Meu Deus, como é triste, como é profundamente triste, amargo, duro Blue Jasmine! O filme me deixou cansado. Acabrunhado, triste.
Como é estranho ficar cansado depois de ver um Woody Allen.
Não que eu não tenha gostado do filme. Não é isso, de maneira alguma. O filme é extraordinário, merece todas as loas com que foi recebido.
E Cate Blanchett tem, de fato – como todo mundo já disse – uma interpretação fantástica, maravilhosa. É, muito certamente, uma das melhores interpretações de todos os tempos.
Mas como é triste o filme…
O IMDb o classifica como comédia e drama. Provavelmente todo mundo o classifica assim – e eu mesmo dei algumas risadas, mais para o começo da narrativa. Mas depois vai travando, ficando cada vez mais amargo, até o final, um final absolutamente, aterradoramente triste, desesperançado, sem saída.
A moral da história me parece ser a mesma de Small Time Crooks
Depois que o filme terminou, enquanto Mary e eu ficamos um bom tempo quietos, em silêncio, deglutindo aquilo, me lembrei de Trapaceiros/Small Time Crooks, o Woody Allen de 2000. Em Small Time Crooks, Ray (o personagem interpretado pelo próprio autor-diretor) planejava assaltar um banco. Para isso, aluga um prédio vizinho ao do banco, onde antes funcionava uma pizzaria; no porão, ele e seu Exército Brancaleone começam a cavar um túnel, enquanto, para despistar, dar uma aparência de coisa legítima, no térreo da loja sua mulher Frenchy (Tracey Ullman) cozinha biscoitos.
O plano de assaltar o banco, obviamente, não dá certo – mas os biscoitos de Frenchy fazem um sucesso espetacular, e de repente o casal se vê dono de uma milionária indústria de alimentos.
Os ex-pobretões viram milionários – e a vida perde a graça.
A moral da história do delicioso, alegre, hilariante Small Time Crooks me parece ser exatamente a mesma de Blue Jasmine. Aquela moral óbvia, simples, transparente, cristalina como as águas claras da Praia do Rosa, mas que é sempre bom a gente relembrar: a felicidade não se compra. Ou, como dizia a velha canção Beatle: money can’t buy me love. Ou ainda: tudo quando é demais estraga – dinheiro principalmente.
Small Time Crooks, eu mesmo anotei, ao rever o filme alguns meses atrás, não é um dos grandes filmes deste cineasta brilhante, incansável. Blue Jasmine é um grande filme. Mas, para contar uma história que tem a mesma moral daquela comédia deliciosa, quanta tristeza há em Blue Jasmine.
Jasmine era uma bilionária consumista, fútil, vã, vazia
Ao se ver de repente milionária, Frenchy, a cozinheira fabulosa de Small Time Crooks, meio que se perde. Passa a querer ser como os milionários com que convive. Começa a arrastar as asinhas para um inglês bonito, charmoso (interpretado por Hugh Grant), que na verdade é um picareta, um salafrário. Mas depois cai na real, percebe que há valores que importam muito mais que o dinheiro e a afetação, o artificialismo, o jogo de aparências que em geral vem com ele.
A Jasmine interpretada magistralmente por Cate Blanchett nunca teve ligação com os valores corretos. Casou-se jovem, antes de completar o curso de antropologia que fazia, com um sujeito charmoso, bonitão, Hal (o papel de Alec Baldwin, em seu terceiro filme sob a direção de Woody Allen), que ficou bilionário com negócios escusos, negociatas no mundo das altas finanças de Nova York – e virou uma dondoca, uma consumidora das grifes mais caras que há no mundo.
Uma bilionária consumista, fútil, vã, vazia. Uma pustema.
Hal é preso, suas negociatas são investigadas, e Jasmine perde tudo, absolutamente tudo – até mesmo a razão.
Depois de um período internada para tratamento psiquiátrico, sem ter onde cair morta, vai para San Francisco, hospedar-se na casa da irmã de criação, Ginger (a maravilhosa Sally Hawkins), que ela sempre desprezou.
