Interiores, de 1978, o primeiro drama realizado por Woody Allen, tem oito personagens centrais. Dos oito, quatro são infelizes. Têm bastante conforto material, não passam por privação alguma, mas são infelizes, angustiados, imersos em sombras. Parece que, se pudessem escolher entre a alegria e a tristeza, entre ver a vida de uma forma mais positiva e a de enxergar problema em tudo, não teriam dúvida em optar pelo pior.
São daquele tipo se não tem problema, nóis inventa.
Interiores focaliza uma família rica, bastante rica, de Nova York – pai, mãe, as três filhas do casal, o marido de uma das filhas, o namorado de outra.
Renata (o papel de Diane Keaton, belíssima aos 32 anos, em seu quinto filme ao lado de Allen, o quarto dirigido por ele), a primogênita, é poeta, e de sucesso. Seu trabalho recebe elogios da crítica – mas ela se afunda em dúvidas, angústias, inquietações.
Frederick (Richard Jordan), o marido de Renata, também é escritor, mas, ao contrário da mulher, seus trabalhos não são bem recebidos pela crítica, e ele tem dúvidas sobre seu próprio talento. Acabará tendo que dar aulas e escrever resenhas sobre os livros dos outros. É um sujeito amargo, infeliz, incomodado com o sucesso da mulher – e bebe demais.
Joey (Mary Beth Hurt, à esquerda na foto), a preferida do pai, que na juventude havia sido incensada como inteligente, promissora, talentosa, ainda não encontrou seu caminho na vida. Tentou várias coisas – a fotografia, a pintura, a literatura –, mas não deu certo em nada e abandonou as tentativas. Vive se remoendo de inveja pela irmã mais velha.
Completa o quarteto dos absolutamente infelizes Eve, a mãe das três mulheres. Eve (interpretada pela grande Geraldine Page) já havia sido, lá longe no passado, uma mulher muito ativa. Menciona-se que foi ela que custeou a vida do casal, bem no início do casamento, enquanto o marido ainda terminava sua formação universitária. Refinada, elegante, de bom gosto, era uma competente decoradora de interiores.
Mas, com o tempo, enquanto o marido ganhava cada vez mais dinheiro, Eve tinha se acomodado ao papel de esposa e mãe.
Quando o marido, Arthur (o papel de E. G. Marshall), num café da manhã, anuncia para ela e as filhas Renata e Joey que, depois de pensar muito, refletir profundamente, havia se decidido a viver sozinho, o mundo de Eve desaba inteiramente. Em depressão, teve que passar períodos em hospitais psiquiátricos.
A mãe das três mulheres apega-se à esperança de uma reconciliação que não virá
A ação se passa algum tempo depois da separação – que Arthur, cuidadoso, piedoso, para não ferir demais a mulher, havia anunciado como temporária, como uma tentativa. Haverá flashbacks, mas os dias de hoje da ação acontecem, repito, algum tempo depois da separação e de internações de Eve.
Mas, para ela, o tempo havia parado – e o único fio que ainda a agarra à vida é a esperança de uma reconciliação. Que todos, a não ser ela, sabem que não haverá.
Ao visitar Joey, bem no início da narrativa, Eve pergunta sobre o pai, se a filha o tem visto. Pergunta se ela acha que poderá haver a reconciliação – Renata, diz Eve, acha que existe uma chance.
Joey se irrita profundamente com o fato de Renata dar falsas esperanças à mãe.
A rigor, a rigor, não é que Renata alimente a mãe com falsas esperanças. Ela apenas não tem coragem de dizer claramente que não vê chance alguma de volta – e Eve entende isso como um encorajamento.
A terceira filha, Flyn (Kristin Griffith), não é muito presente no dia-a-dia da mãe. É atriz, basicamente de novelas de TV, com um ou outro pequeno papel no cinema, e mora do outro lado do país, em Los Angeles.
Flyn é a única solteira das três irmãs, e a única que não complica muito a vida. Veremos que ela até tem consciência de que é mais reconhecida pela beleza do que pelo talento dramático, que sabe não ter.
