O Homem Que Não Estava Lá / The Man Who Wasn’t There

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3.0 out of 5.0 stars

Tudo, absolutamente tudo em O Homem Que Não Estava Lá, que os irmãos Coen lançaram em 2001, é estiloso. Cada tomada dos 116 minutos do filme parece ter sido cuidadosissimamente planejada para ser estilosa, charmosa, afetada, rebuscada, não natural, diferenciada. É como se fosse assim uma espécie de tese de doutorado de escola superior de cinema.

Cada posição da câmara, cada tipo de luminosidade na fotografia em glorioso preto-e-branco, parece feita para impressionar os estudantes de cinema, os críticos, os fanáticos, os apaixonados. Para berrar: olhem como somos geniais.

Às vezes parece que a forma com que Joel e Ethan Coen contam a história (criada por eles mesmos) é muito mais importante que a história em si.

zzman3Tenho tendido, cada vez mais, à medida que fico mais velhinho, a desprezar essas coisas que chamo de fogos de artifício, invenciones, criativóis. Tenho cada vez mais apreciado as narrativas claras, simples, diretas, escorreitas – uma boa história, com bons personagens, bem contada, sem muita frescura formal, é o que mais me agrada hoje em dia.

No entanto, me rendi totalmente aos maneirismos, aos fogos de artifício dos irmãos Coen, ao rever agora o filme – na verdade vendo-o como se fosse a primeira vez, porque não me lembrava de quase nada. Contradição? Pode ser. Mas a verdade é que, quando o maneirismo, os fogos de artifício, tudo é feito com talento, com brilho, não tem jeito de não gostar.

O Homem Que Não Estava Lá é talentosamente, brilhantemente estiloso.

As mulheres traem, os homens cometem asneiras, há desesperança no ar

É um filme noir – provavelmente o mais estiloso gênero cinematográfico. Como mandam as regras do gênero, é em preto-e-branco. O ambiente não é belo, pacífico, tranquilo; muito ao contrário, é tudo um tanto perverso, sórdido, sujo, corrupto. As mulheres traem, enganam, não são o que parecem ser. Os homens cometem besteiras, asneiras. Há um clima de desesperança espessa no ar.

Como nos romances de Raymond Chandler e Dashiell Hammett que inspiraram os filmes noir dos anos 40, como naqueles clássicos, a ação se passa na Califórnia, nos anos 40, após a Segunda Guerra Mundial. E a história é narrada pelo protagonista.

O texto que os irmãos Coen escreveram para ser narrado por Billy Rob Thornton, com sua voz bela, grave, marcante, é um brilho. Começa assim:

– “É, eu trabalhava numa barbearia, mas nunca me considerei um  barbeiro. Tropecei pra dentro dela. Ou me casei para dentro dela, mais precisamente.”

zzman2Vemos cenas da barbearia, ouvimos ao fundo uma vozinha fina que fala sem parar, enquanto a voz grave de Billy Rob Thorton prossegue, pausadamente, sua introdução:

– “O estabelecimento não era meu. Como dizem, eu só trabalho aqui. O lugar tem 60 metros quadrados, com 3 cadeiras, ou estações, como nós as chamamos, embora só sejamos dois trabalhando. Frank Raflo, meu cunhado, era o barbeiro chefe – e, credo, como ele falava.”

A câmara se aproxima da boca de Michael Badalucco, o ator que interpreta Frank, e fica um tempinho ali, num super ultra big close-up.

– “O pai de Frank, August, que todos chamavam de Guzzi, cortou cabelo em Santa Rosa durante 35 anos, até que seu coração parou no meio de um corte reco. Ele deixou a loja quitada e sem dívidas para Frank, e isso parecia satisfazer a todas as suas ambições – cortar cabelo e jogar conversa fora. Já eu não falo muito. Só corto cabelo.”

O melhor papel da vida de Billy Rob Thornton, criado sob medida

Billy Rob Thornton é um daqueles sujeitos que trabalham demais. Além de ator, é roteirista, diretor, produtor – já até assinou trilha sonora. Tem uns 80 filmes como ator, já dirigiu seis filmes – mas não creio que tenha tido uma interpretação melhor, em toda sua carreira, que a deste Ed Crane, barbeiro por acaso, ou, mais precisamente, por casamento. Parece que os irmãos Coen escreveram o papel para ele, sob medida, justinho. Ao longo dos 116 minutos de filme, Billy Rob Thornton tem praticamente uma expressão só – uma expressão impressionante, de alguém que de fato não está lá, que está em outro lugar, em outro mundo. Uma expressão de alguém apático, perdido, talvez imerso em pensamentos distantes – um homem distante dos acontecimentos em sua volta, um homem que não está lá.