Como é trágica a existência das pessoas que não sabem aprender
A queda da bilionária na pobreza total me fez lembrar de outro grande filme, Império do Sol, que Steven Spielberg dirigiu em 1987: o garoto Jamie (interpretado por um Christian Bale então com 13 anos de idade), filho de diplomatas britânicos, levava uma vida de rico na Xangai dos anos 30; durante a invasão de parte da China pelo Japão, Jamie se perde dos pais e acaba num campo de concentração japonês para estrangeiros.
De uma hora para a outra, exatamente como Jasmine, cai de uma torre de marfim no inferno. Da Suíça para Biafra.
Mas o garoto Jamie aprende com a adversidade. Jasmine é incapaz de aprender qualquer coisa boa na vida.
Creio que todo espectador sofre junto com Jasmine – e a interpretação fantástica de Cate Blanchett, e o fato de Woody Allen ter armado sua narrativa entremeando o hoje, ela já sem um tostão, morando de favor no apartamento simples da irmã que ela despreza, com o passado de glória e muito, mas muito, mas muito dinheiro, ajudam bastante nisso.
Sofri com as agruras daquela ontem bilionária e hoje sem ter onde cair morta.
Mas Jasmine é o contrário do garoto Jamie do filme de Spielberg – é do tipo que não aprende coisa alguma com a vida. E essa é a razão da imensa tristeza que o filme transmite. Como é trágica a existência das pessoas que não sabem aprender.
Não é de hoje que Woody Allen mostra seu solene desprezo pelos muitíssimo ricos de Manhattan, o umbigo do capitalismo. Quando revi Small Time Crooks, anotei:
Me lembro de ter lido, muito tempo atrás, um crítico dizer algo do tipo: mas se Woody Allen tem tanto ódio e desprezo pelos ricos de Nova York, por que então continua a fazer filmes sobre eles?
E eu mesmo respondi:
Por que ele tem o direito de fazer o que bem entender, uai! E porque tudo, ou quase absolutamente tudo que ele faz é ou brilhante, ou, no mínimo, engraçadíssimo.
Isso que escrevi continua valendo. Mas, no caso de Blue Jasmine, seria preciso dizer que quase absolutamente tudo que ele faz é ou brilhante – ou, aqui, especificamente, tristíssimo.
Sally Hawkins está ótima. Mas o show é de Cate Blanchett
Nos créditos finais, há menção a um “dialogue coach”, um treinador de diálogos. Imagino que seria necessário mesmo algum especialista para ajudar a australiana de Melbourne Cate Blanchett e a inglesa de Londres Sally Hawkins a falarem inglês americano – Cate, a falar com linguajar culto, estudado, de rico, e Sally, com um linguajar bem mais popular, mais tosco.
Sally Hawkins, atriz extraordinária, que já nos presentou com interpretações deliciosas tanto no drama, como Agora ou Nunca/All or Nothing, quanto na comédia, como Simplesmente Feliz/Happy-Go-Lucky, ambos de Mike Leigh, um mago na direção de atores, está excelente como Ginger, a irmã pobre de dinheiro e rica de alegria, de vitalidade, de vida.
Mas ela é inteiramente eclipsada por Cate Blanchett como a irmã ex-milionária e pobre de valores e de espírito. A interpretação de Cate Blanchett é um estupor.
Sally Hawkins foi indicada ao Oscar, ao Globo de Ouro e ao Bafta de atriz coadjuvante, mas perdeu. Woody Allen também foi indicado ao Oscar de roteiro original, e perdeu. Cate Blanchett levou o Oscar, o Globo de Ouro, o Bafta, o SAG (o prêmio do Sindicato dos Atores).
Ao todo, Blue Jasmine ganhou 28 prêmios, fora 35 indicações.
Merecidíssimo – e é fantástico como Woody Allen, com este filme, recuperou-se completamente do fiasco que foi, na minha opinião, seu filme anterior, Para Roma, Com Amor, de 2012. Esse filme em que ele, para mim, perdeu a mão feio, acabou ficando imprensado entre dois grandes filmes, este Blue Jasmine, de 2013, e o anterior, Meia-Noite em Paris, de 2011, uma absoluta maravilha.
