Núpcias de Escândalo / The Philadelphia Story

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4.0 out of 5.0 stars

The Philadelphia Story, no Brasil Núpcias de Escândalo, que George Cukor dirigiu em 1940, tem tudo o que uma comédia romântica precisa para ser perfeita. Uma trama deliciosa, atores belos, charmosos e competentes, diálogos afiados, inteligentes, uma direção segura, tranquila.

É uma absoluta maravilha.

E as histórias em torno de The Philadelphia Story, sobre a peça que deu origem ao filme e sobre a produção do filme são igualmente sensacionais. A peça, e depois o filme, marcaram uma grande virada na carreira de sua estrela, Katharine Hepburn, que, por sua vez, é uma das figuras mais fascinantes do cinema.

Esta anotação corre o risco de ficar grande.

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Ela detesta o ex-marido. Ela continua absolutamente pela ex-mulher

The Philadelphia Story começa com uma rápida seqüência sem palavras. É quase como se fosse uma sequência de um filme feito 13 anos antes de 1940, na época em que o cinema não havia aprendido a falar. Um homem bem vestido sai de uma mansão gigantesca pela porta da frente carregando duas grandes malas, e vai até o carro que o espera ali. Tem uma expressão furiosa no rosto. Logo a porta se abre novamente; uma bela mulher vem trazendo mais uma mala e um daqueles porta-tacos de golfe. Do qual tira um dos tacos e o quebra em dois, olhando desafiadoramente para o homem. A mulher gira para voltar para dentro da mansão, mas o homem vai atrás dela, dá uma batidinha no seu ombro. Ela se volta para ele, ele ergue o braço como se fosse dar um soco nela – mas em vez disso a empurra para o chão com um golpe forte.

Ela se chama – veremos em seguida – Tracy Lord, o papel de uma Katharine Hepburn no auge da beleza jovem. Ele é C.K. Dexter Haven, o papel de um Cary Grant charmoso como sempre.

Corta, e um letreiro informa: “Dois anos depois”. Estamos na véspera do segundo casamento de Tracy Lord, a filha mais velha de um multimilionário, descendente de uma das mais tradicionais famílias da elegante Philadelphia. O felizardo chama-se George Kittredge (John Howard), um homem que já foi muito pobre e subiu na vida em uma das empresas pertencentes ao pai da moça, uma mineradora.

O casamento anterior de Tracy – cujo epílogo o espectador acabou de ver na sequência inicial – havia sido rápido e tempestuoso. Ao contrário do noivo de agora, o marido número 1, C.K. Dexter Haven, nunca tinha sido pobre na vida, muito antes pelo contrário – descende de outra das mais tradicionais famílias da cidade em que os Founding Fathers dos Estados Unidos da América haviam assinado a Declaração de Independência em 1776 e a Constituição em 1777.

Haviam sido amigos de infância, Tracy e Dexter Haven. Hoje, Tracy detesta, despreza o ex-marido. Este, por sua vez, continua absolutamente apaixonado pela ex-mulher.

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O multimilionário pai de Tracy, Seth Lord (John Halliday), anda tendo um caso com uma bailarina de alguma fama. O editor da Spy, uma revista vagabunda que fala da vida de multimilionários e celebridades, faz uma chantagem: quer mandar uma dupla de repórter e fotógrafo para cobrir o casamento de Tracy – ou então publica uma reportagem já prontinha que conta tudo sobre o affair de Seth Lord com a bailarina.

E então Tracy e sua mãe Margaret (Mary Nash), absolutamente contra sua vontade, são obrigadas a permitir que entrem na fabulosa mansão e na intimidade de suas vidas os repórteres Mike (um James Stewart parecendo mais jovem que Shirley Temple no seu auge) e Liz (Ruth Hussey, ao centro na foto acima). Mike é o homem do texto, Liz é a mulher das fotos.

Toda a ação se concentra na véspera e no dia do segundo casamento da moça

Tracy é uma mulher de vontades fortes, independente, ousada, moderna – o escritor Philip Barry, afinal de contas, criou a personagem à imagem e semelhança de Katharine Hepburn, como será comentado mais tarde. Tem ojeriza por revistas de fofoca, e preza infinitamente sua privacidade. Tentará, com a ajuda da irmã mais nova, Dinah (Virginia Weidler), uma adolescente esperta, que saca tudo, tornar o mais infernal possível a vida dos dois abelhudos que é obrigada a receber em casa.