A mulher em que Ed Crane esbarrou na vida, e que, por ser filha e irmã de barbeiro, o transformou em um barbeiro, chama-se Doris – o papel da fantástica Frances McDormand, sempre presente nos filmes dos Coen, até porque é casada com Joel Coen desde 1984.

Sobre Doris, e como os dois se conheceram, Ed Crane narrará para o espectador o seguinte:

zzman4– “Umas semanas depois (do primeiro encontro) ela sugeriu que nos casássemos. Eu disse: ‘Você não quer me conhecer mais?’ Ela disse: ‘Por quê? Vai melhorar?’ Olhou pra mim como se eu fosse um idiota, como se eu nunca de fato tivesse importância para ela. E ela tinha razão. Nós nos conhecíamos tão bem naquela época quanto agora. O suficiente, de qualquer forma.”

Ed conhecia Doris o suficiente para saber que ela não era apenas a contadora da grande loja de roupas tocada por Big Dave (James Gandolfini), que se casara com a rica herdeira do negócio, Ann (Katherine Borowitz). Não, não era apenas a contadora, a funcionária de confiança: era também amante do grandalhão.

Um belo dia, surge na barbearia um sujeito de fora, de cidade grande, muito falante e seguro de si, um tal Creighton Tolliver (Jon Polito). O camarada diz que vai começar um negócio que não tem como dar errado – uma lavanderia de lavagem a seco, a última novidade no ramo. Precisa de um sócio que entre com o capital – US$ 10 mil. Todo o trabalho ficará por conta dele. O sócio não precisa fazer nada, só embolsar depois de algum tempo o capital investido e a partir daí uma montanha de dinheiro de lucro.

Ed Crane tem então uma idéia.

Ed Crane escreve à máquina um bilhete para Big Dave, dizendo que sabe que ele é amante de Doris, e quer US$ 10 mil em dinheiro para não contar para a mulher dele e para o marido dela.

Nos filmes noir, quando um sujeito ligado a uma mulher um tanto fatal tem uma idéia, vai dar merda.

Vai dar muita merda.

Chiaroscuro – claridade, escuridão, luz, sombra. O mais puro emblema do filme noir

Nesse ponto, O Homem Que Não Estava Lá parece um pouco com Fargo, um dos filmes mais cruéis e mais fascinantes feitos por essa dupla de irmãos talentosos. Em Fargo – de 2006, cinco anos depois deste aqui -, um sujeito casado com uma mulher rica tem a idéia de forjar o seqüestro dela para obter uma bolada do sogro. É um plano a princípio simples, tranquilo. Um golpe, uma espécie de conto do vigário, um delito pequeno, até limpo, quase inocente.

Resulta num banho de sangue.

A idéia de chantagear o patrão e amante da mulher também parece, a princípio, simples, tranquila.

Resulta em tragédia após tragédia.

É uma bela história. Triste, cruel, pavorosa – mas fascinante, e extremamente bem contada. Com todo tipo de fogos de artifício possíveis e imagináveis.

zzman6Uma sequência, em especial, mostra como os Coen usam e abusam de todos os trejeitos que o cinema inventou ao longo destes cento e tantos anos de existência. O fantástico, extraordinário advogado Freddy Riedenschneider está filosofando, tentando criar uma estratégia de defesa. Fala de um pensador alemão de cujo nome não está se lembrando naquele momento. Freddy Riedenschneider é o melhor advogado criminal da Califórnia – e o mais careiro, é claro. É também um grande ator – fala como se estivesse representando num palco: afinal, o que é um tribunal do júri, se não um teatro? É interpretado por Tony Shalhoub, o da série Monk – e Tony Shalhoub exagera, over act, ao interpreta Freddy Riedenschneider. Faz mais caras e bocas, em uma única cena, do que todos os demais atores ao longo de todo o filme.

Freddy Riedenschneider fala e gesticula numa sala em que uma grande janela deixa entrar uma luminosidade fortíssima.

A câmara do diretor de fotografia Roger Deakins e dos irmãos Coen joga com a luz forte que entra na sala e os gestos largos de Riedenschneider. Os gestos dele interrompem o facho de luz, criam sombras que se projetam sobre a sala. Chiaroscuro – claridade, escuridão, luz, sombra. O mais puro emblema do filme noir, derivado do expressionismo do cinema alemão dos anos 20.