O AllMovie fala em “um roteiro mal pensado”
Woody Allen nunca foi uma unanimidade, e faz muito tempo que seus filmes são mais apreciados na Europa do que em seu próprio país. Vejo que os editores do respeitabilíssimo site AllMovie deram ao filme apenas 2 estrelas em cinco. Eis o início da crítica assinada por Perry Seibert (vai sem aspas para me desobrigar de ser literal, ipsis litteris):
Blue Jasmine de Woody Allen encontra o realizador de quase 80 anos em ótima forma como diretor de atores, mas ele enfraquece essa habilidade com um roteiro terrivelmente estruturado e mal pensado. Os problemas de escrita começam quase imediatamente, quando Allen abre o filme com Jasmine (Cate Blanchett) vomitando sem parar sua história de vida a uma senhora idosa num avião. Parece que ela não está mais com seu marido, um rico financista de Nova York, e está indo para San Francisco para morar com sua irmã. Esse mecanismo, de estabelecer o personagem principal num longo monólogo ou com voz em off, é algo em que Allen se apoiou firmemente no passado – é como primeiro conhecemos o personagem de Michael Caine em Hannah and Her Sisters -, mas ele faz esse preguiçoso resumo desnecessário gastando muito dos 30 primeiros minutos do filme em flashback. Embora Alec Baldwin esteja bem interpretando Hal, o ex de Jasmine, um patife tipo Bernie Madoff, essas sequências têm uma inevitabilidade maçante e nos deixa ansiosos para voltar à ação nos dias de hoje, em que Jasmine, uma fogueira intensa de neuroses e ansiedade, passa a morar com sua irmã Ginger (Sally Hawkins).
A história não poderia ser contada de outra forma
Pois bem. Todo mundo tem direito a expressar sua opinião – e também a não concordar com a dos outros.
Na minha opinião, Perry Seibert falou aí um monte de asneiras.
Não são apenas os 30 primeiros minutos do filme que misturam sequências dos dias atuais – Jasmine enfrentando a nova vida de pobre em San Francisco – com as do passado – Jasmine circulando em ambientes exclusivos, finíssimos, caríssimos.
Todo o filme é estruturado assim.
Eu, pessoalmente, tenho cada vez mais gostado das narrativas simples, escorreitas, diretas. Cada vez mais gosto de uma ordem cronológica: primeiro o anteontem, depois o ontem, depois o hoje, tal como na vida.
No entanto, não há, não pode haver regras definitivas, mandamentos da lei de Deus, para se estabelecer como uma história deve ser contada.
A história de Jasmine, de sua súbita queda da Suíça para a Biafra, tem muito mais sentido exatamente da forma com que Woody Allen escreveu o seu roteiro. A justaposição, a contraposição, ao longo de todos os 98 minutos de Blue Jasmine, do antes com o agora, da riqueza absurda para a perda de todos os privilégios, é exatamente o fator que torna a história forte, emocionante, terrível, dolorosa.
Mais ainda: a costura que Allen consegue entre os acontecimentos do presente com aqueles do passado é algo fascinante, sensacional.
Não há um flashback solto, desnecessário, à toa: cada volta ao passado é provocada por algo que acontece no presente. Só para dar um único exemplo: Jasmine chega à casa da irmã e sente que ela exagerou no perfume. E a doce, alegre, viva, energética e pobre Ginger fala: “É francês”. É o elo para que surja um flashback envolvendo o marido Hal com uma garotinha francesa.
Mais ainda: somente contada dessa maneira, com idas ao passado e voltas ao presente, a história poderia nos brindar com a revelação final, que vem quando Jasmine reencontra o enteado Danny (Alden Ehrenreich).
É uma sacada de escritor de talento, de gênio, que o espectador só fique sabendo daquela revelação quando estamos bem próximos da sequência final.
Para mim, o crítico Perry Seibert falou um bando de asneiras. O roteiro de Blue Jasmine é um dos melhores que Woody Allen escreveu em sua longa, extraordinária, prolífica carreira.
O eventual leitor não tem que concordar comigo, de forma alguma. Pode perfeitamente concordar com o que diz o crítico do AllMovie. É um direito inalienável de cada um.
De qualquer forma, é bom lembrar que o roteiro que Seibert chama de under-thought teve indicações ao Oscar, ao Bafta, ao prêmio do Australian Film Institute, ao da Broadcast Film Critics Association dos Estados Unidos, ao Independent Spirits Award e, at last but not at least, ao prêmio do Writers Guild of America, o sindicato nacional dos roteiristas e escritores.
