42: A História de uma Lenda / 42

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Este 42, que no Brasil ganhou o complemento de A História de uma Lenda, é um belo filme. Tem muito drama, emoção, pathos. Mas é daqueles filmes que, além de serem bons, são também necessários, importantes: conta a história real dos dois homens, um de pele clara, outro de pele escura, que enfrentaram o racismo no beisebol dos Estados Unidos, nos anos 1940 – e derrubaram uma barreira poderosíssima, fizeram História.

A História às vezes avança depressa demais, e corremos o risco de perder um pouco da perspectiva, do contexto. Nesta segunda década do século XXI, os Estados Unidos têm um presidente de pele escura, e então é sempre bom lembrar que até meados dos anos 1960 o racismo era legal em diversos dos Estados americanos. Não era apenas forte, poderoso, praticamente onipresente – era legal, garantido por lei, exatamente como na África do Sul do apartheid.

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Como lembra um diálogo de um dos muitos filmes importantes sobre o racismo nos Estados Unidos, Adivinhe Quem Vem Para Jantar, de 1967, o casamento entre pessoas de cor de pele diferente era proibido por lei em 16 ou 17 dos 51 Estados americanos.

Negros não podiam frequentar os mesmos banheiros que os brancos.

Só em 1947 um negro foi admitido em um time importante de beisebol.

O filme 42 conta a história desse homem, Jackie Robinson, e do homem que, contra tudo e contra todos, botou Jackie Robinson para jogar nos Brooklyn Dodgers, Branch Rickey.

Jackie Robinson é interpretado por Chadwick Boseman, um ator de fina estampa, bonitão, corpo atlético, vigoroso, 1 metro e 83 de altura. Não é propriamente um iniciante: sua filmografia já tem mais de 20 títulos. Mas eram geral séries de TV; apenas em 2012 teve a oportunidade de interpretar um papel importante, em The Kill Role. Este aqui foi o segundo filme em que é o protagonista.

Branch Rickey, o dono dos Brooklyn Dodgers, o sujeito corajoso, obstinado, que botou Jackie no seu time, é interpretado por Harrison Ford. O ator que fez Han Solo na primeira trilogia Guerra nas Estrelas e Indiana Jones nos quatro filmes fantásticos de Spielberg, agora aos 71 anos de idade, interpreta Rickey com todas as caras e bocas de que é possível um ator. Faz mais caretas do que no conjunto de sua vasta filmografia de 70 títulos – e está ótimo. Seu personagem é tão forte, tão determinado, tão poderoso, e o ator tem tanto carisma, que é absolutamente impossível o espectador não se fascinar por esse Branch Rickey.

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O dono do time pede que o jovem negro tenha a coragem de não reagir às agressões

O diretor Brian Helgeland, ele próprio autor do roteiro, facilita a vida do espectador colocando, ao longo de toda a narrativa, letreiros que situam o quando e o onde se passam os fatos. O onde varia bastante – há sequências passadas em Pasadena (não a do Texas da refinaria escandalosa, mas a da Califórnia), em Nova York, em New Orleans, em várias cidades da Flórida, na Filadélfia, em Cincinatti, até mesmo no Panamá. O quando, no entanto, varia pouco: praticamente toda a ação se passa no ano de 1947, o ano em que Rickey contratou Jackie Robinson.

Jackie tinha, então, 24 anos – nasceu em 1919, em Cairo, Geórgia. Tinha servido Exército durante a Segunda Guerra Mundial – e sido levado à Corte Marcial, por ter protestado contra um motorista de ônibus que o mandou se sentar nos bancos de trás, como era o costume nos Estados segregacionistas do Sul. Esforçado, forte, havia cursado faculdade, na UCLA. Era um rebelde letrado, e, como atleta, tinha um potencial fabuloso.