Como cerejas em cima do bolo, a trilha de Carter Burwell – e Scarlett Johansoson

Além da história fascinante e de todo o requinte visual, O Homem Que Não Estava Lá tem ainda não uma, mas duas cerejas sobre o bolo.

Uma é a trilha sonora, composta por Carter Burwell, colaborador desde sempre dos irmãos Coen, o cara que está para os Coen como Nino Rota para Federico Fellini, John Williams para Steven Spielberg, Georges Delerue para François Truffaut.

As melodias que Carter Burwell criou para este filme são assombrosamente belas. E servem como luva para realçar o clima denso, pesado, angustiante da história.

A outra cereja é Scarlett Johansson.

zzman7Tinha 17 aninhos em 2001, quando o filme foi lançado. Já era linda, é claro. Aos 17 aninhos, parecia um anjo de pintura renascentista. E tinha experiência, apesar de tão nova: havia começado a carreira de atriz aos 10 anos de idade, em 1994. Tinha até trabalhado em um filme importante, O Encantador de Cavalos (1998), de e com Robert Redford.

Scarlett Johansson faz o papel de Birdy, a filha de um cliente da barbearia, velho conhecido de Ed Crane, o advogado Walter Abundas (interpretado por Richard Jenkins). Birdy vai aparecer lá pela metade do filme; estuda piano, toca Beethoven, gosta especialmente da Patética, a sonata para piano nº 8. Ed Crane, o homem que não estava lá, vai encontrar um pouco de conforto ouvindo aquele anjo renascentista tocando Beethoven ao piano.

Como este é um filme noir, e nos filmes noir as aparências enganam, o espectador descobrirá quase no final que Birdy, a garotinha interpretada por Scarlett Johansson, está longe de ser angelical.

O filme não deve ser visto por quem está em momento duro, difícil

A extraordinária fotografia de Roger Deakins foi indicada tanto ao Oscar quanto ao Bafta, mas não levou. Para o Globo de Ouro, houve indicações nas categorias de melhor filme, melhor ator para Billy Rob Thornton e melhor roteiro para os irmãos Coen. No total, o filme teve 29 prêmios e 37 indicações nos mais diversos festivais.

zzman8Leonard Maltin deu 2.5 estrelas. Diz que é uma homenagem aos filmes noir, em especial a James M. Cain, o autor das novelas policiais que deram origem a dois dos maiores clássicos noir, Pacto de Sangue/Double Indemnity e O Destino Bate à Sua Porta/The Postman Always Rings Twice. Ele elogia a performance fantástica de Billy Rob Thorton, a riquíssima direção de arte, a fotografia e galeria de belas atuações, mas lamenta que a história faça reviravoltas, mude de marcha e fique mais longa do que deveria.

Não concordo. Acho que o filme vale cada um dos seus 116 minutos.

Mas não deve ser visto por quem está num momento duro, difícil, angustiante. Pode provocar depressão profunda.

Anotação em agosto de 2014

O Homem Que Não Estava Lá/The Man Who Wasn’t There

De Joel e Ethan Coen, EUA-Inglaterra, 2001.

Com Billy Rob Thornton (Ed Crane), Frances McDormand (Doris Crane), Michael Badalucco (Frank), James Gandolfini (Big Dave Brewster), Katherine Borowitz (Ann Nirdlinger Brewster), Jon Polito (Creighton Tolliver), Scarlett Johansson (Birdy Abundas), Richard Jenkins (Walter Abundas), Tony Shalhoub (Freddy Riedenschneider)

Argumento e roteiro Joel e Ethan Coen

Fotografia Roger Deakins

Música Carter Burwell

Com trechos de sonatas para piano de Ludwig Van Beethoven

Montagem Ethan e Joel Coen (sob o pseudônimo de Roderick Jaynes) e Tricia Cooke

Casting Ellen Chenoweth

P&B, 116 min.

Produção Good Machine, Gramercy Pictures, Mike Zoss Productions, The KL Line, Working Title Films.

R, ***

Título em Portugal: O Barbeiro. Na França: The Barber: l’homme qui n’était pas là.

4 Comentários para “O Homem Que Não Estava Lá / The Man Who Wasn’t There”

  1. “Uma sequência, em especial, mostra como os Coen usam e abusam de todos os trejeitos que o cinema inventou ao longo destes cento e tantos anos de existência.”
    Creio que o senhor resumiu muito bem a carreira dos irmãos Coen. Para mim, assistir um filme deles é como ver uma homenagem ao cinema. Por diversas vezes percebi cenas aonde o único propósito é para que eles possam utilizar dos trejeitos que só o cinema possui e possibilita. E isso é uma delícia.

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