Também não complica muito a vida o namorado firme de Joey – os dois vivem juntos faz tempo, embora ainda não tenham casado. Mike (o papel de Sam Waterston, que parece agora impressionantemente jovem) é um estudioso de ciências sociais, tem lá algum ativismo político que não é muito explicitado.
Uma sonata triste para octeto de cordas
Pai, mãe, três filhas, dois homens das filhas – sete personagens.
A oitava personagem desta sonata triste para octeto de cordas só vai aparecer exatamente no meio da narrativa, exatamente no meio dos 93 minutos de duração de Interiores. Chama-se Pearl, e é interpretada por Maureen Stapleton, outra grande atriz, em outro grande desempenho.
É um filme de grandes atores, com interpretações extraordinárias.
Exatamente porque Pearl só surge na tela quando estamos com 47 minutos de filmes, só vou voltar a falar dela bem mais tarde, já que, a rigor, falar dela é um tanto spoiler, estraga prazer, entrega informação que não deve ser do conhecimento de quem ainda não viu o filme.
Indicado a a 5 Oscars e 4 Globos de Ouro, não levou nenhum desses prêmios
Passo, então, para algumas informações objetivas sobre o filme, a produção. Muitas delas saíram da página de Trivia do IMDb; outras, de diversas outras fontes, inclusive minha memória.
* Interiores, como já foi dito, foi o primeiro drama da filmografia de Woody Allen. Entre seus quase 50 filmes como autor-realizador, fez até hoje seis dramas. Várias de suas comédias podem ser classificadas como comédias dramáticas; mas dramas mesmo, obras em que não há espaço algum para o humor, são seis.
* Depois de Interiores, viriam Setembro (1987), A Outra (1988); Maridos e Esposas (1992), Match Point (2005) e O Sonho de Cassandra (2007).
* Seu primeiro drama foi feito entre duas obras-primas, dois filmes especialmente belos, todos os dois com Diane Keaton: Annie Hall, de 1977, e Manhattan, de 1979.
* Foi o oitavo filme dirigido por Allen, e o primeiro deles em que o realizador não trabalhou como ator.
* O filme foi indicado a cinco Oscars: melhor direção, melhor roteiro original, melhor atriz para Geraldine Page, melhor atriz coadjuvante para Maureen Stapleton, melhor direção de arte para Mel Bourne. Não levou nenhum. (No ano anterior, Annie Hall havia ganho quatro dos cinco principais Oscars – os de filme, direção, roteiro original e atriz para Diane Keaton.)
* Levou também indicações a quatro Globos de Ouro, as mesmas quatro primeiras do Oscar. Também não levou nenhum dos prêmios.
* Como muitos outros filmes de Allen, Interiores mostra a influência de Ingmar Bergman sobre o diretor. Ele jamais negou a influência do gênio sueco – muito ao contrário. Mas é fantástico saber (a informação está no IMDb) que o personagem de Eve, a mãe, foi criado para Ingrid Bergman. A atriz declinou o convite porque naquele mesmo ano havia sido convidada para trabalhar com o mestre em Sonata de Outono – o único filme que reuniu a beleza esplendorosa de Ingrid e e o gênio de Ingmar.
* Ingrid Bergman acabaria sendo indicada ao Oscar de melhor atriz por Sonata de Outono, assim como Geraldine Page, que fez o papel de Eve. As duas perderam para Jane Fonda por Amargo Regresso/Coming Home, de Hal Ashby.
* Consta que o título Interiores foi sugerido a Allen por sua musa e mulher Diane Keaton.
* Detalhinhos: os créditos iniciais são, assim como na imensa maioria dos filmes do autor, com letras brancas sobre fundo negro. No entanto, a tipologia usada não é a tradicional de seus créditos iniciais e finais. O pequeno detalhe chamou minha atenção, porque no filme anterior, Annie Hall, ele já usava a tipologia que mantém até hoje como uma de suas marcas registradas.