Rickey sabia da corte marcial, assim como sabia das estatísticas sobre Jackie nos times das ligas só para negros do beisebol. Tinha a ficha completa do rapaz – e mandou chamá-lo a Nova York. Ofereceu a ele um belíssimo salário para que jogasse no Montreal, um time que também pertencia a ele, Rickey, uma espécie de primo da segunda divisão dos Brooklyn Dodgers. A idéia era preparar Jackie no time menos visível, e mais tarde, aí sim, fazer o grande salto, inscrever pela primeira vez um negro num time da Major League, a primeiríssima divisão do beisebol americano.

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O diálogo que se dá entre o jovem atleta vigoroso, rebelde, do tipo que não leva desaforo para casa, que entre sentar atrás em um ônibus e enfrentar uma corte marcial prefere a segunda hipótese, e o milionário dono de dois times de beisebol disposto a mudar a História, é de uma força extraordinária.

O velho branco oferece ao jovem atleta negro uma chance fantástica, mas sob uma condição: que ele domine sua rebeldia. Que ele enfrente – sem reagir – às mais grosseiras provocações que com toda a certeza viriam. Que seja humilhado – e permaneça quieto, calado, manso.

Por uma dessas coincidências de que é feita a vida, Rickey e Jackie eram, os dois, metodistas.

E Rickey pergunta a Jackie se ele seria capaz, como Cristo, de oferecer a outra face.

– “O senhor quer um jogador que não tenha a coragem de reagir?”, ele pergunta.

E Rickey responde: – “Não. Eu quero um jogador que tenha a coragem de não reagir”.

Naquele tempo, era preciso engolir muito sapo, em nome do fim da segregação

Sem procurar compreender a perspectiva, o contexto, fica difícil entender o que o dono dos Brooklyn Dodgers propunha ao bravo atleta.

Neste ano de 2014, o jogador Daniel Alves surpreendeu o mundo – de forma positiva – ao reagir a um absurdo insulto racista: pegou a banana atirada contra ele numa partida de futebol na Espanha e a comeu. Foi um belíssimo, corajoso gesto, que teve apoio geral, no mundo todo.

Em 2014, não há, em país algum do mundo, leis racistas, segregacionistas. O racismo já foi banido das leis, é hoje banido pelas leis.  Sobrevive ainda, infelizmente, amaldiçoadamente, mas como uma praga nojenta, uma doença que só acomete a radicais e imbecis, uma chaga a ser eliminada da face da Terra.

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O presidente da maior potência mundial, um dos países em que o racismo foi mais enraigado em toda a sociedade, tem a pele escura.

Não cabe mais, em 2014, conformar-se com o racismo, aceitá-lo, levar desaforo para casa.

Em 1947 – tão pouco tempo atrás, em termos de Grande História, mas também já tão distante, nas brumas de um passado pré-histórico, em termos do avanço da luta contra o racismo –, a melhor forma de combater o racismo nos campos de beisebol era o jogador negro não reagir às provocações. Engolir os sapos todos – em nome de uma vitória maior, o fim da segregação na Major League.

Visionário, Branch Rickey percebeu isso – é o que o filme nos mostra. No sensacional diálogo da primeira vez em que se encontram, ele diz para Jackie: se ele reagisse a um insulto, o que ficaria na imprensa, no imaginário coletivo, não seria o insulto feito por um branco, mas a reação do negro. A ofensa aos costumes da época não seria o insulto, mas a reação.

E então Jackie Robinson responde ao homem que oferece a ele uma oportunidade histórica – mas também uma provação como a de Cristo durante seus 40 dias no deserto:

– “O senhor me dá um uniforme, o senhor me dá um número nas minhas costas, e eu lhe darei a coragem.”

A coragem do dono do time e do grande jogador derrubaram marcos que pareciam imutáveis

Esse diálogo fantástico acontece quando o filme está aí nos primeiros 20 minutos de uma narrativa de 128.

