush), Marilyn Monroe (Annabel Norris), David Wayne (Jeff Norris), Eve Arden (Katie Woodruff), Paul Douglas (Hector Woodruff), Eddie Bracken (Willie Fisher), Mitzi Gaynor (Patsy Fisher), Louis Calhern (Freddie Melrose), Zsa Zsa Gabor (Eve Melrose), James Gleason (Duffy), Paul Stewart (advogado Stone), Jane Darwell (Mrs. Bush), Tom Powers (secretário de Justiça), Victor Sutherland (governador Bush), Lee Marvin (Pinky)
Roteiro Nunnally Johnson e Dwight Taylor
Baseado em história de Gina Kaus e Jay Dratler
Fotografia Leo Tover
Música Cyril J. Mockridge
Montagem Louis Loeffler
Produção Nunnally Johnson, 20th Century Fox.
P&B, 86 min
**1/2
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