* Mais um detalhe sobre os créditos: tanto os iniciais quanto os finais rolam sem música, sem som algum, ao contrário do que acontece na imensa maioria dos filmes de Allen. É provável que ele tanha querido, com esse detalhe, estabelecer uma diferença entre Interiores, um drama, e seus filmes anteriores.
* Detalhinho do detalhinho: o nome da diretor de casting, a mesma que acompanha Allen desde praticamente sempre em sua carreira, Juliet Taylor, aparece grafado erradamente nos créditos finais. Está escrito: Juilet Taylor. Como é possível que ninguém, nem a própria Juliet Taylor, tenha reparado nisso?
Atenção: este trecho abaixo contém spoiler
Antes de passar para as outras opiniões, quero fazer uma consideração. Como diz respeito à personagem de Pearl, que, como já foi dito, só aparece da metade do filme em diante, quis deixar mais para o final.
Em Interiores, como em diversos outros filmes, Woody Allen faz uma dura crítica aos ricos e aos intelectuais. Dos oito personagens, quatro são infelizes, procuram a infelicidade, como já disse; mas praticamente todos são intelectuais, fazem questão de demonstrar, a cada momento, que têm cultura, erudição. E são pessoas profundamente chatas.
A única personagem, além de Pearl, que não fica a todo momento cuspindo erudição, ou pseudo-erudição, é Flyn, a atriz de novelas de TV.
Pearl é o contrário dos demais sete personagens. O exato oposto, o antônimo, o antípoda. Em tudo por tudo. Fala sem qualquer tipo de afetação; o linguajar dela é simples, leve, solto. Vê a vida com simplicidade. Enquanto os outros sete personagens fazem exegeses chiques sobre a peça de teatro que todos ali haviam visto, ela é curta e grossa: diz que um personagem é dedo-duro, e outro não, e que o dedo-duro, por ser dedo-duro, é mau caráter, e o outro é bom caráter – simples assim.
(Aliás, por falar em erudição, não sei a qual peça os personagens se referem. Não sei, a rigor, sequer se Allen escreveu aqueles diálogos sobre uma peça real, existente. Parece algo escrito por Sartre, ou talvez por Camus, mas não sei ao certo. Se algum eventual leitor aí souber, por favor, cartas para o site.)
Pearl não tem problemas com comida – entende que comer é um prazer, e as pessoas devem ter prazer na vida. Do que adianta viver até os 100 anos, se é preciso não comer isso, ou aquilo?, ela questiona.
Todos os demais personagens usam roupas clássicas, em tons pastel. Pearl é a única que usa cores fortes, vivas, vibrantes.
De todos aqueles personagens, Pearl é seguramente a única feliz.
Joey, talvez a mais infeliz daquela família infeliz, usa para definir Pearl a palavra “vulgarian”. E a pronuncia com imenso desdém.
A felicidade – é o que me parece que Woody Allen diz em Interiores, assim como em vários outros de seus filmes – não tem nada a ver com a quantidade de informações sobre arte que alguém acumula na vida, nem com a quantidade de dinheiro. Na verdade, muito ao contrário: quem se dedica a juntar informações eruditas e/ou dinheiro, como se esse fosse o objetivo maior da vida, é bem mais infeliz.
Melhor ser vulgar do que ser rica e se achar fina e chique e ser um poço inesgotável de infelicidade. Ah, muito, muito melhor – essa me parece ser a moral deste filme belíssimo.
“Os diálogo têm a precisão de um conto de J.D. Salinger”
Leonard Maltin dá 3.5 estrelas em 4 ao filme: “O primeiro drama de Woody Allen como autor-diretor é um estudo Ingmar Bergmanesco de uma família cheia de infelicidade, homens e mulheres frustrados; este drama de vidas angustiadas não é para todos os gostos, mas é extremamente bem feito.”