Anotação em maio de 2014
Blue Jasmine
De Woody Allen, EUA, 2013
Com Cate Blanchett (Jasmine),
e Alec Baldwin (Hal), Sally Hawkins (Ginger), Bobby Cannavale (Chili), Andrew Dice Clay (Augie), Louis C.K. (Al), Peter Sarsgaard (Dwight), Tammy Blanchard (Jane, amiga de Jasmine), Alden Ehrenreich (Danny), Max Casella (Eddie), Michael Stuhlbarg (Dr. Flicker)
Argumento e roteiro Woody Allen
Fotografia Javier Aguirresarobe
Montagem Alisa Lepselter
Direção de arte Santo Loquasto
Casting Juliet Taylor e Patricia DiCerto
Produção Perdido Productions, Gravier Productions. DVD Imagem Filmes.
Cor, 98 min
***1/2
concordo quando fala que o filme é extremamente triste, mas não exatamente pelo mesmo motivo que menciona. A personagem da Cate é sim, à época das gordas vacas, uma pessoa consumista e pouco interessada no seu próprio desenvolvimento profissional, já que vive totalmente às expensas do marido multimilionário. Porém, não acho que ela mereça os adjetivos “vã” e “vazia” “uma pustema”. Acomodada talvez seria um termo mais feliz. Afinal, quantas pessoas, mais especificamente mulheres, voçê conhece ou já ouviu falar, que se acomodam na condição de “donas de casa” e, sobretudo, se o marido for rico e as paparicam com vários mimos (jóias, roupas, apartamentos caríssimos), estão pouco se lixando para para outras coisas que não sejam suas próprias vidas, ou “vidinhas” como quer classificar.(Aliás, no caso dela não era vidinha mas uma “vidona”, convenhamos). O que é triste no filme, não é, exatamente, a derrocada que ela sofre depois que denuncia o marido, mas suas tentativas frustadas de se reerguer. Mas não porque ela seja esta criatura arrogante ou absolutamente relutante em aprender algo novo. Ela, inclusive, volta a estudar, vai trabalhar como vendedora de uma loja de sapatos, recepcionista de um consultório dentário…mas, como estamos num filme de Wood Allen, o destino (não se esqueça de Match Point), é uma personagem à parte. E ele se encarrega de pregar várias peças na azarada ? (não se esqueça, estamos no campo das vicissitudes e do inexorável) da Jasmine. Nem todas as pessoas da vida real são como aquela personagem da Regina Duarte em Vale Tudo. Risos. Um abraço. Ana Paula
Oi, Ana Paula!
Adorei seu comentário, suas opiniões, sua percepção das coisas.
Não sou dono da verdade, de jeito nenhum. Ninguém é. Cada um tem suas opiniões, seu jeito de ver as coisas.
O que você diz, o seu jeito de ver os personagens, é ótimo!
Espero que você volte outras vezes ao site, e mande seus comentários.
Um abraço, e obrigado.
Sérgio
Mais uma vez eu de novo ! Mas é que esse filme me remeteu a um dado novo, que não havia percebido antes. Acontece no filme com a Jasmine o que nós, no jargão jurídico, denominamos de “non bis in idem”, ou seja, ela é punida duas vezes pelo mesmo fato. Primeiro, quando perde tudo, ao denunciar o marido e, depois, quando o novo namorado dela, interpretado por Peter Sarsgaard, descobre o seu passado, e age de forma intolerante e insensível, rompendo o relacionamento de forma abrupta, sem sequer tentar compreender a versão dela. Mais uma vez, acho que compreendo o desespero de Jasmine e de, certa forma, tomo o seu partido, independente dos adjetivos que Sérgio lhe imputou, mas simplesmente, porque uma pessoa não merece ser punida duas vezes pelo mesmo fato. Só percebi essa nuance do roteiro agora porque estou passando pela mesma situação que ela, só que na vida real !!!
Sérgio, agente fica sabendo da revelação final quando Jasmine reencontra o enteado ou quando o maridão diz a ela que o casamento já era, que ele vão precisar discutir os termos da separação? Não é aí que ela vai e liga p/ o FBI?