A provação que Jackie iria enfrentar seria duríssima. O nível de racismo da sociedade americana – escancarado no filme, sem vergonha de lembrar chaga tão absurda – era brutal, escandalosamente brutal.

Nunca me esqueci de uma crônica marcante de Henrique Pongetti, publicada na revista Manchete ainda na primeira metade dos anos 1960, sobre o racismo nos Estados Unidos. A crônica falava de Sidney Poitier, que, em 1964, ganhou o Oscar de melhor ator por Uma Voz nas Sombras/Lillies of the Field, de Ralph Nelson – o primeiro ator de pele escura a ganhar o prêmio. Pongetti comparava o feito de Sidney Poitier ao de grandes boxeadores negros americanos da época, e esculpiu uma frase extraordinária, que eu não saberia reproduzir ipsis litteris, mas que é algo assim: eram punhos que derrubaram campeões brancos, mas não derrotaram o racismo.

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A narrativa de 42 – o número da camisa que lhe deram quando ele finalmente deixou o Montreal para jogar nos Brooklyn Dodgers – mostra como o talento de Jackie Robinson foi derrotando alguns marcos do racismo até então tidos como eternos, imutáveis.

Não foi fácil. De forma alguma. Muito antes ao contrário.

Mas aconteceu.

Como em muitos filmes baseados em histórias reais, 42 mostra, nos créditos finais, o que viria a acontecer com diversos daqueles personagens nos anos que se seguiriam. É emocionante. É absolutamente emocionante.

O diretor não tem medo de apelar para as emoções do espectador

Esse Brian Helgeland, nascido em Rhode Island em 1961, tem uma carreira respeitável. Até aqui, dirigiu sete filmes, e escreveu o roteiro de 23; já coleciona 29 prêmios e outras 14 indicações. Ganhou, junto com o diretor Curtis Hanson, o Oscar de roteiro adaptado por Los Angeles – Cidade Proibida/L.A. Confidential, de 1997, e teve indicação pelo roteiro adaptado de Mystic River, no Brasil Sobre Meninos e Lobos, o filme de Clint Eastwood de 2003 baseado no livro de Dennis Lehane.

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Antes de Mystic River, já havia escrito o roteiro para outro filme de Clint Eastwood, Dúvida de Sangue/Blood Work (2002). É também o autor do roteiro de Zona Verde (2010), ótimo filme de Paul Greengrass que demonstra, tintim por tintim, como a motivação usada por George W. Bush para invadir o Iraque em 2003 era uma grande falácia.

Neste seu filme virulentamente anti-racista, não teve medo ou pejo de apelar para as emoções do espectador. Há diversos momentos em que os movimentos grandiosos da câmara e a trilha sonora um tanto grandiloquente de Mark Isham se unem para cutucar diretamente o coração das pessoas.

E não tem jeito: quem tem coração se emociona mesmo.

São grandes heróis, Jackie Robinson e Branch Rickey. São daquela estirpe fina de pessoas que não nos deixam na desesperança de achar que a humanidade, afinal de contas, foi uma invenção que deu errado.

Anotação em junho de 2014

42: A História de uma Lenda/42

De Brian Helgeland , EUA, 2013

Com Chadwick Boseman (Jackie Robinson), Harrison Ford (Branch Rickey)

e Nicole Beharie (Rachel Robinson), Christopher Meloni (Leo Durocher), Ryan Merriman (Dixie Walker), Lucas Black (Pee Wee Reese), Andre Holland (Wendell Smith), Alan Tudyk (Ben Chapman),  Hamish Linklater (Ralph Branca), T.R. Knight (Harold Parrott), John C. McGinley (Red Barber), Toby Huss (Clyde Sukeforth), Max Gail (Burt Shotton), Brad Beyer (Kirby Higbe)

Roteiro Brian Helgeland

Fotografia Don Burgess

Música Mark Isham

Montagem Peter McNulty e Kevin Stitt

Produção Warner Bros. Pictures e Legendary Pictures

Cor, 128 min

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