Roger Ebert dá a nota máxima, 4 estrelas: “Sim, a abertura nos faz lembrar de Bergman: as tomadas estáticas, os momentos de contemplação dos aposentos e das posses de uma família. Mas então pessoas entram nos quartos, e suas vidas e vozes têm uma animação particularmente americanas; Woody Allen está certo ao dizer que seu drama, Interiors, pertence mais à tradição de Eugene O’Neill que de Ingmar Bergman. Mas como assim? Aqui temos um filme de Woody Allen, e estamos falando sobre O’Neill e Bergman e tradições e influências? Sim, e corretamente. Allen, cujas comédias têm estado entre o tônico de alegria dos últimos anos, aparece surpreendentemente seguro em seu primeiro drama. Ele nos mostra uma época de crise em uma família, e a desenvolve em um contraponto com diversas alegrias e crises menores que são uma família. Cada cena conta, e o diálogo tem a precisão de um conto de J.D. Salinger. Não há nada lançado lá para fazer efeito, a não ser que o efeito contribua especificamente para o sentido de todo o filme.”
Ao final de seu longo e belo comentário (ele sempre faz comentários longos e belos), Roger Ebert diz que a sequência da conversa de todos os personagens em volta da mesa – aquela em que vários dissecam, fazem a exegese da peça de teatro –, permite que Allen lance um olhar sobre o personagem de Maureen Stapleton, o de Pearl, “com uma mistura de ternura e sátira tão delicadamente equilibrada que é coisa de um virtuoso”.
Cada cabeça, uma sentença. Não acho que a sequência satirize a personagem. Para mim, a sequência mostra Pearl tão qual ela é: sem frescura, sem veadagens intelectuais, chiques, finas. Pearl entende que, já que nos puseram aqui na casca deste planeta, sem termos pedido, então é melhor tentar viver e ser feliz, danem-se os chatos que nos chamam disso ou daquilo.
Mas é isso aí, cada cabeça, uma sentença. Cada um, cada um.
Ebert termina assim sua crítica:
“Interiors é sério por observar intensamente adultos complexos enquanto abandonam as questões ou as enfrentam, culpam ou justificam. Porque ele ilumina algumas das formas com que nos comportamentos, ele é sério, mas não depressivo; quando termina, podemos até mesmo nos congratularmos por Allen ter visto tão claramente como as coisas podem ser.”
Bem, normalmente, quando transcrevo o que dizem Leonard Maltin e Roger Ebert, transcrevo também o que diz a prima donna da crítica americana, a língua mais ferina do Oeste e também do Leste, Dame Pauline Kael.
“As pessoas neste filme sério de Woody Allen são destruídas pela repressão do bom gosto, o mesmo acontecendo com o filme. É um filme-enigma, construído como uma bem feita peça teatral americana de outros tempos que recebeu a clareza visual e solene de um filme de Bergman sem, no entanto, ter o erotismo de Bergman. (………….)”
Quer saber? O texto de Dame Pauline Kael sobre Interiores é tão chato, tão arrogante, tão pseudo-intelectual quanto as falas que Woody Allen escreveu para Joey e Renata, as irmãs chatas de galocha.
Mando aqui um monte de axés de Pearl para acabar com o baixo-astral filosófico-intelectualóide-depressivo-panaca dos chatos de galocha.
Anotação em maio de 2014
Interiores/Interiors
De Woody Allen, EUA, 1978
Com Diane Keaton (Renata), Mary Beth Hurt (Joey), Kristin Griffith (Flyn), E.G. Marshall (Arthur), Geraldine Page (Eve), Sam Waterston (Mike), Richard Jordan (Frederick), Maureen Stapleton (Pearl)
Argumento e roteiro Woody Allen
Fotografia Gordon Willis
Montagem Ralph Rosenblum
Casting Juliet Taylor
Produção Charles H. Joffe, Jack Rollins, United Artists. DVD MGM.
Cor, 93 min
R, ***1/2
Caro Sérgio,
eu tenho o palpite de que Pearl falaria viadagem, com i.
O que vc acha?
Woody Allen mostra gente com dinheiro e tempo de sobra entrando numas de que é muuuuuito infeliz, infelicíssima, e que em momento algum se toca de que aquilo é falta de lote pra capinar.