Mas Tracy descobrirá, na biblioteca pública mais próxima, o livro de contos que o repórter Mike escreveu. Fica impressionada com o texto bom do rapaz, com os sentimentos que ele consegue transmitir. Não poderia imaginar que uma alma sensível se escondesse naquele homem que aparenta ter uma casca grossa e evidentemente despreza os milionários, tem raiva deles.

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E o ex-marido ficará rondando Tracy. Dá de presente de casamento para ela um modelo do iate – o True Love – em que passaram momentos felizes bem no início do casamento, antes de começarem as brigas, as bebedeiras dele.

Tracy é uma mulher exigente, que não admite, não tolera falhas, fraquezas nas outras pessoas. Não aceitou as do ex-marido, não aceita as do pai. Vai aprender lições, no desenrolar dos acontecimentos.,

Toda a ação da história – excetuando aquele início da narrativa, em que Tracy bota Dexter Haven para fora de casa – se concentra na véspera do casamento, na longa noite que se seguirá, com uma grande festa dada pelo tio da noiva em sua mansão, e na manhã do dia seguinte, horas antes do casamento marcado para o início da tarde.

As situações ao longo da noite que parece interminável são deliciosas, hilariantes – e o elenco afiadíssimo, sob a direção de George Cukor, dá um show.

É uma imensa maravilha.

Katharine Hepburn e Marlene Dietrich discutem qual delas é o pior veneno na bilheteria

Katharine Hepburn estava, em 1940, o ano de lançamento de The Philadelphia Story, com 33 anos – e nunca esteve tão bela. Havia feito seu primeiro filme, Vítimas do Divórcio/A Bill of Divorcement, oito anos antes, em 1932. Esse seu filme de estréia, assim como Manhã de Glória/Morning Glory, de 1933, tinham feito bastante sucesso. Depois deles, no entanto, vieram vários fracassos – foram seis filmes que não se pagaram –, de tal maneira que, lá por 1938, os exibidores haviam colocado nela o epíteto de veneno na bilheteria. Box office poison.

zzstory3No primeiro semestre de 1938, acompanhada por uma grande amiga, Laura, Kate Hepburn viajou de Los Angeles para Nova York. No mesmo trem, viajavam Marlene Dietrich, Gertrude Lawrence e o inglês multi-talentos Noël Coward. Reuniram-se na cabine de Coward e um dos temas da conversa foi a lista das estrelas tidas como veneno de bilheteria, liderada pela própria Kate, por Marlene e por Greta Garbo. “Kate insistia que os números provavam que era ela o maior veneno, Marlene argumentava que, como a Paramount havia pago um bom dinheiro para ela não fazer outro filme (apesar de tudo, a RKO tinha oferecido a Kate que fizesse outro filme), ela é quem estava em primeiro lugar.”

A história é contada em Uma Mulher Fabulosa, a biografia de Kate Hepburn escrita por Anne Edwards, de onde retirei o trecho entre aspas e as informações que vão a seguir.

Lá pela metade daquele ano e 1938, o escritor Philip Barry mostrou para Kate os originais da nova peça que estava escrevendo. Era bastante óbvio que a protagonista, Tracy Lord, se inspirava na própria Kate.

The Philadelphia Story, a peça, ficou pronta em agosto de 1938. Por sugestão de Kate, Barry ofereceu a peça à companhia Theatre Guild. A companhia estava sem capital para fazer uma nova montagem. Kate propôs que o Theatre Guild entrasse com metade do dinheiro – ela bancaria 25%, e pediria a seu amigo, cortejador, namorado, fosse dela lá o que fosse exatamente Howard Hughes naquela ocasião, que entrasse com os outros 25%.

O negócio foi fechado. E Kate ainda comprou de Barry os direitos de adaptação para o cinema – pagou por eles US$ 25 mil.

Kate Hepburn morria de medo dos críticos e do público de Nova York

Há um costume no teatrão americano de se fazerem as estréias das peças longe de Nova York, a grande Meca do teatro. Dessa maneira os pequenos defeitos podem ir sendo consertados, os ajustes finos podem ir sendo feitos, e só quando as engrenagens estão todas ajustados prepara-se a estréia na maior cidade do país, diante das platéias – e dos críticos – mais exigentes.

The Philadelphia Story estreou em New Haven, e foi bem recebida. Por insistência de Kate e do diretor Robert B. Sinclair, Barry ainda trabalhava reescrevendo parte do terceiro ato quano a peça foi levada a Filadélfia, onde as críticas foram ainda mais entusiásticas. Ao ser encenada em Washington, já estava com as mexidas no terceiro ato finalizadas. Na capital federal, as apresentações foram sempre com casa lotada.

Ao final da curta temporada em Washington, a equipe discutiu se continuaria em turnê por cidades médias ou se iria direto para Nova York. Kate insistiu o quanto pôde na defesa da idéia de continuar ganhando dinheiro antes de ir para a Broadway. E ela tinha seus motivos: os críticos da metrópole nunca haviam elogiado seus trabalhos em Nova York – muito ao contrário.

Foi voto vencido, no entanto – e lá foi a trupe para a Broadway. A biógrafa da atriz conta que, na véspera da estréia, e no dia da estréia, Kate repetia para si própria, seguidamente: “Aqui é Indianápolis, aqui é Indianápolis”.

Foi um sucesso maravilhoso. The Philadelphia Story teve 415 apresentações em Nova York – e fartos elogios no New York Times, no New York Post, no New York Herald Tribune. Em excursões pelo país, foram outras 254 apresentações.

A biógrafa Anne Edwards contabilizou que os ganhos de Kate Hepburn com o salário no teatro, mais a participação nos lucros com seus 25% de capital investidos inicialmente, mais o dinheiro com a venda dos direitos para a Metro, mais seu salário como atriz no filme, totalizaram mais de US$ 500 mil. Na época, uma imensa fortuna.

Um acerto absoluto na escolha do elenco: Cary Grant e James Stewart estão perfeitos

Na maior parte das apresentações da peça, Joseph Cotten interpretou Dexter Haven, e Van Heflin, o repórter Mike. Os jornais da época, aliás, falavam muito num possível namoro de Kate com Van Heflin.

Quando a Metro comprou os direitos de filmagem, Kate tentou fazer com que o papel de Dexter Haven fosse dado a Spencer Tracy. Os dois ainda não haviam trabalhado juntos, mal se conheciam ainda, mas Kate tinha profunda admiração pelo trabalho do homem que seria seu amante pelo resto da vida e seu parceiro em nove filmes.

Uma outra fonte, o livo 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer, dá  versão diferente: diz que Kate Hepburn queria Clark Gable para o papel de Dexter Haven e Spencer Tracy para o do repórter Mike. Acredito mais na versão da biógrafa Anne Edwards, até porque o repórter é jovem, não poderia ter mais de 30 anos, e o papel não combinaria jamais com Spencer Tracy.

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De qualquer maneira, a Metro e o produtor Joseph L. Manckiewicz acabaram se decidindo por Cary Grant para o papel do ex-marido e por James Stewart para o do repórter.

Volta e meia digo que o cinema, assim como Deus, escreve certo por linhas tortas. Spencer Tracy é um ator excepcional, uma pessoa absolutamente admirável – mas Cary Grant tem muito mais a ver com o personagem de Dexter Haven. Spencer Tracy é perfeito para fazer homens íntegros, fortes, de personalidade marcante, batalhadores, que construíram sua vida com empenho e suor. Cary Grant tem muito mais o jeitão de um herdeiro ricaço que nunca precisou batalhar para ter o que tem.

E James Stewart foi outro grande acerto. Está excelente como o repórter casca grossa mas de coração mole, desajeitado naquele mundo de riqueza que o assusta, amedronta, ao mesmo tempo em que odeia tudo aquilo.

Cary Grant exigiu que seu nome aparecesse em primeiro lugar nos créditos iniciais e nos cartazes. É um tanto absurdo, isso, porque o papel de Kate Hepburn é muito mais importante do que o dele; ela aparece na tela muito mais tempo que ele. Kate acabou cedendo, e a vontade do astro foi feita.

Foi o quarto filme que Cary Grant e Kate fizeram juntos. Antes, haviam feito Vivendo em Perigo/Sylvia Scarlett, de George Cukor (1935), Levada da Breca/Bringing up Baby, de Howard Hawks, e Boêmio Encantador/Holiday, também de George Cukor, os dois lançados no mesmo ano, 1938.

O filme seguinte de Kate Hepburn seria A Mulher do Dia/Woman of the Year, de George Stevens, lançado em 1942. Foi o primeiro dos nove que faria com Spencer Tracy.

Foi a quinta maior bilheteria do ano e teve seis indicações ao Oscar

Núpcias de Escândalo, o filme, foi a quinta maior bilheteria nos Estados Unidos no ano de seu lançamento, segundo o livro Box Office Hits. (Os quatro primeiros foram Sargento York, de Howard Hawks, O Grande Ditador, de Charles Chaplin, Honky Tonk, de Jack Conway, e A Yank in the R.A.F., de Henry King.)

Rendeu US$ 2,5 milhões no mercado americano (ante US$ 4 milhões do líder Sargento York.)

Teve seis indicações ao Oscar – melhor filme, melhor direção, melhor atriz para Kate Hepburn, melhor atriz coadjuvante para Ruth Hussey (que interpreta a fotógrafa Liz), melhor ator para James Stewart e melhor roteiro para Donald Ogden Stewart. Levou as estatuetas dessas duas últimas categorias, ator e roteiro.

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O quesito Oscar é sempre curioso, e então lá vai: concorriam à estatueta de melhor filme naquele ano 10 obras, entre elas O Grande Ditador, de Charles Chaplin, Correspondente Estrangeiro e Rebecca, a Mulher Inesquecível, ambos de Alfred Hitchcock, Vinhas da Ira e A Longa Viagem de Volta, ambos de John Ford, e A Carta, de William Wyler. Cacete! Depois há quem reclame quando se diz que o cinema já foi melhor,

Deu Rebecca.

Concorriam com Katharine Hepburn ao prêmio de melhor atriz Joan Fontaine por Rebecca, Bette Davis por A Carta, Martha Scott por Nossa Cidade, e Ginger Roger por Kitty Foyle.

O papel título do filme Kitty Foyle havia sido oferecido a Kate, por um salário baixo, e ela havia recusado.

Deu Ginger Rogers por Kitty Foyle.

O público sentia compaixão pela mulher “tão bonita e tão incompreendida”

Diz o livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer: “A adaptação de 1940 de George Cukor da farsa teatral de Philip Barry é o clássico incontestável de todas as comédias pastelão sofisticadas. Katharine Hepbuen estrelou a peça na Broadway e diz-se que o dramaturgo Philip Barry baseou a protagonista na sua reputação à época. Depois de ela ter deixado a RKO não exatamente em bons termos, o público via Hepburn como mandona e masculinizada, certamente longe do ideal feminino do fim da década de 30.”

E, ao final: “O diretor George Cukor conseguiu fazer a imagem pública negativa de Hepburn funcionar a seu favor através da personagem, suscitando compaixão por uma mulher tão bonita e tão incompreendida. O filme foi enorme sucesso.”

Leonard Maltin dá a cotação máxima de 4 estrelas: “Palavrosa mas brilhante adaptação o sucesso de Philip Barry na Broadway sobre garota da sociedade que deseja ter romance pé na terra: Grant é seu ex-marido, Stewaret é um repórter que fala depressa e se apaixona por ela. Todo o elenco está excelente, mas Stewaert realmente brilha no seu papel premiado com o Oscar. O roteiro de Donald Ogden Stewart também ganhou o Oscar. Mas tarde musicalizado como High Society”.

Sim, sim: 16 anos mais tarde, em 1956, a Metro lançaria Alta Sociedade, uma adaptação de The Philadelphia Story para um musical, com Bing Crosby no papel do ex-marido, Frank Sinatra no do repórter Mike e Grace Kelly no de Tracy Lord.

Logo depois que revimos agora Núpcias de Escândalo, revimos também Alta Sociedade. É uma delícia de filme – mas, para gostar mais dele, é bom não fazer comparações com o original. O original é muito, mas muito melhor.

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Anotação em março de 2014

Núpcias de Escândalo/The Philadelphia Story

De George Cukor, EUA, 1940

Com Katharine Hepburn (Tracy Lord), Cary Grant (C.K. Dexter Haven), James Stewart (Macauley Connor)

e Ruth Hussey (Elizabeth Imbrie), John Howard (George Kittredge), Roland Young (Tio Willie), John Halliday (Seth Lord), Mary Nash (Margaret Lord), Virginia Weidler (Dinah Lord), Henry Daniell (Sidney Kidd)

Roteiro Donald Ogden Stewart

Baseado na peça de Philip Barry

Fotografia Joseph Ruttenberg

Música Franz Waxman

Montagem Frank Sullivan

Produção Joseph L. Mankiewicz, MGM. DVD ClassicLine.

P&B, 112 min

R, ****

9 Comentários para “Núpcias de Escândalo / The Philadelphia Story”

  1. Oi Sérgio, parabéns pelo site!! Pelo que já li, o Oscar de melhor ator para James Stewart em 1941 é na categoria principal, e não coadjuvante!!

  2. Caro Aldo, agradeço imensamente pela sua correção. De fato, James Stewart ganhou o Oscar de melhor ator, e não de ator coadjuvante. Não sei explicar como fui capaz de cometer esse erro – que, graças à sua mensagem, já pude corrigir!
    Muito obrigado!
    Sérgio

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